CAPÍTULO 8 ou Os óculos de sombra ou ainda meu sinal secreto
(Parte 2)
EM SUA FASE LARVAR probas procuravam disputas a todo custo e isso significava submeter-se a joguinhos de aprendizes que já contavam com três ou quatro emblemas sob os mantos ou capas ou becas ou ponchos ou mesmo capotes (mas isso vocês já sabem). O nome não importava, até porque havia quem se arriscasse usando sob os ombros corajosamente, aquilo que em algum momento tinha sido também peça inventiva de festas temáticas nas quais encarnavam magos ou vampiros.
Quando pensei a primeira vez que talvez aquilo fosse uma solução para a questão, alguém foi lá e fez o probas desfiá-la com os dentes. Eu ainda não sabia como funcionava, não fazia a menor ideia e tudo o que me mostraram até ali envolvia círculos concêntricos de uma mesma coisa que ninguém chamava pelo mesmo nome. Raios! Mas que raios é um Raio, afinal? E eles riam. Probacionistas deviam conquistar as próprias capas aceitando ou indo em busca de oponentes que se vencidos teriam de rasgar parte da sua e entregar a tal parte ao vencedor. "Não se preocupe, elas crescem de novo" disse uma menina com cabelos cacheados cor de estopa percebendo meu espanto quando vi His aparar com a cara vermelha a tira de pano desbotado que um duelista aprendiz rasgou em duas e atirou em sua direção. His apesar do nariz destroçado, exalava satisfação. Seria o primeiro probas que eu veria vencer um duelista usando até o último resquício de consciência concreta.
As testagens as quais probacionistas se submetiam ou eram submetides por prováveis desafiantes eram niveladas por área de intenção do próprio probas. Você podia meio que escolher entre cinco padrões. "Corpóreo ou de carnadura..." O desafiante disse sem nenhum humor na voz despindo a capa. Sob ela num flash foi possível distinguir pequenas miniaturas debruadas no forro, uma coleção de partes menores de aparentemente qualquer coisa. "Intelectivo ou sabedor..." ele continuou "Hombridade ou jaez" estendeu a capa sobre o degrau que fazíamos de banco na fonte desativada no pátio dos fundos "Olhe bem, Devotado... Cerimonioso e por fim, alegórico".
"Eu não sei qual é pior..." a menina com cabelo de estopa disse. "Mas se eu fosse ele escolheria um padrão que não exigisse muito..."
"Qual você escolheria?" perguntei inocentemente.
"Corpóreo" ela arriscou, polida, "manter as coisas num Raio que ele conheça é estratégico..." E usar a consciência concreta é o que um aspirante pode fazer sem controle de um totem que tenha sido capturado por ele mesmo".
"Bem, eu não sei o que...", comecei e então ela ergue a mãozinha gorda. "Ele tem um mote?"
"Hã...", falei, tentando pensar rápido.
"Um codinome", ela disse impaciente. "Você recebeu um lá no começo, não recebeu?"
Eu sentia o coração nas pontas dos dedos. É claro que sabia o que era um mote, todo mundo ali tinha recebido o seu, era para isso que serviam as iniciações, você ganhava uma palavra-chave, um codinome, o tal mote e na agremiação você o usava para acessar a biblioteca a partir de qualquer volume encadernado, um quarto de hora por vez, há quem diga ser o suficiente. Seu primeiro mote seria seu até que você elevasse a sua consciência à uma câmara superior, probacionistas estavam na antecâmera, quer dizer, não era nem mesmo uma câmara... Um Raio acima deste aqui, era o equivalente ao vestíbulo, a antessala na qual deixamos as galochas e os guarda-chuvas. Enquanto isso, o fato de um aprendiz ou zelador ou qualquer outro que estivesse acima de um probas ser a principal fonte de acesso, considerando as dificuldades iniciais para perceber totens e manifestações atípicas sem ferramentas apropriadas, era motivo para desafiantes, aprendizes ou não, pesarem a mão nas escolhas dos padrões.
"Hoc... ou Abóqui" fui dizendo, hesitante, "mas prefiro Abóqui"
"Isti" ela, com uma voz baixa, soturna, "mas prefiro Felicitas... Lici" disse na sequência piscando.
"Lici então", falei estendendo a mão.
Lici contou que aprendizes tinham de manter as capas sempre ornamentadas com emblemas capturados em missões de campo. A orientação vinha de cima – "E isso quer dizer que você não terá como contestar sem antes alcançá-los lá em cima. Você nunca estranhou que são sempre adeptus, zeladores e de vez em nunca um practicus que aparece por aqui, fora das egrégoras e cortes de honra? Eles esperam que alguém tire da cartola que o vício deste Raio... ou manifestação, chame como quiser, eles esperam que alguém combata a avareza e a inércia nos fazendo brigar por uma dessas", ela passou a mão pelo tecido esverdeado-veludoso da capa presa sobre um ombro, "como é possível perceber a real influência da matéria se na verdade estamos o tempo todo testando... e gostando de testar, os limites do plano físico? Nós somos a lasquinha de gordura endurecida debaixo da unha do dragão – eles dão as ordens e nós obedecemos, e pronto".
"Sabe o que não entendo até aqui?" falei olhando para ela e para os cabelos de estopa brilhando ao Sol, "por que não trocar capas entre amigos?"
"Tacanhice", disse Lici enrolando sua capa no pescoço."Eles gostam de duelar... Os vícios, avareza e inércia, sabe, por exemplo, estamos aqui...", ela estalou os dedos, "e passamos um tempão conversando até que alguma coisa em mim diz que eu posso dividir a minha capa com você... Seria uma boa, não seria? Menos gente procurando duelistas e menos estragos no plano físico, mas e depois? Você vai aprender que neste Raio a matéria é completa e definitivamente determinada, seja para o bem ou para o mal, ela culmina em algo fixo. Isso quer dizer que sem o peso da conquista você não experimentaria a imagem mágica deste plano... Você consegue entender?"
Apesar de não concordar eu fiz que sim. Eu sempre fazia que sim e sabia que mesmo respeitando as tradições e caindo nos vícios de promover disputas que beiravam a imbecilidade, talvez o que eu estivesse sentindo fosse medo de ser eu ali, no lugar de His tendo de escolher com que padrão eu tomaria uma surra. Aprendizes, zeladores e práticos evitarem responder aos apelos duelísticos de meia dúzia de aspirantes, fazia sentido agora. Quem é que se arriscaria a simplesmente aceitar o desejo do outro, sem nada em troca? Não era de todo vergonhoso ceder sua capa a alguém, mas havia aquilo de merecer. "Mérito é uma grande bobagem" Lici disse de súbito como se lesse a minha mente, talvez até fosse isso mesmo.
"Aah, é!", exclamei.
Desde o episódio com o pombo-LEGO até o momento no qual percebi que Radu professor do que em escolas normais estaria entre gramática e literatura, transformou-se em uma massa difusa atrás da mesa. Eu sentia que havia algo a mais. Suponho que isso soe arrogante, mas não quero a compaixão de vocês, aliás sequer pretendo me desculpar, o Liceu era o que eu esperava, poucos alunos, salas acolhedoras, apinhadas de carteiras amontoadas ao fundo, o semicírculo com o qual tive de lidar nas primeiras semanas quase cristalizado, meus colegas iam bem nas leituras e apontamentos durante as exposições, não eram o exemplo do amigável, mas não viam problemas em trocar olhares e distribuir breves ois e olás e ahoys (o.k., esse último, ideia minha, e não saiu como o esperado). Não existia ninguém cuja beleza sobressaísse, nem mesmo um carisma em miniatura. Nada. Zero. Isso até a sensação de olhar de fora, um aprofundamento e Radu agora é uma esfinge e diz: Não queiram saber... Busquem, seus porras.
Eu estava dentro.
O frêmito causou arrepios, ao menos em mim, que inesperadamente resgatei a imagem da minha irmã passando os dentes numa colher enquanto tomava sorvete. Meu ponto fraco, ela sabia. Fiz uma careta e passei a língua nos dentes da frente. Lici estava sentada sobre as pernas, a capa agora era um turbante verde brilhante. His havia escolhido um padrão corpóreo e todos os que assistiam ao duelo ou a maioria soltou um uivo cadenciado. Perguntei a Lici o que exatamente eles poderiam, exatamente assim:
"Lici o eles poderiam... tipo, o que eles podem fazer com isso de corpóreo?"
"Lixo", disse ela, erguendo os olhos de modo melodramático, "eles podem usar qualquer coisa, e fica melhor quando usam lixo".
Pouco depois da explicação de Lici eu entendi o que ela quis dizer com lixo. O duelista aprendiz desabotoou a miniatura do emblema de sua capa e disse num sussurro o que precisava dizer com a mão em viseira. Enquanto isso, Lici me acertava uma cotovelada – era hora da explicação – ao menos funcionou assim durante todo o duelo. "Você nunca viu um padrão corpóreo, viu?" Instantes após a pergunta ele estava lá. Pendurado numa das grades, um carrinho de supermercado. Lici e os outros riam.
"Um carrinho de super... mercado?"
"Uma – pausa para respirar, uma, duas, três vezes – loucura não é?" Ela parou, um dedo no ar; seu olhar perscrutava o meu rosto confuso. "Você vai entender... Padrões corpóreos seguem regrinhas, você precisa conhecer basicamente como um público reage, acredito que esse seja o totem original, um carrinho de supermercado pendurado em um lugar inusitado, um movimento do bobo da corte, que faz rir... é espontâneo", ela precisou se conter ao olhar para o alto, para o objeto inusitado equilibrado num mastro, na grade, "Abóqui, vamos lá... Um totem pode ser qualquer coisa e nesse plano totens estão diretamente relacionados a coisas comuns... qualquer coisa e essa coisa, esse totem vai carregar dentro de si significados, potências, movimentos... Por isso" ela fez beicinho e passou os dedos ao redor da boca "Por isso precisamos compreender a essência de cada movimento... Movimentos por extensão são, por exemplo, qualquer modelo... qualquer padrão, ao mesmo tempo que os padrões corpóreo e... Olha, esqueça os padrões de antes, vamos chamá-los de referências, tudo bem? – pausa para seguir com os olhos o meu movimento de cabeça – Ótimo, ótimo, o.k., então essas referências elas podem ser corpóreas ou intelectivas ou... ou alegóricas e tem também as outras que ele – ela aponta para o duelista aprendiz –, mostrou no forro da capa, tudo bem? – eu faço que sim – Pois bem, aquilo tudo lá eram emblemas de totens, miniaturas, parte do que um dia foi um totem manifestado por aí e então capturado, é o que fazemos, em geral antes de seguirmos com a nossa formação, se seremos zeladores que mais parecem Homens de Preto ou prácticus que lembram aqueles desenhos do Moebius, contemplando cristais e voando em pássaros sem pescoço – ela dá um quarto de sorriso e continua – totens são representações de vontades coletivas, em geral eles representam o que fizemos dele ao longo do tempo, você pode até me perguntar – ela faz cara de que sou eu perguntando – Felicitas, mas totens não são esculturas, animaizinhos empilhados, no pica-pau, o desenho, eu lembro e papapa, entende? Aquilo são totens, veja, também são totens, mas hoje... Desde que descobrimos como fazer alguém comprar este ou aquele creme dental com a promessa de que através de minúsculos cristais de isso ou daquilo e papapa e não sei mais o quê a gente vai e compra e continua comprando, mesmo não vendo diferença no branqueamento dos dentes... Entenda, os totens hoje estão diretamente ligados às coisas, mas isso não tira a mágica da... da coisa, alguns simplesmente se manifestam porque parte deles esteve ou está no interior de algo – eu fiz que sim e tentei roubar o turno de fala, mas ela continuou como se tivesse lido minha mente, de novo – Uma pomba, por exemplo – e eu assenti com movimentos mais curtos, sacudindo as bochechas – Uma pomba pode manifestar-se como um totem se, por acaso ela ingerir parte de um ou mesmo... Se eu copiar um movimento famoso, por isso, movimento, chamamos movimento, entendeu?
Os movimentos são imitações, reproduções, emulações baratas de padrões passíveis de serem reproduzidos por qualquer um aqui... Ou criados... Enfim, intimamente é tudo a mesma coisa, mas com funções diferentes para nós, aqui, agora. Quando ele fez o movimento que correspondia a essência do totem naquele emblema. Não, não – ela respondeu quando questionei roubando finalmente o turno se movimentos eram mesmo movimentos – de volta: Movimentos... É mais como chamamos, mas pode ser um pensamento, uma forma-pensamento, pode ser também um movimento, um sinal, pode ser uma palavra-chave, um fascínio... Eu não sei, hmmm talvez seja porque tudo está em movimento, está em ritmo constante e quando intencionamos manifestar a essência do totem no emblema em um duelo estamos vibrando num mesmo ritmo para que ele se manifeste, talvez seja isso, talvez eu esteja viajando, mas faz sentido, faz sentido, não faz? Faz, faz sentido Abóqui, faz sim. Por isso um carrinho de supermercado, porque faz sentido em algum nível. E nesse nível, nessa referência a essência do totem corresponda a um dos doze movimentos conhecidos por neófitos, que é como os aprendizes são chamados pelos de cima. Aqui embaixo, no papel de probas a gente recebe a palavra-chave o mote temporário, nosso primeiro nome... Eu Isti, você Hoc, o colega que agora tá levando uma sova: His. Isso é o bastante para que consigamos acessar o Mistério do lugar de onde estamos, digamos que nós somos o Charmander". Eu sorri, ela era das minhas com referências. "Os aprendizes, zeladores e prácticus são o Charmeleon e daí em diante talvez algum dia venhamos a ser o Charizard. Gostou? Eu prefiro Digimon, mas Pokémon é um clássico.
Embora tivesse uma vaga intuição de que minha insatisfação nas primeiras semanas estava em criar expectativas, o Liceu R.F.B era até aquele momento um local que cumpria o que precisava ser cumprido. As aulas eram mesmo autônomas e abertas para assuntos que nos interessavam e isso culminava em mais tempo pesquisando e fichando que ouvindo e assinalando. Não lembro bem da primeira aula, nem da segunda... Se bem que nem da terceira ou quarta. Eu havia parado de contar, essa é a verdade. Minhas pesquisas orbitavam dois temos elegidos por mim a pedido da coordenadora, escolha dois temas, ela disse, um que você tenha interesse e facilidade e outro que você acredite não desenvolver tão bem. Eu escolhi filosofia e física.
O professor que norteava as questões para assuntos filosóficos guardava um ar de ermitão e gostava que nós falássemos e falássemos e falássemos e então ele assentia e questionava outro aluno ou aluna e isso até pouco antes de ele sugerir que lêssemos os clássicos e abria o gavetão de sua mesona à cata de algum livro que pudesse nos mostrar. Fazia isso até mudar de assunto e falar sobre outro autor cujo nome ele pronunciava com sotaque alemão ou francês ou algo inventado. Eu tinha a ligeira sensação de que era tudo inventado. Dali em diante passávamos o restante da aula tratando de amenidades e então o sinal e a sensação de liberdade.
Já, as aulas do que em tese seria Física em uma escola não-autônoma aconteciam às quintas e a professora responsável enganou a todos quando pediu que arrastássemos as mesas e cadeiras até perto das janelas. Hildegard ou Hilde como ela escreveu numa folha de fichário e colou na lousa com um tapa e cuspe – queria que compreendêssemos o contexto a partir de situações antes de aplicarmos na vida real (palavras dela). Em algum momento vou pedir que vocês me tragam aquela nuvem lá, estão vendo? E me digam o quanto ela pesa. E todos nos debruçávamos para olhar o céu pelos janelões antigos da fábrica. Ela falava mais alguma coisa agora engraçada e desconstruíamos a imagem de giganta durona (e isso porque ela era enorme, dois metros e sete, alguém arriscou. Ela podia desafiar alguém a medir quanto ela tem de altura, o que acham? Alguém sabe usar a técnica do pintor? Pintor? Do que cê tá falando? Ninguém? Como não conhecem? O que vocês fazem pra se divertir?) Aí ela baixava a guilhotina do janelão e continuava a conversa sobre nuvens e densidade e carinhas novas entre nós, agora quinze.
Eu esperava aquilo de iniciação que minha mãe havia comentado na primeira vez em que estivemos ali e até aquele momento, subindo escadas e seguindo a turba, repetidamente, há duas semanas, já achava que a capacidade de interpretação da minha mãe estivesse comprometida. Ninguém parecia muito interessado em iniciações ou trotes, as boas-vindas tinham ocorrido mornamente a partir de cartazes e fotografias antigas encaixadas em suportezinhos num painel ao lado da vaca púrpura. A mascote da escola. Nas fotos homenzinhos esbranquiçados, outros amarelados e havia ainda os acinzentados, todos trabalhando. Indo e vindo. Fazendo o que precisava ser feito. Reconheci mais para o centro, no alto, um retrato ovalado, Richard F. Button – Diplomata, fundador. Algumas fotografias pareciam cópias da mesma ou quem sabe fossem a mesma, diferenciadas por rabiscos leves que alguém parecia ter empreendido com cuidado a tentativa de apagá-los, dois ainda eram legíveis: Frater Cyliani e Soror Latona, um homem de longas suíças, escondia a mão às costas de uma mulher com óculos de mergulho ou talvez fosse ela precursora da moda cyberpunk ou alguma bizarrice do tipo. Dali até o momento no qual Radu vira esfinge vocês podem contar duas horas.
A voz de Radu ecoava e eu pestanejava demoradamente massageando as têmporas. Respire – era o comando que eu dava aos meus pulmões – respirem fundo, agora torça para que as coisas voltem ao que eram. Minhas mãos suavam, mal conseguia olhar para o Radu duplicado a minha frente. Senti a cabeça pesar como se uma força invisível desejasse ver meu cérebro esguichando pelas orelhas. Calafrios galopantes e os lábios secando drasticamente como quando você espera de boca aberta a dentista negar mais algumas vezes, ao telefone, a oferta de atualização da assinatura de tevê a cabo do consultório. Radu ficava bem como esfinge ali sobre a mesa, tinha dois pares de tetas. Imensas, com bicos em flor. Tetas virginais. Radu era uma esfinge de tez dourada e tetas núbias. E eu diminuía ou talvez estivesse afundando, a sensação era a mesma, não importava, eu podia ouvir meus órgãos se ajustando ao meu tamanho, pouso as palmas sobre o rosto, eu não posso senti-las ainda que soubesse que o comando do meu cérebro era aquele. Feche os olhos. Respire. Caralho... Respire. E então a sensação de falta, a falta de um degrau no escuro enquanto você desce uma escada. A falta e o susto e o pé de encontro ao chão que parece fremir, mas isso é o seu joelho que resiste, apesar de fraco. Você sua, as mãos empapadas contra o rosto... E então você apaga.
No duelo, no futuro, quando as coisas estavam aparentemente no controle meu amigo (embora ele ainda não soubesse) His ressignificando as letras de uma embalagem de Diamante Negro equilibra na palma da mão o pequeno cubo que emana um halo cristalino de sua própria consciência concreta. Aquilo era como o mote de His se parecia aos nossos olhos, um cubo furta-cor. As letras da embalagem ganharam proporções dantescas com um movimento dos dedos em riste, His pererecou pisando em falso e protegeu o rosto com os cotovelos ao aparar o ataque de um igualmente descomunal bicho-pau criado a partir de um palito de sorvete através do cristal piramidal que o duelista aprendiz mantinha suspenso, no alto, sobre a cabeça. Lici sussurrou na minha direção – o cristal piramidal era um aleph, que possibilitava a visão do Mecanismo do Universo. Eu não entendia, mas o duelista aprendiz não teria uma capa até pouco abaixo dos joelhos e um forro cravejado de emblemas se não estivesse a poucas pernadas do próximo grau.
"Se ele já não estiver em rito... de passagem, já deve ter passado... Ou está aguardando alguém do alto, minha nossa... Ele é quase um zelador ou um prático..."
Lici apertou os olhos quando His num movimento que para nativos digitais, no futuro, seria utilizado para ampliar imagens em telas touch screen, de supetão, transformou as letras gigantescas num cubo de textura pegajosa aparando o ataque descomedido do bicho-pau, no mesmo segundo, restos glutinosos caíram próximos aos probas e aprendizes que assistiam alvoroçados soltando aaaaas e oooos e uuuus a medida que as consciências concretas eram operadas. His, os pés separados, encenou uma dancinha, uma moção ampla com os braços e então o cubo engolfou o insetão – os movimentos das patas mortíferas enrijecendo e lançando extensas teias quebradiças num revide desalentado – His resistia bravamente, o esgotamento vinha em caretas. O cubo agora ínfimo era um fulgor areoso que volitava cintilando ao seu redor. E lá vinha o cotovelo de Lici mais uma vez: "Acabou" ela disse agitada, "acabou, acabou Abóqui!"
"Ele ganhou?" eu disse "Rápido assim?"
Foi possível distinguir a essência do cristal piramidal deixando o bicho-pau petrificado em resíduos de tipografia de embalagem de chocolate retornando ao duelista aprendiz na outra extremidade do pátio. O estrépido de vozes ecoou para além dos muros do Liceu. His quase sem nenhuma consciência concreta, seu cristal reduzido a areia iridescente havia imobilizado o adversário num duelo que nas palavras de Lici tinha sido: pura sorte. "Normalmente probas não duram muito" ela falou enquanto íamos em direção aos duelistas, "quando exposta uma consciência concreta toma forma e aí é dela que emana a nossa vontade e o movimento. Ele teve sorte, você viu a gema dele, quase sumiu... Se uma gema some, num duelo, você faz uma viagem até conseguir outra e pode ser que não encontre e aí desiste. Em dois anos, eu vi muitos probas desistindo... Ano passado, um cara, o mote dele era... Uestri, ele distorceu uma gema grandona, estava na vantagem, usava um corpóreo também, uma hora lá ele fez de uma casca de ovo uma estrutura insana, uma cuja base tinha um joystick e na frente, no outro lado do ovo, na ponta... e no meio um espiral com uma garra, o rosto reagia virando os olhos e estremecendo quando o probas manuseava. O desafio proposto pelo duelista era — controlar a garra até os emblemas na parte de baixo, isso entre tremores orgásticos do rosto. Eu não preciso dizer que o probas não desistiu, né? Se ele conseguisse um embleminha a capa e o emblema eram seus. Ingênuo. Apesar dos avisos de que a gema dele tinha virado uma impressão luminosa, ele continuou. O rosto borbulhava. A gema do duelista também estava comprometida, mas todo o mote utilizado era seu e o erro do probacionista foi tocar o joystick, se você toca uma forma-pensamento de outra pessoa ela drena a sua gema... Nosso amigo ali foi esperto em alterar o estado da matéria e imobilizar o monstro do aprendiz, mas foi sorte... Pura sorte, acredite".
Como mandava o figurino, o duelista derrotado cumprimentava o vencedor fazendo seu sinal e então os presentes faziam os seus em seguida. Um a um probas e aprendizes mostravam seus sinais, o cotovelo de Lici não conseguiu me acertar quando ela parou de falar e eu ergui os braços – meu sinal – os "óculos de sombra". His posicionava-se ao centro, aquilo era merecer. E Lici acaso, estava certa, não importava como, ao final, a egrégora dos sinais unia a todos. E os sinais... Nós os repetíamos até que a capa do vencedor começasse a encompridar.
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