CAPÍTULO 7 ou A figura com cabeça de cervo e os executivos na beira da estrada
(PARTE 1)
QUANDO SE DISPUSEREM a contar minha história não deixem passar o detalhe de que na noite da minha quase morte, me inspirei na obra-prima de Louis Fenillade, "Os Vampiros" (coisa que vocês cinéfilos ao estilo clichê devem fingir que viram, pois é o tipo de mentira que a gente conta para ganhar ((ou perder)) pontos, assim como quando leitores de círculos seletíssimos asseguram ter lido duas mil e oitocentas páginas de Em Busca do Tempo Perdido) o look preto da musa dos surrealistas (Musidora) que mais tarde inspiraria indumentárias modernosas. A Mulher-Gato da Michelle Pfeiffer, a título de exemplo ou mesmo o traje do Homem-Morcego. Laila falava de um grupo de amigos que eu nunca cheguei a conhecer de verdade ela tinha um namorado quatro ou cinco anos mais velho. Eles apareciam no encerramento de semestres, que era quando o namorado de Laila, a encontrava na casa de um deles. E então passavam as noites de sábado jogando Vampiro, a Máscara. Logo após a aula na qual a conheci Laila passou a agir como se de fato existisse algo para além de leituras em dupla. "As três melhores coisas da vida?" Falei sem na verdade pensar em algo que não fosse provocar uma sequência de comentários a respeito da minha má sorte ou incapacidade de experimenta-las.
"Comer, cagar... Trepar" repeti, como se não fosse algo que na minha cabeça soasse mais como o que eu não entendia em conversas exatamente como aquela. Das três "melhores coisas da vida" a última ainda não era uma realidade para mim e Laila não parecia interessada em saber o que eu achava. Era o que ela fazia, estabelecia verdades universais e estava tudo bem. Elas se manteriam sem questionamentos, as verdade, e não era difícil ouvir alguém reproduzindo o que Laila dizia.
Não foi uma surpresa quando no R.F.B a história sobre as capas desencadeou uma série de especulações que deixou ainda mais confusa a maneira de se obter uma. Primeiro o mote, o nome... Quando lhe dessem um nome esquisito em latim: Hic, Haec, Hoc ou quem sabe um Hanc, você então matutaria sobre um jeito de conseguir uma capa (capote/beca/manto/poncho, acreditem os nomes eram muitos). E desafiar o ex-probacionista mais próximo era uma prática comum entre os ingressantes.
Para dizer a verdade, ex-probacionistas nunca eram chamados assim, referir-se a alguém como ex qualquer coisa era o mesmo que chamar quem quer que fosse de algum nome impronunciável dotado de peso histórico e vexatório ou sem sorte, o ofendido interpretaria como menosprezo e isso porque em algum momento uma galera num jardim dedicado a Apolo, em algum momento antes de Cristo, porque as coisas aconteciam, ah, como aconteciam. E Apolo, vocês sabem... O deus dourado e bonitão, o jardim era em homenagem a ele, e lá... Uma escola, uma escola filosófica foi fundada, (a escola peripatética) e nela seus filósofos faziam exortações (essa palavra eu tive de pesquisar) que é o mesmo que incitar ou incentivar. Acontece que pela manhã o público incitado eram àqueles que faziam parte do clubinho e conheciam a respeito do que estava sendo discursado, por esse motivo o que se fazia mais cedo eram discursos esotéricos, assim com "s", ao passo que à tarde os discursos eram exotéricos (com "x") e eram sobre temas mais, digamos, simples, logo destinados a iniciantes e gente de fora do exterior: ex ex ex (piscadela de cumplicidade e entendimento, o.k.?)
Dizer ex-probacionista, portanto, soava como ofensa a aprendizes que tinham suas capas na altura dos joelhos, o que queria dizer também que provaram o que tinham de provar para passar da antecâmara, o não-grau. E eu sabia que se você não saísse da antecâmara aquilo de capas e emblemas e sinais não era pra você... Ou como eu ouvi algumas vezes:
Õpipoiss, quero dizer, ainda sobre os aprendizes, õpipoiss era uma palavra-de-não-segurança, ou funcionava como uma. Na época, se você alterasse seu país de origem no Orkut e alegasse que vivia na Estônia, por exemplo, novos aplicativos ficavam disponíveis a partir de um link, algo como "adicionar aplicativos" e õpipoiss, que descobri mais tarde (como a maioria das coisas no R.F.B), era aprendiz em estoniano e significava entre as agremiações, basicamente, alguém que tinha acesso ao que meros estudantes não tinham ainda ou não teriam porque em grupos de campo o cumprimento de regras era substancialmente desproporcional ao tipo de tratamento que iniciantes recebiam.
"Estônia" costumava ser código usual entre probacionistas e podia significar um convite para visitar o segundo prédio à noite para alguma prova ou testagem que valesse uma promessa. E promessas eram essenciais caso você quisesse seu primeiro emblema. Esse era outro caminho caso uma beca não estivesse ao alcance da sua probação. A promessa de colocar um emblema na disputa era o que probacionistas entoavam aos céus.
Isso porque conseguir um emblema antes de usar uma beca era o mesmo que forçar um aprendiz, zelador ou prático a ceder sua capa como sinal de reconhecimento ao feito. O que, a bem da verdade, me assustava na época, pois as orientações ambíguas de Adeptos incentivavam a disputa, são imprescindíveis para a formação de novos adeptos exemplares, era o que dizia as mensagens no quadro atrás da mascote. E não havia problema probacionistas desafiando estudantes mais experientes às 00h00 de uma sexta-feira em um prédio sem iluminação.
Eu me lembro de ser essa a orientação na primeira assembleia para definição de atribuições da minha agremiação. Probacionistas tinham como meta na sua primeira semana, após receberem seus codinomes (o meu, Hoc), atentarem para sinais atípicos. E para mim atípico ainda era observar pombos. Vocês vão entender. Meus colegas diziam que com sorte um primeiro emblema se mostraria naturalmente, para isso trabalhar a atenção plena era um diferencial e hoje não sei dizer, com certeza, quantas horas passei buscando nos arredores do R.F.B pombos e pássaros com alguma esquisitice, algum evento ou situação que parecesse estranha. Isso é claro, ignorando a sensação de estranhamento que a visão de um probacionista, um aprendiz, um zelador e um prático surgindo de uma ruazinha adjacente provocava.
Imaginem, era como observar um formigueiro ou colmeia ou, se vocês viram Matrix Reloaded, mais exatamente, a cena dos agentes Smith que chegam e chegam e de repente os efeitos se multiplicam e o Neo está agora lutando com uma centena de homenzinhos mal digitalizados de terno e gravata. Era assim, primeiro não havia ninguém e então algum deles e aí num piscar de olhos uma dúzia surgia em seus capotes mesmo sob o Sol a pino.
Acontecia assim, primeiro sentir-se só e então perto de absolutamente tudo no universo, como se as coisas simplesmente pulsassem, vivas e sencientes. Era uma regra, uma circunspeção que levava tempo até assentar dentro de cada um. E probacionistas... Nós representávamos o menor número nas primeiras semanas. Naquela primeira noite, após receber um mote e sentir como se o tempo passasse ágil e indiferente a nós, apesar dos relógios e da posição da luz. Ao voltar para casa, meu corpo respondeu pesadamente ao cruzar a soleira e o rosto inchado chamou alguma atenção. "Dormiu muito?" Teni perguntou desviando logo a atenção para a chamada do jornal do meio-dia. Ele assentiu quando respondi, algo entre a tentativa e um murmuro que, a bem da verdade, eu não sabia se tinha ou não saído de mim. O sonho com a figura de cabeça de cervo e os sujeitos de terno na beira da estrada ainda estava enevoado.
Espero que vocês entendam ou não julguem desistentes, sobre o sonho? Eu talvez consiga lembrar. Quer dizer, eu ainda não os anotava desesperadamente acreditando que houvesse ali uma mensagem sobre o paradeiro de um totem. Ainda não. Ah, e não digo isso como se passasse pela cabeça o abandono, em poucos passos, da caminhada, pois era o que nós aprendíamos nos primeiros dias vendo as salas se sobreporem, era assustador e resistir talvez porque você não fosse alguém que tinha mesmo objetivos bem definidos era aceitar a imposição de um outro mundo, literalmente, lhe forçando a moleira. Quem ainda não havia encontrado um totem naturalmente, como eu e os outros antes de mim, entregava-se ao julgo da pergunta norteadora de algum eco que tomasse a forma de um professor.
Meus dias após o despertar foram destinados a pensar na incapacidade do cinema no começo de tudo, quando criar uma continuidade de ações por meio de planos sucessivos só veio a acontecer mesmo em 1900 com a exibição dum filme sobre um tal ataque a uma missão chinesa, não no R.F.B... Digo, isso aconteceu em Sussex (Probacionistas eram como essa tentativa de ser um divisor de águas na história do cinema. Ou ainda, na história do Liceu TLGPAOEEEASD Richard F. Burton. O nome, inclusive, parecia uma tentativa afortunada de causar problemas sequenciais, uma vez que Liceu Escritor, Tradutor, Linguísta, Geógrafo, Poeta, Antropólogo, Orientalista, Erudito, Espadachim, Explorador, Agente Secreto e Diplomata Richard Francis Burton era quase impossível de memorizar se você estivesse mesmo desejando aprender alguma coisa que não fosse só o nome do lugar)... Daí as referências fílmicas, pois meu relato começa num flashback , mas isso vocês devem ter percebido.
No R.F.B tornar-se aprendiz era como avançar alguns anos e ainda em contexto fílmico representa o que Georges Méliès fez em Le Voyage à travers l'impossible explorando conceitos há muito desejados pela humanidade: viagens espaciais e submarinas. Aprendizes viajam... Exploram... Desafiam os limites... E produzem seus próprios Guias de Campo, costuram as páginas e marcam as frentes com codinomes e iniciais, e então saem em seus pares ou quintetos para observar o invisível com ou sem becas. O que em linhas gerais tratava-se de uma atividade arriscada se você não utilizasse alguns dos segredos de um quarto de hora (era o tipo de informação que você adquiria num catálogo discreto que não diferia de um cardápio a lá carte do seu restaurante favorito. Era imprescindível que um probacionista antes da sua primeira atividade externa tivesse cumprido as dez pernadas ((ou passos)) na antecâmara (((em algum momento posso citá-las aqui, sem referências))).
E então ele ou ela receberia um segredo. Um tipo de sinal ou coisa que o valha que, por via das dúvidas, só poderia ser utilizado se estivesse na companhia de um par, pois sinais, eram o que contavam a você baixinho, no ouvido, pouco antes de recebê-los: Se você já viu como funciona o mecanismo de uma âncora, não vai estranhar quando precisar usar o sinal.
Correndo o risco de não escrever exatamente o que preciso neste capítulo gostaria de tentar mais algumas palavras sobre cardápios. Vejamos, no tal cardápio a lá carte o trabalho em equipe era o quarto item das pernadas, algo mais para: reconheça os integrantes do seu grupo e seus sinais de comando. Quer dizer, seus segredos... Imaginem que a orientação era basicamente ensaiar uma dança constrangedora coreografada pelo líder do grupo em parceria com o segundo em comando e que vocês tinham de manter em segredo. Segredo absoluto. Sem deixar que mais ninguém presenciasse... Isso precisa, não sei, ser transformado em tema de capítulo em algum momento. Os sinais de comando passando por um escrutínio, mais, digamos, analítico uma vez que eram específicos e em certa medida arquetípicos. Antecipo (degustação, vamos lá) meu sinal, aqui pra vocês.
Ahm, Meu sinal era... Ahm, vejamos se consigo, não, primeiro... Primeiro esse contato, essa coisa que minha mãe percebia e os outros não. É, talvez não seja a hora de começar a julgar essas linhas como nonsenses ou bizarras. O livro todo é basicamente assim com isso ou aquilo sobre teoria oculta. Eu sei, em alguma medida talvez soe familiar ou não... Acontece que é difícil descrever se você não estiver aqui me olhando enquanto eu o faço, meu sinal, eu já disse, certo? Pois é, ele é como a parte mínima de uma coreografia. Ainda assim, acreditem quando digo que é especialmente provinciano. Ridículo até. Eu estou tentando não rir, espere aí... O.k., meu sinal... (pigarro) é um óculos de sombra).
E acreditem, um segredo era garantia para estar são e salvo ainda que por um quarto de hora (essa era uma das medidas que o Liceu precisava tomar, apesar da desconfiança dos probacionistas de que estavam, no Liceu, preocupados mesmo com a exposição das atividades misteriosas e não com a vida de meia dúzia de possíveis adeptos). Os detalhes são tantos, eu queria que vocês pudessem assistir tudo de camarote dentro da minha cabeça. Mas, vamos lá... Passado esse tempo (de um quarto de hora) era arriscado perder-se ou então enfrentar consequências das quais ninguém conseguia falar de verdade. Tipo, era impossível mesmo, falar.
Como se o próprio R.F.B, o prédio e seus muros, os portões e cada paralelepípedo do pátio dificultasse a transmissão da mensagem fosse oral, fosse escrita... Mesmo se discretamente rabiscada no espaço entre as linhas de texto. Acreditem, muita gente já tinha tentado. Os desistentes, muitos deles tentaram e ainda conta-se histórias de probas caindo repentinamente no sono ao burlarem o sistema ou no pior dos casos perdendo a visão e a audição ao mesmo tempo e isso por algumas horas. Não tentar descobrir nada que não estivesse ao meu alcance como probacionista ou proba... Proba, tudo bem? Doravante é o que eles colocam quando estabelecem que uma coisa passará a ser chamada assim, não é? Enfim, agora... Doravante, proba. Pois sim, aquele era o primeiro item da minha lista cujo título era "Como não morrer na R.F.B".
Check!
Agora, quero contar sobre os Zeladores, isso se ainda não se chatearam com referências fílmicas ou se perdido abas e pesquisas, tenho essa: Charles Chaplin ou a modernização a partir da movimentação de câmeras e montagem paralela. Zeladores eram responsáveis por apagar rastros, ahm limpar a "cena do crime" dando sequência ao cotidiano nada especial que inclusive era o que eu vivia antes de despertar para o novo R.F.B. Eles, os zeladores, levavam livros de bolso e quase não utilizavam emblemas. Eram discretíssimos. Atrás de suas máscaras vítreas quando precisavam estar lá sem que fosse possível percebê-los. Não tratavam diretamente com totens, estavam mais relacionados ao apagamento das pegadas de adeptos que em campo foram pouco cautelosos (eu gostava de pensar que o trabalho de um zelador era o que mais tinha a ver comigo apesar das amarras do mundo real interferirem em acreditar que se um dia o fosse, teria de conviver com a ideia de responder que eu era ZELADOR, assim mesmo:
"Oi, o que você faz da vida?" E a pessoa hipotética diz tudo isso de forma delicada. Pois entendia que eram perguntas mesmo delicadas ou então isso era eu interferindo até nas pessoas hipotéticas dos exemplos. Vejamos, talvez dissessem sem a delicadeza, fosse mais uma pergunta de supetão, de momentos no elevador ou em fumódromos, apesar de eu nunca ter fumado, não de verdade, mas isso é outra história. Digamos que só perguntam, assim mesmo oi-o-que-você-faz-da-vida-ponto-de-interrogação. E então eu:
"Ze-la-dor."
O jeito com que aquela gente, no Liceu, lidava com zeladores não era assim e talvez por isso me surpreendesse. "Um zelator é essencial na sua equipe Hoc", Hilde me disse quando mais uma vez a pressão sobre a cabeça atravessou meu corpo e plim, as irmãs J e o carinha de coturno ficando para trás em algum beiral das realidades nas quais eu não era uma lembrança. Foi ali que entendi como funcionava inclusive a inserção de novos aspirantes ao grau mínimo de probacionista. Como você de repente se vê numa mesma sala, vislumbrando o mesmo professor, só que agora duplicado dada a sua aptidão para o Mistério. E num plano o professor abre a aula com uma pergunta norteadora sobre cartografia ao passo que no outro estamos as voltas com objetos que tem representação simbólica dos diferentes aspectos da presença, funcionando sobre o plano para o qual pretende-se elevar a consciência do aspirante. Era assim que aprendizes eram chamados de ôpipoiss, digo, quando acessavam os ecos da forma-pensamento em aulas mais avançadas a partir de formulações e sinais que eu ainda não conhecia.
De modo um pouco operístico, os práticos ou practicus no caso de referir-se a homens e mulheres (distinção que curiosamente não existia no caso de zeladores, ambos eram denominados 'zelador' ou 'zelator' com 't', mas ninguém mais falava assim), ainda sob meu tino fílmico, representaram, os práticos, o que foi no campo do cinema, os filmes épicos. Ao contrário dos zeladores que limpavam e faziam com que as coisas voltassem a ser como eram sem o advento de emblemas. Practicus eram responsáveis, digamos, pelos efeitos especiais de cenários grandiosos. Todavia, prefiro deixar para uma outra hora a exposição de detalhes que coloquem o trabalho de um practicus no campo da simplicidade senhoras e senhores. Ainda assim era pré-requisito que fossem bem-humorados, nenhum practicus era diferente de alguém da burguesia francesa que não tenha influenciado os salões de moda sobrepondo a maior quantidade de peças e misturando tonalidades e texturas, queria poder lembrar em que momento ouvi esse exemplo. O problema das orlas de outras realidades que caiam sobre nós, todos os dias, era a sensação permanente de sonho. E Practicus eram os primeiros a idealizarem como um emblema teriam de ser e então extraiam diretamente do imenso Todo Mental e davam forma-pensamento ao que para nós era essencial no controle da realidade deste lado.
E o Liceu...
O Liceu como o descrevi até aqui simplesmente apareceu, um dia... Como se houvessem escolas sobrepostas, como uma folha de papel vegetal sobre um desenho, aliás, o exemplo fica melhor assim mesmo. Não, papel vegetal não. Estava mais para uma folha branca, mais fina que as demais, conseguem imaginar? E então você a pega e posiciona adequadamente sobre a imagem e tenta contornar, porém sem os detalhes. O R.F.B-folha-branca-mais-fina-que-as-demais tinha sido como eu o conheci antes de a folha simplesmente rasgar e eu ver distintamente a imagem.
Acontece como um amontoado de eventos desconexos, mas que seguramente estão contando uma mesma história, estão se mostrando a você... Foi assim comigo. Não porque eu tinha a mesma cabeça de abóbora e esse nome esquisito. Aconteceu após de uma piscada solene de frente para o que eu tinha visto e aí achei que fosse um digamos – efeito – diferente da crise de despersonalização.
Foi assim:
O Julian Casablancas cantava "Well, I've been in town for just about fifteen-oh minutes now..." no meu único fone bom, a tarde tinha aquele alaranjamento nostálgico das aulas de educação física fora de horário do ensino fundamental. Um grupelho de pombos disputava o que quer que fosse possível disputar correndo e bicando, correndo e bicando. Eu saia em direção ao pátio principal quando me peguei fitando especialmente um pombo, feioso e magro, possivelmente doente, pois não estava metido com os outros; correndo e bicando, correndo e bicando. Lamentei apesar de não achar que pudesse fazer alguma coisa. Era realmente feioso e eu não conseguia desgrudar os olhos dele. Faltava-lhe uma das patas – um pombo pirata – foi a primeira coisa na qual pensei ao vê-lo finalmente manquitolar com o cotoco que lembrava a coloração rosada das borrachinhas mastigáveis na ponta dos lápis que devolvíamos à caneca da estagiária no balcão da biblioteca. Foi nesse segundo que o sinal tocou para as aulas da tarde. Alguns alunos apressaram os passos e aquilo foi suficiente para que os pombos disparassem todos para sentidos diferentes no ar e o pombo manco... O pombo manco, diante dos meus olhos, desmontou-se. Desmontou-se em pleno voo e por não sei quanto tempo eu pude vê-lo por dentro, os músculos e os órgãos e os ossos e os vapores internos em contato com o ar frio e tão repentinamente quanto na desmontagem ele se reconfigurou, pousando mais adiante, agora com ambas as patas, sem manquitolar. Regenerado.
Eu sorri e resfoleguei numa quase tosse... Num piparote cardíaco... Num instante de procura por alguém que tenha presenciado a cena do pombo-LEGO. E como vocês podem imaginar ou não. Não havia ninguém... Ninguém... Ninguém! Nenhum dos estudantes que iam em direção a saída principal ou entravam apressados pareciam interessados em pombos. Aquilo, eu soube depois, era meu primeiro totem manifestado naturalmente. E aquilo era em termos náuticos a mesma coisa que – lançar sinalizadores em uma situação de naufrágio. Isso porque se você presenciasse um evento que estivesse além da sua compreensão e se esse evento fosse um totem que decidiu, ainda que totens não decidissem, era um dilema entre pesquisadores dos mistérios na época, se totens eram ou não sencientes. Fossem ou não... Eu acreditei por semanas que estava tendo uma crise.
Se vocês fizerem uma pesquisa rápida descobrirão que entre as condições de saúde relacionadas à síndrome de despersonalização/desrealização estão a abstinência, a esquizofrenia e a psicose... Isso se vocês não toparem com um breve informe sobre o surgimento em pessoas que sofreram estresse grave, abusos ou negligência durante a infância. Eu não conseguia entrar num consenso sobre o que me levou a despersonalizar. Mas o histórico era o seguinte: Aos nove anos apresentei os primeiros estados de alteração. Aos doze as crises passaram a interferir na minha vida escolar... Aos catorze os sintomas diminuíram substancialmente (eu gostava ((ainda gosto)) de dizer: substancialmente, me dá certa segurança de que nem tudo é sólido... E na despersonalização as coisas parecem ganhar uma repetição sólida, incontrolável, rítmica a ponto de ser quase impossível não pensar que seu corpo é uma orquestra desafinada... Eu nunca encontrei ninguém que soubesse descrever o que eu sentia, entendam que essa é a primeira tentativa escrevendo para estranhos).
O.k., passado sintomático a parte, foi depois do pombo-LEGO que os primeiros alunos usando ponchos, eu achava que eram ponchos, aliás, para mim pareciam ponchos. Enfim, eu passei a percebê-los com a sensação de que já os conhecia, num tipo de Déjà vu de ter estado ali antes (Isso tinha um nome até) com aquelas mesmas pessoas e seus ponchos com forros que nas primeiras vezes eu não soube descrever se tinham ou não motivos ou se eram ou não coloridos. Emblemas feitos com a essência de totens nem sempre são visíveis quando ornados sob as capas, o que confere a eles essa coisa de cor-mas-não-cor (é como se eu pedisse que vocês em poucos segundos descrevessem uma cor que nunca viram. É improvável que seja possível sem antes pensar numa cor que exista. Logo, as cores sob as capas eram o reflexo de como quem via estava se sentindo. Era possível descrever uma bacia de esmaltes e não chegar a um consenso, digamos, colorífico, da coisa).
Foi, sem dúvida, o evento mais importante desde a matrícula na secretaria-estufa do R.F.B. Os dias que se seguiram desde a visão do pombo-LEGO me fizeram evitar dar muita atenção aos que perambulavam acompanhados de pardaizinhos saltitantes, nos pátios. Eu tinha visto filmes o bastante para saber que precisava de ajuda. Apesar disso também sabia que preocupar minha mãe àquela altura era correr o risco de perder a chance de continuar no Liceu... E Laila. Então preferi levar a coisa como evento isolado número 1 e esperar que contabilizasse um evento isolado número 3. Até ali, para mim, o que quer que voltasse a acontecer não passaria duma reação do cérebro checando memórias que criadas recentemente.
Nos quadros de avisos do prédio principal, o mesmo quadro com horários, salas e nomes dos professores, não era difícil encontrar convites para grupos que promoviam atividades meditativas, dentre outras coisas. Era isso. Respirar. 4-7-8. Respirar e espairecer... Mudar de assunto... Sem pombos-LEGO, sem despersonalização. Era só respirar.
Respire: Inspiro contando até quatro, seguro no sete, solte sonoramente no oito. Repita... Isso, muito bem... Agora pense em como você superou...
Vocês sabiam que existem quatro tipos de Déjà vu? E um dos tipos me levou a capturar meu primeiro emblema de totem manifestado? A sensação foi a mesma que com o pombo-LEGO, mas na ocasião foi uma figura com cabeça de cervo e uns executivos na beira da estrada...
(Fim da Parte 1...
Siga para a PARTE 2)
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