CAPÍTULO 5 ou A pessoa é feliz, alguém diz
O PROFESSOR VAI E DIZ:
"O amor é, mais que qualquer coisa, como isso aqui congelado abaixo de -30ºC e subjugado a uma pressão a vácuo fazendo com que toda a água passe do estado sólido, congelada, certo? para o gasoso e o resultado é o mesmo do macarrão instantâneo. Se quiserem uma imagem estranha: anotem aí, manuscrito de summa da Bibliothèque de L'Arsenal, no país do beijo de língua. Anotaram? Menos mal, agora visualizem aí... A pombinha lá, feia, feia coitada... Ela, o bico assim, boca de chupa... Cês sabem, não sabem? É, (estala a língua) eu sei que sabem... Pois é, ela lá... Ascendendo aos céus sobrevoando um paredão escarpado, ao passo que um solzinho, possivelmente aposentado da Ri Happy depois da fraqueza súbita nos músculos de uma metade da cara... Você já imaginaram o terror que deve ser sorrir o tempo todo? Hein? Já... E como é?"
"A pessoa é feliz", alguém disse.
Aquilo aconteceu de verdade, a resposta ao comentário retórico do Radu e responder a um comentário retórico do Radu era como enfrentar o próprio voivoda da Valáquia ou como alguém escreveu uma vez na lousa ao lado do nome a giz Radu-ken!
E desde a piada com o nome que eu realmente, na época, não fazia ideia de quem tinha sido o autor. Radu num salto vertiginoso de dar um novo significado ao famoso golpe de Street Fighter (HADOUKEN, a título de informação), passou a escrever RADU(KEN) na lousa sempre que suas respostas fossem notas de zero a dois conferidas oralmente, afinal o R.F.B não ligava muito pra pontuação. Lembro que o primeiro sete que Radu deu em resposta foi para um aluno que magicamente ou de alguma outra maneira teve acesso à questão (única) proferida por Radu sem o direito a repetição.
E aqui vai um breve esclarecimento:
Acreditem quando digo "magicamente", pois no R.F.B – magicamente – era possível se você compreendesse que existiam expansões e planos de manifestação que poderiam ser acessados se você os percebesse com as devidas chaves e treinamento (pois é, doideira).
E então essas expansões meio que encontrariam em você, através da sua consciência (dependendo das suas especialidades conquistadas) a designação dos Raios (a atribuição de algo, neste caso um nome/cor, daí – Raios) e se depositariam como sedimento no fundo de um rio ou coisa parecida (essa analogia fica sempre ruim, eu nunca nem entrei num rio) até se ocultarem novamente. E pensava que talvez Laila soubesse disso, talvez ela estivesse em algum desses Raios e isso explicaria muita coisa, ainda não não fizesse sentido para mim o desaparecimento e como as coisas se deram depois. Os pais dela se mudando o fato de eu ainda existir e acreditar que embora não estivesse no grimório, foi para mim que eles mandaram um tempo depois. E eu até chorei quando abri o envelope. Ela talvez quisesse que eu desse continuidade ou não, sei lá... Às vezes me pego pensando que não sou o tipo de pessoa que iria até o fim se as coisas passarem a ficar mais complicadas ou perigosas. A gente cai no erro de acreditar que pode fazer alguma diferença pensando no outro, na amiga por quem você nutria algum sentimento forte que talvez fosse mesmo amor ou uma paixão adolescente, afinal, ela era mesmo incrível e tinha aquilo de beleza que você gostava nas pessoas e até era engraçada. Mas a vida é mais que isso... Não é bem uma obsessão inconsciente que vai obrigar você a ficar sem comer ou dormir, ainda que a insônia tenha sido um problemão nos meses que se seguiram ao desaparecimento dela. Se Laila estivesse em algum dos planos, Raios, câmaras ou sei lá mais como chamavam... Eu ia descobrir.
Acontece que a exemplo de um jogo de LEGO, os planos de percepção humana são como peças DUPLO para crianças com até cinco anos, em geral, limitadas a um mesmo sentido ou função (grandes demais para serem ingeridas, por exemplo), ao passo que os planos dos Raios são como o Legoland – com maior variedade de peças e possibilidades de montagem. O Legoland é, por assim dizer, a força dos Raios – e se você, por meio de um passo a passo, como num ritual ou no caso do LEGO, um manual, decidir construir um Darth Vader gigante para exibir na porta da mesma Ri Happy do solzinho aposentado por paralisia facial do exemplo do mestre Radu – (você) vai precisar entender que cada pecinha precisa estar no seu lugar, formando um fluxo em miniatura, para compor o LEGO gigante do Darth Vader, certo?
Assim é também com o acesso ao que os Raios revelam. Você precisa construir um fluxo de contato (quando me falavam sobre entender os Mistérios do Universo eu achava que era igual no Fantasia, da Disney, sabe? O Mickey com um chapéu pontudo, aprendiz de feiticeiro, fazendo uma caralhada de coisa e fodendo geral com umas vassouras de luvinha carregando baldes d'água). No entanto, como nas peças de LEGO, é muito raro uma pessoa nascer como a escolhida ou como no LEGO com todas as peças ideais e que jamais sofrerão influência ou distorções ao longo dos anos que o Darth Vader reencarnar em frente a loja.
(Reencarnar... Tabuzão, eu sei, eu nem acreditava que estava vivendo adequadamente esta vida, imagine uma outra. Mas para acessar esse tipo de informação eu tinha que terminar meu passo a passo como Iniciante. Talvez Laila já tivesse passado por isso) Assim, o acesso ao que os Raios têm a nos ensinar precisa ser antes de tudo pensado dentro das nossas limitações. Radu gostava de nos desafiar com ensinamentos mágicos em cenários obscenos, no final das atividades teóricas, ele sempre dizia coisas como:
"Vocês que estão focados em usar borsettas... Eu disse borsettas, alguém aqui conhece Renato Carosone? Tu vuo' fa' l'americano? Não? Deveriam saber", e cantava:
Ma e solde p' e' Ccamel
Chi te li da
La borsetta di mamma'
E continuava: "Pois anotem... Enfim, borsettas... Se vocês estão focados em usar borsettinhas deveriam estar focados em aprender a usar a cabecinha, e vocês que estão focados usando as cabecinhas deveriam aprender a usar uma borsettinha. Nenhum é suficiente sozinho. O.k, pimpolhos?"
E então alguém pensava alto: Babaca machista.
E ele bradava desembrulhando o almoço à vácuo (que passou a ser a representação do Amor, na minha cabeça desde aquela aula) sentado à mesa:
"Aulas de telepatia pra quê, minha filha?"
(É, acreditem, telepatia era uma realidade, ainda que só fosse possível passar mensagens a partir de imagens, foi decepcionante descobrir que não era possível "ler" os pensamentos de alguém como no X-Men, mas eu gostava da maioria exercícios. Isso até Radu decidir nos ensinar sobre o perigo das doenças sexualmente transmissíveis ((na época não se falava ainda em infecções)) e mentalizar imagens de monstruosos Gremlins penianos e vaginas derretendo a lá A Bolha Assassina para transmiti-las à sua dupla no outro lado da sala, sem tirar os olhos da imagem terrível, era bem (muito mesmo) desagradável.
O sete do único aluno que tinha aprendido a usar a percepção sendo ainda tutorado com maior frequência veio depois de responder:
Conhecendo o partido único da Oceania como conhecemos em 1984, enumere os três princípios pelos quais o partido orientava-se ideologicamente e na sequência proponha um quarto princípio.
Acontece que ninguém sabe precisamente dizer o que o aluno da nota sete respondeu (o que vocês responderiam?)
(Passado)
O meu nome não estava na décima primeira lista de aprovados, logo a história da nota sete tinha sido contada pela minha irmã e ela tinha ouvido de uma amiga que era aluna no R.F.B havia um ano. O Liceu ETLGPAOEEEASD R. F. Burton ou só R.F.B como ficou conhecido dada a dificuldade de memorização, funcionava nas dependências de uma antiga fábrica alemã desativada em 1945, no Bairro Industrial. Era famosa por sua estrutura moldada por um dos pioneiros do concreto armado no início do século XX e pelo estilo industrial preservado, isso queria dizer – tijolos não revestidos, tubulações aparentes e o telhado da antiga fábrica à mostra. Além da aparência, a metodologia da escola promovia o exercício da autonomia – foi o que minha mãe leu em algum lugar – Em outras palavras, os alunos que sabem ensinam os alunos que não sabem. Passei os trinta primeiros minutos tendo no rosto uma invariável expressão de desespero quando minha mãe aparentemente entorpecida pelo trânsito falou sobre uma iniciação. Bem assim:
"Esse trânsito horrível me entorpece" e devolveu o braço para fora da janela do motorista "Ah... E parece que eles têm uma iniciação..."
Eu: "Iniciação?"
Ela: "Iniciação"
Eu: "Como assim?"
Ela levantou os ombros como que dizendo:
"Sei lá, se vira, você quis estudar longe de casa, são quase duas horas até esse fim de mundo... E você já olhou em volta? Não tem nada aqui, imagine isso aqui à noite, Jesusmariajosé que lugar feio, olha aí... Muro, muro, muro, muro e mais muro e esse trânsito? Uma ruazinha que desemboca numa avenida movimentada e vice-versa, você vai ter que aprender a dirigir logo, ah, é... Você ainda não pode... Não pense que vou viajar tudo isso (tragando o cigarro/prende a respiração/solta devagarinho) pra buscar você nesse mausoléu... Que lugar... Tem certeza que é aqui? Parece abandonado... O que eles ensinam aqui afinal, isso de aluno que sabe ensina aluno que não sabe e se ninguém souber nada? Deus do céu, eu já te desejei boa sorte? Enfim, boa sorte... Vamos lá... (buzinha) como é que essas pessoas conseguiram tirar carta, pelo amor do meu jesuscristinho, você vai ter que aprender a dirigir... Isso é inviável, minha nossa, olha aquilo... É aquilo lá, não é? Ufa... Pelo menos tem lugar pra estacionar... Olha só, eles poderiam construir alguma coisa aqui... Abrir um comérciozinho, algo que movimente. Que que cê acha, hein? Não vai falar nada?"
"Esse é o quinto?"
"Hein?"
"O cigarro..." falei após uma pausa pensativa.
"Ah, não sei... Eu não conto", ela disse olhando para o outro lado, a fim de esconder que contava.
Minha mãe seria bonita, não fosse aquele olhar que ela lançava para além do que estivesse olhando, como se estivesse enxergando as coisas por dentro, como se visse o avesso e isso talvez fosse demais. Veja bem, ela também não era uma mulher terrivelmente feia, o espaço entre os olhos, ela mesma alertava sobre eles, dizia: Vocês sabem o que significa uma cara de abóbora? E eu e meus irmão ríamos porque aos seis ou sete anos ter uma cara de abóbora era o que todos os homens e mulheres Aboboreira tinham e aos seis ou sete anos com os dentes caindo, as comparações com abóboras de Halloween eram inevitáveis e hilariantes. Isso até você passar por uma iniciação na sua nova escola na qual alguém tem a sensibilidade de tocar Smashing Pumpkins (Bullet With Butterfly Wings) enquanto orientam você a flexionar um joelho e manter o outro no chão no centro de um círculo com gente seminua que apontando pra você repete coisas como – Hic, Haec, Hoc – e depois apontando uns para os outros – Hi, Hae, Haec. E então depois te abraçam (ainda seminus e) te dão um codinome.
O meu? Ab hoc!
(lê-se: abóqui)
Um trocadilho com "Ad hoc" espelhando o b/d e "Ad hoc" em latim, eu soube com o tempo, significava "pessoa preparada para determinada missão".
"Ei, chegamos!" Ela disse olhando para mim, irritada "Pra onde é que você vai às vezes, hein?"
Eu suspirei. Não fosse por Laila eu talvez não conhecesse o R.F.B ou não me atentasse ao fato de minha irmã conhecia alguém que foi aluno lá.
"Hein?"
Eu massageei as têmporas com as pontas dos dedos estilo Professor X...
"Aí... De novo... Pra onde você foi?"
"De novo o quê?"
"Você some... Parece não estar aqui por alguns segundos e então volta. Tá tendo uma daquelas... Você sabe... Tá tomando o remédio direitinho?"
Eu fiz que sim, mantendo os olhos fechados.
"Você sabe que precisa me contar se estiver sentindo alguma coisa diferente..."
"Eu estou bem mãe..."
Talvez fosse aquilo de olhar para além do que estivesse olhando. Talvez fosse alguma estranheza dela, afinal meus irmãos estavam perto de casa, coisa de vinte minutos, com trânsito. E eu... Eu estava prestes a perceber que duas horas de transporte eram vantagem para se estar no R.F.B, mas é o tipo de coisa que vocês descobrirão sozinhos. Hoje concluo que minha mãe tinha aprendido a me perceber falando com vocês e tudo graças às crises de despersonalização do último ano.
No fundo, eu, em geral, gostava da companhia dela. Apesar de fingir que estava preocupada com o mundo. "Pelo menos eles têm uma área verde...", por exemplo, foi o que ela disse antes de arremessar o cigarro num lago artificial atrás de grades vermelhas, a bem da verdade, poderia ser chamado de poça acidental.
Seguimos após entrarmos por uma portinha também vermelha e atravessar um corredorzinho, que era mesmo zinho e mal cheiroso (não, fedia muito mesmo... Perdoem o eufemismo), esperei que minha mãe dissesse algo, mas ela limitou-se a assegurar que o penteado não resvalasse no teto baixo. "Mofo, mofo, mofo... E esse fedor..." falou com os dedos metidos no nariz. Ela estava certa — o lugar parecia abandonado.
"Eles talvez precisem abrir uma entrada... Derrubar um desses murões, fazer uma entrada de escola-escola mesmo... Não-ão, olha meu sapato..." Ela disse e um tipo de cogumelo que o Mário Bros acharia asqueroso, pra dizer o mínimo, jazia parcialmente esmagado no pico do seu sapato. A atenção no cogumelo me fez perder os primeiros instantes de frente para o pátio de paralelepípedos no qual Richard Francis Burton tinha pisado.
A história do Liceu (um montão de letras) R.F.B estava resumida em um parágrafo no blog da instituição. Segundo o único parágrafo, uma grande companhia inglesa comprou a última fábrica alemã em atividade no pós-guerra em parceria com a Indústria Brasileira de Embalagens e sete anos depois o Liceu foi inaugurado. Nos primeiros anos serviu como sede da biblioteca do diplomata inglês que emprestou seu nome a instituição e mais tarde como escritório de estudos monásticos e pesquisas da Natureza. Ainda é possível ler no prédio principal na pedra polida os dizeres:
LIBERTAR O ESPÍRITO POR MEIO DA MATÉRIA
LIBERTANDO A PRÓPRIA MATÉRIA POR MEIO DO ESPÍRITO
Hoje era uma escola de ensino médio no cê-uh do mundo com meia dúzia de alunos, integrada às pesquisas da Natureza iniciadas por Burton (e isso era o suprassumo do que todo mundo deveria aprender um dia).
Voltemos.
Transcorridos doze minutos de impaciência por parte da minha mãe (que batia com o dedo indicador no relóginho de pulso como se quisesse me lembrar da possibilidade de desistência). A porta, se é que posso chamar assim, abriu num sonoro arrastar de rodilhas. Minha mãe disparou atravessando a distância do banco de jardim fragilíssimo no qual aguardávamos até a abertura do balcão. Lá dentro fedia a repolho cozido.
"Oi"
A mulher do outro lado mostrou o indicador e manteve ele ali, como que marcando um ponto específico numa vidraça limpíssima, quase invisível (improvável considerando o estado das demais vidraças). Minha mãe rodou nos calcanhares, esbugalhou os olhos e manteve o que ia dizer entre os dedos da mão fechada, à frente da boca. A mulher do outro lado desaparecia e reaparecia emoldurada pelo balcão. Minha mãe a seguia com o olhar, esticando o pescoço e retraindo o pescoço, se equilibrando num salto só.
A luz diminuía com o passar das nuvens formando grandes flocões de sombra no piso de paralelepípedos lá fora, eu via pelo vidro esverdeado. Me esforçava para focalizar as coisas mais distantes, o queixo apoiado na mão. O lugar era mesmo enorme, ao longe os muros cobertos de hera alongavam-se até os limites do prédio principal e então ressurgiam contornando até o segundo prédio mais a leste (o.k., eu inventei esse ponto cardeal, a bem da verdade eu não fazia ideia se ali era mesmo o leste). O segundo prédio era um pouco menor e parecia mesmo abandonado, junto da parede o mato crescia alto em alguns pontos e tinham pichações, uma delas chamou minha atenção pouco antes de encontrarmos a secretaria, alguma coisa que tentei ler baixinho enquanto passamos:
"Kh... Khrys Phl-Phil...Kioun"
"KHRYS PHILKIOUN" Minha mãe gesticulou magnânima. "Mas não me pergunte o que significa", ela se adiantou "Eu tava tentando ler antes de você" disse, descartando a pompa com um gesto.
"Khrys Phil-ki-oun", eu repeti.
(Preciso dizer que a pichação se acenderia como se pichada com tinta especial quando ingressei nos Mistérios, era um tipo de aviso usado pelos caldeus em inscrições sobre tesouros ocultos, foi meu primeiro tutor quem disse. Caía a tarde quando eu a vi luzindo dourada iluminando até a frente da secretaria. A tutora disponível àquele fim de tarde era uma Adepta ou Zelador ou sei lá... Ela estava preparando-se para abrir um espacate entre o mundo abstrato e o material. A proposta, segundo ela, era meditarmos caminhando... meditação andante ou o que outros aprendizes chamavam de encher linguiça com arquétipos. Nas ocasiões era fato que Adeptos com seus aprendizes aproveitam para jogar conversa fora e respirar, "Pátios largos para conversas longas..." Ela disse ao final da nossa primeira caminhada.
Falávamos sobre leituras (que estavam atrasadas, no meu caso, porque era difícil se manter alerta na volta pra casa, o sacolejo do ônibus tinha o efeito de um boa noite Cinderela) e ideias entendidas como ideias sem forma, incapacitadas de manifestarem-se no que Radu chamou de PMA ou Plano da Mente Abstrata ou ainda Por favor, Mame Amor! Esse último seguido de uma gargalhada e um pedido de escusas alisando o bigode e ajeitando o turbante.
Segundo a tutora disponível àquela tarde (cujo nome não consigo lembrar agora), tudo fora do PMA precisa estar sob a tutela de alguém mais experiente, que serve de elo da cadeia por meio da qual o que ainda não foi criado, pois existe no plano das ideias... Nasce aqui, manifestado em matéria. E para isso precisa existir alguém deste lado, eu, que trabalhe, com o pé nos dois mundos. Do contrário... Você vai aprender isso quando sair da Antecâmara (a antecâmara era como os adeptos chamavam o período iniciático).
"Você viu Monstros S.A.?"ela quis saber, de repente.
"Do monstrão azul e da menininha..."
Ela assentiu interrompendo: "Assistimos sempre nos primeiros dias nos grupos de estudos sobre PMA"
"Le-gal" eu disse, olhos arregalados, cabeça meneando, boca ligeiramente aberta.
"O que foi?", ela perguntou, sem desviar a vista.
"Engraçado pensar que usam um filme infantil para explicar coisas sobre..."
"O mundo?"
"É... O mundo e você sabe, as outras coisas... Também..."
"Você já se perguntou a razão de o R.F.B ser assim?" Ela fez um gesto aberto com a mão espalmada – O Jet Li fazia igualzinho em O Mestre das Armas. "Não há como falar sobre o Todo Mental, sem um referencial simbólico... Aí está a importância das encenações, dos teatrinhos e das perfomances", ela disse serena.
Vocês já se perguntaram por que tendemos a pensar em coisas ridículas ou mesmo sem sentido quando nosso papel é ouvir e tentar extrair uma essência ubíqua? Em outras caminhadas pelo pátio do R.F.B com outros Adeptos a coisa funcionava assim: "Qual será a Spice Girl favorita dele?" ao mesmo tempo que... "Cores e sons têm papel importante na operação de transmudar as forças de um plano para seu correspondente..." E aí você só consegue pensar qual das Melanie ele prefere. Eu era uma piada com acesso aos Mistérios do Universo.
Às vezes eu me pegava pensando se os Mestres dos outros planos podiam me ouvir peidando... E se Laila talvez agora fosse uma Adepta ela talvez aparecesse como tutora a qualquer momento e falaria que masturbação visualizando com exercícios de telepatia o afresco do G. De La Perrière intitulado Art d'Amour era motivo para cogitar uma execução na fogueira, em público. E talvez eu até levasse a sério antes de entender. Neuroses a parte. Eu sabia que existia um motivo convincente para que tudo parecesse tão velho e ultrapassado no Liceu. Eu sabia que não via o R.F.B como ele se mostrava no plano das ideias (e pra dizer a verdade isso me assustava na época).
"A Boo, a criança do filme..." A Adepta disponível àquela tarde continuou "... entendemos o fato de perder uma meia e passar todo o filme com um só pé calçado como a relação que o Adepto tem com os dois mundos, o abstrato e o material. Adeptos não são o último elo, entenda... Do contrário não estaríamos aqui. Vocês estão sendo despertados aos poucos... Os Mistérios são tantos... O aprendiz durante o estágio inicial do seu treinamento executa tarefas que não exijam experiência, pois aqui vocês não estão servindo ao Liceu, mas a si mesmos... É como acordar de um sono profundo..."
"Tipo o Neo em Matrix... E o lance das pílulas?"
"Hmmm" ela balbuciou, uma certa rigidez no queixo, agora assustadoramente pontiagudo "Forçação de barra..."
Eu ri, embora gostasse de Matrix.)
"Existe a possibilidade de você conhecer uma Adepta chamada Laila?"
"Laila..." pensativa ela pareceu procurar nas estantes de memória "Se não for o mote que ela escolheu é quase impossível saber..."
E voltemos (antes de a mulher atrás do balcão com o dedo em riste):
"Quer apostar em qual prédio fica a secretaria?" Minha mãe disse, voltando-se para mim.
"Não... Eu vi a placa quando passamos pela entrada ..."
"Viu é?"
Fiz que sim.
"É claro que você viu..."
Encontramos a secretaria ou o que aparentava ser uma, alguns passos depois. Minha mãe riu antes que eu desviasse os olhos da pichação e estacasse – a boca em um pequeno o. "Limo" minha mãe disse olhando fixo para a parede envidraçada "Eca". A tinta amarelada e quebradiça respondia ao tempo se transformando em escamas ao longo da madeira.
"É... uma estufa?"
"De limo."
"E a secretaria..."
"Eu já disse... De limo?"
Ela se esforçava.
Sem dizer mais uma palavra, minha mãe usou os dedos em pinça para abrir a porta.
"Aqui entre nós... Esse lugar tá cada vez pior".
(Horas mais tarde ou o que vocês podem compreender como Futuro no Passado)
Minha mãe mordeu o lábio inferior enquanto caminhávamos de volta ao carro.
"Pelo menos agora a gente sabe que aquela entrada é por onde eles retiram o lixo", eu disse apressando o passo para acompanhá-la. "Mãe? Você acha que fiz certo preferindo o modelo externato?" (Eu sabia que para ela seria o fim se eu passasse a dormir na escola com o modelo internato)
Sem responder ela continuou olhando duramente para a frente. Então arrisquei... Ela e meu padrasto estavam em um clube de leitura, e a primeira leitura era uma fábula que ela abandonou tantas vezes que era possível encontrar cópias perdidas pela casa.
"Você terminou de ler a fábula do Kafka? O que você achou? Você entendeu? Eu entendi que o rato não tem escapatória... Eu li ontem à noite junto com o Teni, ele disse que não entendeu... Ele não entende muito as coisas, já percebeu? Mãe? Você está brava porque entramos pela saída do lixo?"
Silêncio.
"É verdade que o Kafka não tirava o calção na praia de nudismo?"
E rompendo o silêncio ela respondeu: "SPA para nudistas... Não tem praias na República Tcheca, eu acho".
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro