Capítulo XXXII
–É isto? –perguntou ele, pegando num dos velhos livros de dentro da saca de mensageiro que Yex tinha trazido de volta. Tinha voltado mais cedo do que esperava mas, mesmo assim, so Sol já se tinha posto. Ela fez questão de fechar as cortinas e de garantir mais uma vez que a porta estava trancada antes de se sentar no chão com a sacola à sua frente.
Nedoy sentou-se na borda da capa e soltou os panos que protegiam a velha capa de couro gravado, procurando por entre as páginas amareladas a razão de os Irmãos o quererem ocultar. O livro estava escrito numa língua que ele desconhecia, coberto de pequenas ilustrações e diagramas pintados em tons de negro, agora que as outras cores tinham desbotado até serem pouco mais que manchas difusas no papel.
–É, –disse Yex, destapando com cuidado os outros dois livros que tirou da sacola. –São manuais de magia.
Ele arregalou os olhos, surpreendido. –Porque é que a Torre estaria a esconder manuais de magia?
Yex passou os dedos pelos diagramas pintados com cuidado no maior dos livros. –A Torre não. Estes livros são proibidos e, se ficassem sob escrutínio, seriam queimados na fogueira juntamente com os donos.
Ele fechou o livro que tinha nas mãos e voltou a cobri-lo com os panos que o protegiam, hesitante. Ela só abanou a cabeça.
–Os Irmãos... já foram a Torre, sim. Mas aquilo é uma organização demasiado grande para eles a conseguirem microgerenciar. Criaram uma lista de leis que os ajudava na altura e, agora, vêem-se obrigados a quebrá-las. Agora que vejo isto, tenho toda a certeza que é trama do Mosé.
–Porque é que ele ia precisar de manuais de magia?
Yex abanou a cabeça. –Para nada de bom, de certeza.
Ela olhou-o, levantando uma sobrancelha em questionamento. Yex pousou o livro no chão a seu lado e depois inclinou-se para trás, apoiada nos cotovelos, relaxada.
–Eu acho que ele está a tentar resolver o que falta no feitiço que o faz continuar com vida. Provavelmente ainda não sabe do ataque rebelde e acha que eu estou cativa naquela maldita masmorra... Deve ter mandado buscar estes livros para procurar neles alguma dica do que fazer.
–E não vai encontrá-la, certo?
–Não, não vai, –respondeu com toda a certeza. –Ele anda à procura em livros como estes antes de sequer se ter enfeitiçado e, até hoje, continua como estava na altura. Nada vai mudar desta vez. –Riu-se. –Minto! Mosé está ainda pior do que estava na altura, porque qualquer alteração ao feitiço precisa que ele ou inclua ou que primeiro se desenlace do irmão, e Aron já há muito que não o quer ver à frente.
Nedoy parecia aliviado ao ouvir isso. –Pelo menos as coisas não podem ficar piores do que estão.
Ela sorriu. Nedoy ergueu ambas as sobrancelhas, desta vez, como se uma apenas não chegasse para demonstrar a sua surpresa ao ver aquela expressão voltar à face dela. Ele sabia que ela estava a planear alguma.
–Onde vais, desta vez? –perguntou-lhe.
Yex levantou-se do chão de um salto. –Mosé está na cidade, de certeza.
Ele parou por um momento. –E? Achas que é possível...
–Não, –respondeu Yex, abanando a mão no ar antes de começar a esconder alguns dos livros que tinha roubado. –Para nos livrarmos deles de vez, temos de os apanhar juntos, ou de organizar um ataque para que os dois sejam derrotados em rápida sucessão. Enquanto Aron estiver vivo, não me serve de nada atacar Mosé- –Pegou na saca que tinha roubado ao mensageiro, bordada com o símbolo dos Irmãos e pô-la a tiracolo, sorrindo. –Mas isso não me impede de ir ter uma conversa com um velho amigo.
Nedoy olhou-a, procurando respostas a todas as perguntas que se atropelavam na sua mente. Ela não ia responder nenhuma delas. Em vez disso, acabou de pegar nas poucas coisas de que precisava para aquela saída noturna. Pegou num dos livros, desimportada com qual seria o seu título, e deitou-o dentro da sacola.
Nedoy deitou-se para trás na cama, resignado a deixá-la fazer o que queria. Ela apreciava-o.
–O resto dos livros estão decentemente bem escondidos mas, se eu fosse a ti, tentava escondê-los melhor. E se estiverem numa língua que tu percebas, lê-os: pode ser que aprendas alguma coisa.
–Cuida-te, –respondeu ele.
E, sem mais nada, saiu do quarto para descer para a rua.
Ela era discreta, silenciosa, apenas mais uma sombra entre as muitas da noite. Mosé tinha optado por não usar os seus homens treinados para aquele transporte, o que a fazia achar que a segurança não seria apertada. Os mensageiros contratados eram iniciantes e péssimos a manter-se discretos, e, se ela quisesse, nenhum daqueles pacotes chegaria sequer perto do inimigo mas, em vez disso, ela optou por os seguir até ao esconderijo dele.
Não era na pior parte da cidade, mas estava lá perto. Não havia luzes, nem sequer a espreitar das frestas que serviam de janelas, como se ninguém quisesse publicitar o facto de estar em casa. O ar cheirava a álcool e a urina, e nem a brisa do rio conseguia dissipá-lo. Ela fechou os olhos, focando-se nas pessoas que conseguia ver, procurando a energia corrompida de Mosé.
Foi facílima de encontrar. Bateu à porta de madeira, ainda de olhos fechados. Ele estava num dos andares de cima, ainda acordado, com uma pessoa de cada lado, provavelmente guarda-costas contratados para o proteger. Mas foi uma outra pessoa que desceu as escadas íngremes, hesitante, para vir ver quem ali iria a essa hora. Yex desatou o couro que lhe cobria a marca e esperou até que a porta se abrisse.
Era não mais que uma fresta, só o suficiente para a mulher franzina conseguir espreitar para o escuro da rua.
Deitou os olhos sobre o símbolo bordado na bolsa de mensageiro, desinteressada. Estendeu a mão pela fresta. –Estás atrasado. Dá cá isso.
Yex sorriu. –Eu acho que estou mesmo a tempo, –respondeu, mostrando a marca gravada sob a pele do braço. –Diga ao Mosé que estou aqui.
Até ela foi capaz de ver a forma como os olhos da mulher se esbugalharam. Ela acenou com a cabeça, apressada e a medo, antes de voltar a fechar a porta. Yex riu-se da sua reação, e seguiu-lhe a energia enquanto ela corria escadas acima com o coração a bater descompassado. A pobre ainda hesitou antes de entrar na sala onde Mosé estava, antes de decidir que tinha mais medo de Yex que do mago.
Quando a senhora voltou, veio armada e alerta. Abriu a porta completamente, indicando-lhe que entrasse para o corredor mal iluminado, o que Yex obedeceu. Fingia preocupação quando entrou, e mais ainda quando a mulher trancou a porta e o espaço ficou ainda mais escuro que antes, insistindo em ficar atrás dela para a poder controlar. Na verdade, aquilo pouco a importava; o seu sentido mágico era bom o suficiente para ela conseguir identificar cada passo da mulher mesmo com ela a tentar ficar fora do seu ângulo de visão. Subiu as escadas íngremes e sorriu para a luz que transbordava de uma porta aberta. Depois entrou.
Mosé ergueu o olhar para ela. A sala estava suficientemente iluminada para a cegar e para lhe queimar os olhos no entretanto. Era de propósito, provavelmente e, por isso, ela simplesmente fechou as pálpebras, esperando que filtrassem o suficiente para amenizar a dor.
Yex balançou a mala de mensageiro, e ele riu-se.
–Devia ter sabido que tinhas alguma coisa a ver com as encomendas desaparecidas! –disse, estendendo a mão coberta de cicatrizes para pegar na saca. Ela não o impediu de ficar com ela. Não haveria respostas lá dentro, apenas um livro velho que, a ela, não lhe servia de nada.
–Pensei que ainda estivesses presa. Em Vitomouro, certo?
–O nome da cidade é Nushnalt, –corrigiu ela. Mosé só se riu.
Yex tirou a grossa capa que ainda a cobria, mas não fez nenhum movimento para se sentar. Como podia, se não fazia ideia de onde estavam as cadeiras?
–As pessoas de lá discordariam. Bem, se ainda houver pessoas lá? –disse, fechando o livro que estava a ver. –Tu estás livre, e eu não consigo imaginar que os locais ainda lá estejam, depois de um ataque desses...
Ela cruzou as pernas e sorriu, ignorando as tentativas de ele a afetar. –Não posso mesmo recomendar que lá vás no futuro próximo. Sabes como eu sou...
Mosé olhou-a, curioso. Claro que ele não acreditava que ela tivesse mesmo destruído a cidade, mas essa simples frase fê-lo duvidar. Ela reparou na forma como os guardas engoliram em seco, sentiu-lhe o medo quando eles finalmente perceberam quem ela era.
O mago esticou-se para a frente, e ela ouviu o som de papéis a bater contra a mesa, talvez para orientar a resma. –Diz-me então o que te traz aqui, bruxa! Há quanto tempo. –Mosé usava aquela palavra como se de uma brincadeira se tratasse, não como o insulto que ela tinha aprendido a detetar nela.
–Curiosidade, –respondeu, encolhendo os ombros. –Porque é que te estás a dar ao trabalho de importar textos proibidos? Sabes tão bem quanto eu que a resposta também não vai estar nesses.
Ele mal hesitou. –Se te estás a oferecer para me ajudar, sabes bem que eu não digo que não.
Yex riu-se e respondeu, leve, –vai arder no Inferno, Mosé.
O mago virou os olhos para ela, entretido. –Pensava que tu não acreditavas nessas coisas, Yex. O que te fez mudar de ideias?
–Pensei que fosses incapaz de perceber metáforas mais complexas que essa.
Ela sabia que ele estava a sorrir, mas só conseguia ver a escuridão que dele emanava, não se deixando levar pelas suas mentiras. Cada coisa viva emanava energia e normalmente, quando ela observava as pessoas assim, através das pálpebras, sentia algo como luz, como o calor do sol, a bênção de alma que os Deuses lhes deram. Quando olhava aquele homem, só via desespero e escuridão, como se ele, em vez de emanar vida, a sugasse de todos os que se lhe aproximassem. Para todos os efeitos, Mosé não estava vivo.
Se a morte tivesse feito bem o seu trabalho não teria de ser ela a resolver a situação.
Ele esperou por mais um momento, olhando-a de cima a baixo à procura de qualquer falha. Os guardas ficaram mais tensos que antes, deixando as mãos cair de forma pouco discreta para o coldre.
–Sabes que eu vou resolver isto mais cedo ou mais tarde, não sabes? Duvido que alguém como tu queira ficar do lado errado da história. Sabes perfeitamente que são os vencedores que a escrevem, não é?
Yex voltou a cobrir-se com a sua capa, ignorando as armas que os guardas agora lhe apontavam. –Se eu fosse a ti, não teria tanta certeza da vitória. Eu sempre achei que essa asneira que tu fizeste, esse feitiço meio desfeito que deitaste sobre ti... –os guardas hesitaram, e ela abanou a cabeça. –Não tem solução. Podes importar os livros que quiseres, mas nada vai mudar esse facto e, se eu fosse a ti, já teria desistido.
Ele rangeu os dentes, forçando-se a sorrir. –Vá lá! Já me subestimaste antes. Tu já terias desistido, talvez, mas é exatamente isso que nos separa.
Yex abanou a cabeça e falou como quem tentava explicar a uma criança que o fogo queima. –Sabes melhor que eu a forma como isso está atado à volta da tua mente e espírito, isso se ainda os tiveres. Quanto mais tempo passa, pior ficas, não é? –Ela disse-o com um sorriso na cara, percebendo a forma como aquilo o incomodava. Depois suspirou. –Se houver solução para a asneira que fizeste, se, contra todas as regras deste mundo e do outro, houver uma forma de realmente conseguires o que queres... mesmo assim, tu serias incapaz de usar esse feitiço. Por melhor mago que sejas, mesmo se conseguisses o impossível e ao desfazer o encantamento que já tens sobre ti sem morrer no processo, isso não vai curar nenhum do dano que ele já fez. E, –continuou, voltando a atar o couro à volta da marca ao se preparar para sair, –acho que tu tens demasiado medo da morte para arriscares a experimentar em ti mesmo, e demasiado medo de que alguém fique mais poderoso que tu para experimentar em outros.
Ela sentia o ódio que enchia a energia de Mosé. Não tinha nada além de pena por ele. Os guardas baixaram as armas, hesitantes, olhando entre si e para o líder que agora fumegava pelas palavras de Yex.
–Tu vais morrer, Mosé, –disse. –É apenas uma questão de tempo.
–É isso que vamos ver!
Mas Yex já tinha saído da sala, de volta ao alívio da escuridão do corredor. Fecou a porta atrás de si e começou a descer as escadas íngremes de volta à rua, de volta ao silêncio da noite tardia, garantindo que não estava a ser seguida. Teria de sair da cidade o mais cedo possível, claro, mas tinha valido a pena.
Agora sabia que Mosé continuava desesperadamente à procura de uma solução para a sua mortalidade e que, apesar dos esforços dele, não se estava a aproximar de nenhuma resposta. Ele odiava-a tanto quanto sempre mas, sabendo que seria provavelmente a única capaz de lhe dar soluções, não a queria morta. Ainda tinha a mente intacta, pelo menos relativamente, apesar do encantamento que lhe dançava lá dentro e, se isso fosse possível, estava ainda mais corrompido do que da última vez que ela o tinha visto. Era difícil julgar o seu poder como mago quando ele era tão diferente do que os que ela estava habituada a avaliar, mas ele parecia mais forte. E continuava a importar manuais, a aprender mais feitiços e mais técnicas, o que não podia ser nada bom.
A Torre ainda não sabia nada sobre os ataques Rebeldes, para já, mas os mago estava interessado em descobrir o que aconteceu a Nushnalt. Seria só uma questão de tempo se descobrir que havia algo de errado a acontecer na parte norte do rio.
Realmente, aquela conversa tinha sido frutífera.
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