Capítulo XXXI
Não passaram mais que um par de dias na cidade. Nedoy recuperava aos poucos. Duvidava alguma vez ser capaz de esquecer o quase mês que passou preso naquele escuro, preso sem calor nem comida, praticamente sozinho. Mesmo ainda estando fraco, não queria passar ali nem mais um momento.
Os Rebeldes contaram-lhe que a tomada da cidade tinha sido facílima, de forma tal que eles inicialmente pensaram que se tratasse de uma cilada. Os portões estavam abertos, guardados por dois idiotas incompetentes que não se aperceberam do perigo até ser tarde demais. Mesmo depois de passarem as muralhas, não encontraram quase nenhuma resistência da parte dos guardas. Só depois do fim da batalha é que vieram a descobrir porquê.
Lidar com o povo foi bastante mais difícil. Alguns estavam armados, outros saíam à rua com paus de vassoura e martelos para se proteger dos atacantes. A Torre já tinha controlo sobre aquela cidade há tempo suficiente para que o povo acreditasse nas suas mentiras. Havia feridos e mortos, quer entre a populaça quer entre o exército, surpreendentemente poucos tendo em contra o tamanho da cidade. Mas aquela resistência significava que parte da força rebelde teria de ficar ali a defender a sua posição, o que significava que teriam menos gente para o ataque seguinte. Desde o início da campanha, era o primeiro sítio de onde sairiam com menos combatentes do que quando entraram.
Eris não tinha mentido. Os cavalos estavam bem, e as suas coisas estavam surpreendentemente intactas, tendo em conta as circunstâncias. Além do que ele tinha abandonado no pequeno alojamento, ela tinha-lhe deixado uma nova muda de roupa e uma carta que ele dobrou e guardou no bolso sem se dar ao trabalho de a ler. Tinha perguntado pela cidade e, tanto quanto sabia, ela ainda estava algures por entre os rebeldes, trabalhando. Ele procurou-a, mas ficou-lhe claro que Eris não o queria encontrar da terceira ou quarta vez em que os colegas dela lhe disseram que se ele tivesse sido uns minutos mais rápido a teria apanhado. Eris estava a evadi-lo, e talvez isso fosse pelo melhor. Nedoy nem tinha a certeza do que iria dizer, caso a encontrasse, e a cada momento que passava queria ainda menos que isso acontecesse.
Saiu da cidade lado a lado com Yex sob o pretexto de encontrar informações sobre o próximo ponto estratégico, mas ele sabia tão bem quanto ela que só queriam qualquer desculpa possível para sair de dentro daquelas muralhas. De cada vez que olhava para o chão calcetado, ele lembrava-se das frias masmorras, e Yex não conseguia evitar o medo que provocava na povoação quando passava na rua. Até alguns dos Rebeldes faziam por lhe dar espaço.
Depois de tudo isso, estar de volta no deserto aberto era quase como voltar a casa.
A viagem foi feita maioritariamente em silêncio, como já era costume. À noite, ele agora fazia questão de acender sempre uma fogueira para espantar o frio e a escuridão. Yex, em vez de o gozar por isso, fechava os olhos e chegava-se para mais perto do fogo do que seria aconselhável, agarrada ao conforto que o calor lhe trazia. Às vezes treinavam com a espada, ela tão desordenada como sempre e ele lentamente a ganhar forças depois do seu tempo de prisão, e outras vezes treinavam magia. Ele estava a melhorar, já sendo capaz de fazer escudos de energia para se proteger e de dar mais força aos músculos do que devia ser possível. Até era capaz de segurar uma chama amarela tosca à volta da sua espada, algo que servia mais para intimidar do que realmente para lutar.
Entre a rotina e o hábito, o tempo voou. Caminhavam para sul, para as margens do grande rio que dividia o deserto quase a meio. A água já brilhava no horizonte, repicada de estrelas que o reflexo das ondas atirava para o ar. Barcos de fundo baixo deslizavam sobre a superfície na tarde sem vento, uma prova concreta de que ali havia civilização antes mesmo de conseguirem ver a cidade. Transportavam o comércio marítimo para o interior de Nyin, porque era dali que a Torre organizava os mantimentos para as zonas mais inacessíveis do deserto, mais longe do controlo completo que tinham sobre a costa. O rio era a maneira mais rápida de transportar tropas por grandes distâncias, e servia como uma fortaleza central a partir da qual a influência dos Irmãos se espalhava como patas de uma aranha. Era uma ótima posição estratégica, se a conseguissem tomar, mas isso também significava que estaria bem defendida.
–Descendo o rio, conseguimos estar na Capital numa semana, –disse Yex, durante uma das suas discussões de estratégia.
Ele acenou. Já tinha feito essa viagem antes, para os dois lados, de volta dos treinos para a sua cidade natal. –Temos de ser rápidos. Eles não terão dificuldades em mandar um exército para retomar a cidade por exatamente o mesmo caminho. Ou, no pior dos casos, preparar a Capital para um cerco. Não pensas que conseguimos tomar o rio todo, pois não?
Havia vilas e aldeias espalhadas rio abaixo, todas sob da Torre. A maioria tinha até sido construída por eles, para servir de fortaleza e de pontos de controlo, especialmente no sítio onde a água era menos larga.
Yex olhou a cidade que começava a espreitar sobre o horizonte, rodeada pelos reflexos do sol da tarde na água corrente do rio.
–Não, não conseguimos, –disse ela. –Tomar a cidade é a melhor opção que temos.
Porto Seguro era enorme, especialmente quando comparada àquelas em que tinham passado tanto tempo antes. Era a segunda maior em todo o deserto, apenas atrás da Capital, e já estava nas mãos da Torre há gerações. Esticava-se, muralhada, de ambos os lados do amplo rio, com pontes e barcos a fazer uma teia de conexões como fios que tentavam atar dois lados de uma camisa rasgada. Era viva, e crescia a partir da água numa espiral tosca como se fosse uma planta, uma coisa orgânica. As torres das igrejas e das mesquitas viam-se bem até daqui, competindo em altura apenas com os palacetes decorados, juntos apenas de um lado da cidade. Já estavam próximos o suficiente para lhes ver os detalhes, as misturas de diferentes arquiteturas, para apreciar as cores dos maiores vitrais que espreitavam sobre as muralhas.
Passaram pelos portões sem escrutínio; os guardas, por hábito, mal lhes deram atenção. Havia sempre pessoas a entrar e a sair dali, e controlar todos os seus movimentos seria algo demasiado complicado para valer a pena em tempos que, tanto quanto a Torre sabia, eram de paz. Entre tantos mercadores que viajavam de cidade em cidade, caçadores que passavam noites a céu aberto, soldados a mudar de posição ou de licença com as famílias e simplesmente civis de viagem, aquela cidade estava sempre cheia de pessoas que não vivial ali, e encontrar um estrebaria que os servisse e um lugar onde dormir não foi difícil.
Nedoy deixou Yex, precisando de um momento para si, e ela não se queixou. Depois de se lavar e de arrumar o pouco que tinha no quarto alugado, saiu para as ruas que costumava conhecer tão bem.
Aquele lugar era um centro de atividade. Gente de todas as cores e credos falavam na única língua em que ele era fluente, negociando entre as cores dos tecidos e das especiarias nos mercados ou fazendo os trabalhos físicos de carregar e descarregar navios de peixe e bens importados. As cidades da Torre, especialmente as maiores, eram pontos de misturas culturais, cheios de música e de cor e de barulho de todos os tipos. Desde escravos fugidios que vinham das terras mais a norte, a mercadores emigrantes à procura de mais dinheiro, a religiosos que escapavam das suas terras natais, toda a gente era bem-vinda ali. Desde que seguissem as regras da Torre e pagassem os seus impostos, claro.
Deveriam falar a língua oficial, mesmo em privado. Os livros teriam de ser autorizados, e as crianças estudavam nas escolas locais sob professores escolhidos pelos Irmãos. Para os rapazes, fazer pelo menos um ano de serviço militar era obrigatório. E, obviamente, o uso de magia era punível por morte. Ele sabia as regras de cor e salteado. Até hoje, só tinha quebrado uma.
Tanto quanto viveu, ele nunca se tinha questionado quanto ao porquê de tudo aquilo, especialmente quando a maioria das pessoas à sua volta também não o fazia. Sabia que havia mais regras, mas como nunca o tinham afetado pessoalmente nunca se tinha importado muito em decorá-las. Algumas que sempre tinha achado estranhas, como a proibição de furar as orelhas, agora reconhecia como feitas de propósito para punir quem ainda seguisse as tradições de Nyin. Em quantas mais nunca teria reparado antes?
Sentou-se à beira rio, a ver os navios passar, aproveitando a forma como a água tornava o calor ardente do deserto em algo um pouco mais agradável. Fechou os olhos, focando-se nos movimentos da multidão que entrava e saía dos barcos, atravessando o rio de um lado ao outro para voltar a casa ou para voltar aos mercados onde trabalhavam. Pensou em procurar a sua velha casa, o sítio onde tinha nascido, mas decidiu que isso seria má ideia. Já cá não vinha há tanto tempo que duvidava que ainda houvesse alguém à sua espera. E, mesmo se houvesse, não queria envolvê-los naquela situação toda em que ele se encontrava.
A Torre fazia de propósito para manter os seus Cavaleiros colocados o mais longe possível da família, e ele agora receava ter perdido a sua por causa disso.
Mas isso não o impedia de ficar por perto, de admirar os edifícios que o rodeavam ou a luz que a água refletia ou as energias de toda aquela quantidade de gente. Ele não pertencia ao deserto e, aqui, rodeado por pessoas a trabalhar e a brincar e a conversar umas com as outras na única língua em que ele era fluente, estava finalmente confortável. Tinha já passado mais tempo fora de casa do que nela. Ainda era um miúdo quando os cordelinhos que o seu pai puxou o levaram para a Capital para treinar para Cavaleiro. Foram quase cinco anos de trabalho intenso, tanto tempo do que ele agora conseguia ver era uma tentativa de lhe moldar a mente. E funcionou. Se não tivesse, ele não teria ficado quase uma década ao serviço dos Irmãos antes de conseguir escapar.
Foi arrancado das suas ponderações por um instinto de suspeita. Aquele pequeno barco que balançava tão perto de si estava ali parado desde que Nedoy se tinha ali sentado. Ainda tinha gente dentro dele —ele sentia-lhes a energia— mas não estava a ser carregado nem descarregado. Isso por si só não seria surpreendente, não fosse a forma discreta como um mensageiro se aproximou do pequeno barco, saindo de lá com uma bolsa a tiracolo que agarrava como se a sua vida dependesse disso. Depois o mensageiro entrou na multidão, escondendo-se por entre os grupos que saíam dos barcos maiores que transportavam o povo de uma margem para a outra, levando o que quer que aquilo fosse para longe dali.
Nedoy ergueu-se e aproximou-se discretamente, curioso. O barco não tinha símbolo nenhum, apenas um nome pintado no casco que havia sido desbotado pelo tempo. O próximo mensageiro chegou nem cinco minutos depois e, por entre a multidão, seria fácil não ter visto a forma discreta como recebeu a sacola e continuou o seu caminho. Nedoy não o teria visto se não estivesse tão atento, e, mesmo se o fizesse, não lhe teria dado atenção. Mas agora estava focado porque, bordado na saca agora cheia do mensageiro, estava o símbolo dos Irmãos.
Mais ninguém além de Nedoy parecia ter reparado quando o homem se virou e se juntou ao correr de gente que enchia as ruas, espreitando sobre o ombro para garantir que não estava a ser seguido. Nedoy escapou ao escrutínio dele. Tomou isso como um insulto às habilidades do outro e não como um elogio às suas.
A última vez que tinha visto aquele símbolo, ele estava bordado nas costas da capa de Mosé, o mais novo dos Irmãos, o que Yex dizia ser mago. A Torre já nem tentava impedir os rumores das suas mortes de se espalharem pelas bocas do povo, mas se Yex dizia que eles estavam vivos, Nedoy acreditava.
Manter-se inconspícuo por entre a multidão não era difícil, nem mesmo para ele, enquanto seguia o pobre mensageiro. Mas ele virou para as ruas mais vazias em que a multidão se dividia e começava a desaparecer, e Nedoy acabou por o perder de vista por entre vielas mais pobres e apertadas que se colavam às muralhas da cidade. O que raio é que um mensageiro dos Irmãos estava a fazer ali?
Ele voltou para o alojamento, à procura de Yex, com a cabeça a fumegar. O que raio é que aquela gente estava a contrabandear, e seria possível que os Irmãos estivessem por detrás disso? Eles fundaram a Torre. Porquê contrabandear coisas, se tinham à sua disposição todos os meios oficiais? A outra hipótese era alguém estar a usar o símbolo deles sem a sua autorização, e isso levantava questões muito diferentes.
Quando chegou à estalagem, praticamente puxou Yex para um canto mais privado para poder partilhar as suas suspeitas. Ainda bem que ela ainda lá estava! Ela reclamou, mas não resistiu aos seus puxões e foi atrás, sentando-se ao lado dele numa mesa escura, vazia e encostada a um canto. Ainda nem era hora do jantar, e o espaço estava suficientemente vazio para eles não recearem ser presos por conversar ali.
–Não podem ser mesmo os Irmãos, pois não? –perguntou assim que acabou de expor as suas suspeitas.
Yex abanou a cabeça. –As regras da Torre são para todos, e eles não quereriam ser apanhados a quebrá-las. Não podem usar os canais oficiais para algo que é ilegal.
–Mas porque é que haveriam de fazer algo ilegal? É só mudar a lei. Ou então criar uma exceção para eles próprios.
Yex olhou-o, confusa, e depois riu-se.
–Não é assim tão fácil, –explicou. –Sim, tecnicamente podem fazê-lo, mas iria ser bem difícil fazer o povo aceitar isso. E como é que podem criar uma exceção para si mesmos, se toda a gente os acha mortos?
Ele baixou os olhos, segurando um riso. Como é que ela podia ter uma atitude tão descarada quanto àquilo?
–Agora, se são mesmo eles os responsáveis por isso ou não, é difícil saber com certeza. Mas nunca vi mais ninguém a usar o símbolo.
–Pois, nem eu. Mas é possível que alguém esteja a fingir ser eles, certo?
Yex levantou-se e sacudiu a roupa do pó inexistente naquele espaço interior. Tinha aquele meio sorriso estampado na cara. Era dolorosamente óbvio que estava a preparar alguma.
–Possível? Sim. Mas eu acho que deve ser o Mosé, o mais novo. Seria arrogante o suficiente para continuar a usar o velho desenho. Aron seria demasiado cuidadoso... –disse ela, mais para si mesma que para ele. Depois reverteu para a sua língua nativa, em murmúrios, e levantou-se da mesa.
Ele seguiu-a escadas acima, ao destrancar do quarto e ficou a vê-la recolher o seu arco e adaga e, para surpresa de Nedoy, uma pequena pistola.
–Onde vais? –perguntou ele ao a ver a pegar na capa que usava para se proteger do frio da noite. Ainda era cedo demais para aquela precaução, não?
–Descobrir o que eles estão a planear, –respondeu. Escondeu a adaga por entre a roupa e pegou num punhado de flechas com eficiência militar. –Ficas bem até de manhã?
–Até de manhã? –quase gritou, chocado. –O que é que estás a pensar fazer que achas que vais estar fora a noite toda?
Ela atou o cabelo sob o pano castanho e, sem se demorar, fê-lo sair do quarto para trancar a porta, pendurando a chave à volta do pescoço.
–Eu sei que ficas bem, –disse ela, com aquele maldito meio sorriso na cara.
–O que é que te deu, Yex? –perguntou, tentando impedi-la de voltar à rua sem pelo menos se explicar melhor. –Eu fico bem, mas é contigo que estou preocupado. Achas que vais ficar viva até de manhã?
Ela parou. Olhou-o com calma, e deixou cair o sorriso da cara.
–Eu fico bem, Nedoy. Deu-me uma ideia, ou uma suspeita ou que raio lhe queiras chamar, e acho má ideia que te tentes meter nisto. Irias acabar ferido, ou pior.
–Se é suposto isso pôr-me mais calmo, bruxa, olha que não está a ajudar!
Ela riu-se. –Eu lido com coisas destas há mais tempo do que o que tu tens de vida. Eu fico bem!
Sem mais nenhuma palavra ela desviou-o para o lado para passar pelo estreito corredor. Andou de costas por uns passos para lhe sorrir, e depois desceu as escadas, para longe da vista dele.
Aquela mulher, a sério...
.
–É isto? –perguntou ele, pegando num dos velhos livros de dentro da saca de mensageiro que Yex tinha trazido de volta. Tinha voltado mais cedo do que esperava mas, mesmo assim, so Sol já se tinha posto. Ela fez questão de fechar as cortinas e de garantir mais uma vez que a porta estava trancada antes de se sentar no chão com a sacola à sua frente.
Nedoy sentou-se na borda da capa e soltou os panos que protegiam a velha capa de couro gravado, procurando por entre as páginas amareladas a razão de os Irmãos o quererem ocultar. O livro estava escrito numa língua que ele desconhecia, coberto de pequenas ilustrações e diagramas pintados em tons de negro, agora que as outras cores tinham desbotado até serem pouco mais que manchas difusas no papel.
–É, –disse Yex, destapando com cuidado os outros dois livros que tirou da sacola. –São manuais de magia.
Ele arregalou os olhos, surpreendido. –Porque é que a Torre estaria a esconder manuais de magia?
Yex passou os dedos pelos diagramas pintados com cuidado no maior dos livros. –A Torre não. Estes livros são proibidos e, se ficassem sob escrutínio, seriam queimados na fogueira juntamente com os donos.
Ele fechou o livro que tinha nas mãos e voltou a cobri-lo com os panos que o protegiam, hesitante. Ela só abanou a cabeça.
–Os Irmãos... já foram a Torre, sim. Mas aquilo é uma organização demasiado grande para eles a conseguirem microgerenciar. Criaram uma lista de leis que os ajudava na altura e, agora, vêem-se obrigados a quebrá-las. Agora que vejo isto, tenho toda a certeza que é trama do Mosé.
–Porque é que ele ia precisar de manuais de magia?
Yex abanou a cabeça. –Para nada de bom, de certeza.
Ela olhou-o, levantando uma sobrancelha em questionamento. Yex pousou o livro no chão a seu lado e depois inclinou-se para trás, apoiada nos cotovelos, relaxada.
–Eu acho que ele está a tentar resolver o que falta no feitiço que o faz continuar com vida. Provavelmente ainda não sabe do ataque rebelde e acha que eu estou cativa naquela maldita masmorra... Deve ter mandado buscar estes livros para procurar neles alguma dica do que fazer.
–E não vai encontrá-la, certo?
–Não, não vai, –respondeu com toda a certeza. –Ele anda à procura em livros como estes antes de sequer se ter enfeitiçado e, até hoje, continua como estava na altura. Nada vai mudar desta vez. –Riu-se. –Minto! Mosé está ainda pior do que estava na altura, porque qualquer alteração ao feitiço precisa que ele ou inclua ou que primeiro se desenlace do irmão, e Aron já há muito que não o quer ver à frente.
Nedoy parecia aliviado ao ouvir isso. –Pelo menos as coisas não podem ficar piores do que estão.
Ela sorriu. Nedoy ergueu ambas as sobrancelhas, desta vez, como se uma apenas não chegasse para demonstrar a sua surpresa ao ver aquela expressão voltar à face dela. Ele sabia que ela estava a planear alguma.
–Onde vais, desta vez? –perguntou-lhe.
Yex levantou-se do chão de um salto. –Mosé está na cidade, de certeza.
Ele parou por um momento. –E? Achas que é possível...
–Não, –respondeu Yex, abanando a mão no ar antes de começar a esconder alguns dos livros que tinha roubado. –Para nos livrarmos deles de vez, temos de os apanhar juntos, ou de organizar um ataque para que os dois sejam derrotados em rápida sucessão. Enquanto Aron estiver vivo, não me serve de nada atacar Mosé- –Pegou na saca que tinha roubado ao mensageiro, bordada com o símbolo dos Irmãos e pô-la a tiracolo, sorrindo. –Mas isso não me impede de ir ter uma conversa com um velho amigo.
Nedoy olhou-a, procurando respostas a todas as perguntas que se atropelavam na sua mente. Ela não ia responder nenhuma delas. Em vez disso, acabou de pegar nas poucas coisas de que precisava para aquela saída noturna. Pegou num dos livros, desimportada com qual seria o seu título, e deitou-o dentro da sacola.
Nedoy deitou-se para trás na cama, resignado a deixá-la fazer o que queria. Ela apreciava-o.
–O resto dos livros estão decentemente bem escondidos mas, se eu fosse a ti, tentava escondê-los melhor. E se estiverem numa língua que tu percebas, lê-os: pode ser que aprendas alguma coisa.
–Cuida-te, –respondeu ele.
E, sem mais nada, saiu do quarto para descer para a rua.
Ela era discreta, silenciosa, apenas mais uma sombra entre as muitas da noite. Mosé tinha optado por não usar os seus homens treinados para aquele transporte, o que a fazia achar que a segurança não seria apertada. Os mensageiros contratados eram iniciantes e péssimos a manter-se discretos, e, se ela quisesse, nenhum daqueles pacotes chegaria sequer perto do inimigo mas, em vez disso, ela optou por os seguir até ao esconderijo dele.
Não era na pior parte da cidade, mas estava lá perto. Não havia luzes, nem sequer a espreitar das frestas que serviam de janelas, como se ninguém quisesse publicitar o facto de estar em casa. O ar cheirava a álcool e a urina, e nem a brisa do rio conseguia dissipá-lo. Ela fechou os olhos, focando-se nas pessoas que conseguia ver, procurando a energia corrompida de Mosé.
Foi facílima de encontrar. Bateu à porta de madeira, ainda de olhos fechados. Ele estava num dos andares de cima, ainda acordado, com uma pessoa de cada lado, provavelmente guarda-costas contratados para o proteger. Mas foi uma outra pessoa que desceu as escadas íngremes, hesitante, para vir ver quem ali iria a essa hora. Yex desatou o couro que lhe cobria a marca e esperou até que a porta se abrisse.
Era não mais que uma fresta, só o suficiente para a mulher franzina conseguir espreitar para o escuro da rua.
Deitou os olhos sobre o símbolo bordado na bolsa de mensageiro, desinteressada. Estendeu a mão pela fresta. –Estás atrasado. Dá cá isso.
Yex sorriu. –Eu acho que estou mesmo a tempo, –respondeu, mostrando a marca gravada sob a pele do braço. –Diga ao Mosé que estou aqui.
Até ela foi capaz de ver a forma como os olhos da mulher se esbugalharam. Ela acenou com a cabeça, apressada e a medo, antes de voltar a fechar a porta. Yex riu-se da sua reação, e seguiu-lhe a energia enquanto ela corria escadas acima com o coração a bater descompassado. A pobre ainda hesitou antes de entrar na sala onde Mosé estava, antes de decidir que tinha mais medo de Yex que do mago.
Quando a senhora voltou, veio armada e alerta. Abriu a porta completamente, indicando-lhe que entrasse para o corredor mal iluminado, o que Yex obedeceu. Fingia preocupação quando entrou, e mais ainda quando a mulher trancou a porta e o espaço ficou ainda mais escuro que antes, insistindo em ficar atrás dela para a poder controlar. Na verdade, aquilo pouco a importava; o seu sentido mágico era bom o suficiente para ela conseguir identificar cada passo da mulher mesmo com ela a tentar ficar fora do seu ângulo de visão. Subiu as escadas íngremes e sorriu para a luz que transbordava de uma porta aberta. Depois entrou.
Mosé ergueu o olhar para ela. A sala estava suficientemente iluminada para a cegar e para lhe queimar os olhos no entretanto. Era de propósito, provavelmente e, por isso, ela simplesmente fechou as pálpebras, esperando que filtrassem o suficiente para amenizar a dor.
Yex balançou a mala de mensageiro, e ele riu-se.
–Devia ter sabido que tinhas alguma coisa a ver com as encomendas desaparecidas! –disse, estendendo a mão coberta de cicatrizes para pegar na saca. Ela não o impediu de ficar com ela. Não haveria respostas lá dentro, apenas um livro velho que, a ela, não lhe servia de nada.
–Pensei que ainda estivesses presa. Em Vitomouro, certo?
–O nome da cidade é Nushnalt, –corrigiu ela. Mosé só se riu.
Yex tirou a grossa capa que ainda a cobria, mas não fez nenhum movimento para se sentar. Como podia, se não fazia ideia de onde estavam as cadeiras?
–As pessoas de lá discordariam. Bem, se ainda houver pessoas lá? –disse, fechando o livro que estava a ver. –Tu estás livre, e eu não consigo imaginar que os locais ainda lá estejam, depois de um ataque desses...
Ela cruzou as pernas e sorriu, ignorando as tentativas de ele a afetar. –Não posso mesmo recomendar que lá vás no futuro próximo. Sabes como eu sou...
Mosé olhou-a, curioso. Claro que ele não acreditava que ela tivesse mesmo destruído a cidade, mas essa simples frase fê-lo duvidar. Ela reparou na forma como os guardas engoliram em seco, sentiu-lhe o medo quando eles finalmente perceberam quem ela era.
O mago esticou-se para a frente, e ela ouviu o som de papéis a bater contra a mesa, talvez para orientar a resma. –Diz-me então o que te traz aqui, bruxa! Há quanto tempo. –Mosé usava aquela palavra como se de uma brincadeira se tratasse, não como o insulto que ela tinha aprendido a detetar nela.
–Curiosidade, –respondeu, encolhendo os ombros. –Porque é que te estás a dar ao trabalho de importar textos proibidos? Sabes tão bem quanto eu que a resposta também não vai estar nesses.
Ele mal hesitou. –Se te estás a oferecer para me ajudar, sabes bem que eu não digo que não.
Yex riu-se e respondeu, leve, –vai arder no Inferno, Mosé.
O mago virou os olhos para ela, entretido. –Pensava que tu não acreditavas nessas coisas, Yex. O que te fez mudar de ideias?
–Pensei que fosses incapaz de perceber metáforas mais complexas que essa.
Ela sabia que ele estava a sorrir, mas só conseguia ver a escuridão que dele emanava, não se deixando levar pelas suas mentiras. Cada coisa viva emanava energia e normalmente, quando ela observava as pessoas assim, através das pálpebras, sentia algo como luz, como o calor do sol, a bênção de alma que os Deuses lhes deram. Quando olhava aquele homem, só via desespero e escuridão, como se ele, em vez de emanar vida, a sugasse de todos os que se lhe aproximassem. Para todos os efeitos, Mosé não estava vivo.
Se a morte tivesse feito bem o seu trabalho não teria de ser ela a resolver a situação.
Ele esperou por mais um momento, olhando-a de cima a baixo à procura de qualquer falha. Os guardas ficaram mais tensos que antes, deixando as mãos cair de forma pouco discreta para o coldre.
–Sabes que eu vou resolver isto mais cedo ou mais tarde, não sabes? Duvido que alguém como tu queira ficar do lado errado da história. Sabes perfeitamente que são os vencedores que a escrevem, não é?
Yex voltou a cobrir-se com a sua capa, ignorando as armas que os guardas agora lhe apontavam. –Se eu fosse a ti, não teria tanta certeza da vitória. Eu sempre achei que essa asneira que tu fizeste, esse feitiço meio desfeito que deitaste sobre ti... –os guardas hesitaram, e ela abanou a cabeça. –Não tem solução. Podes importar os livros que quiseres, mas nada vai mudar esse facto e, se eu fosse a ti, já teria desistido.
Ele rangeu os dentes, forçando-se a sorrir. –Vá lá! Já me subestimaste antes. Tu já terias desistido, talvez, mas é exatamente isso que nos separa.
Yex abanou a cabeça e falou como quem tentava explicar a uma criança que o fogo queima. –Sabes melhor que eu a forma como isso está atado à volta da tua mente e espírito, isso se ainda os tiveres. Quanto mais tempo passa, pior ficas, não é? –Ela disse-o com um sorriso na cara, percebendo a forma como aquilo o incomodava. Depois suspirou. –Se houver solução para a asneira que fizeste, se, contra todas as regras deste mundo e do outro, houver uma forma de realmente conseguires o que queres... mesmo assim, tu serias incapaz de usar esse feitiço. Por melhor mago que sejas, mesmo se conseguisses o impossível e ao desfazer o encantamento que já tens sobre ti sem morrer no processo, isso não vai curar nenhum do dano que ele já fez. E, –continuou, voltando a atar o couro à volta da marca ao se preparar para sair, –acho que tu tens demasiado medo da morte para arriscares a experimentar em ti mesmo, e demasiado medo de que alguém fique mais poderoso que tu para experimentar em outros.
Ela sentia o ódio que enchia a energia de Mosé. Não tinha nada além de pena por ele. Os guardas baixaram as armas, hesitantes, olhando entre si e para o líder que agora fumegava pelas palavras de Yex.
–Tu vais morrer, Mosé, –disse. –É apenas uma questão de tempo.
–É isso que vamos ver!
Mas Yex já tinha saído da sala, de volta ao alívio da escuridão do corredor. Fecou a porta atrás de si e começou a descer as escadas íngremes de volta à rua, de volta ao silêncio da noite tardia, garantindo que não estava a ser seguida. Teria de sair da cidade o mais cedo possível, claro, mas tinha valido a pena.
Agora sabia que Mosé continuava desesperadamente à procura de uma solução para a sua mortalidade e que, apesar dos esforços dele, não se estava a aproximar de nenhuma resposta. Ele odiava-a tanto quanto sempre mas, sabendo que seria provavelmente a única capaz de lhe dar soluções, não a queria morta. Ainda tinha a mente intacta, pelo menos relativamente, apesar do encantamento que lhe dançava lá dentro e, se isso fosse possível, estava ainda mais corrompido do que da última vez que ela o tinha visto. Era difícil julgar o seu poder como mago quando ele era tão diferente do que os que ela estava habituada a avaliar, mas ele parecia mais forte. E continuava a importar manuais, a aprender mais feitiços e mais técnicas, o que não podia ser nada bom.
A Torre ainda não sabia nada sobre os ataques Rebeldes, para já, mas os mago estava interessado em descobrir o que aconteceu a Nushnalt. Seria só uma questão de tempo se descobrir que havia algo de errado a acontecer na parte norte do rio.
Realmente, aquela conversa tinha sido frutífera.
.....
Esta nota de autora foi escrita durante o segundo rascunho, e partes dela podem estar desatualizadas. Oops!
Uiiii!
Ok, gente, preciso da vossa ajuda. Esta parte final é onde eu estou a precisar de fazer mais reestruturações. Acham que estas cenas estão a ficar demasiado curtas? Rápidas demais? Vice-versa? Queixem-se agora, que eu sei que as vou ter que reescrever na mesma e pelo menos assim tenho um sentido de direção.
O que acham da história dos Irmãos? Dentro da ficção, o que acham sobre a relação entre eles e os Originais e, por extensão, Yex?
Por parte da escrita, acham que eles foram prenunciados o suficiente para que o seu aparecimento não tenha ficado demasiado abrupto?
E o que raio acham que vai acontecer quando este par finalmente se encontrar com Mosé?
Peço desculpa por todas as perguntas... só estou bastante entusiasmada, e acho que não há ninguém melhor para me ajudar com estas decisões do que vós, as pessoas que aguentaram comigo até aqui. Do fundo do meu coraçãozinho: obrigada! Espero que estejam a gostar. Se tiverem dúvidas perguntem; as vossas opiniões influenciam a minha escrita mais do que eu gostaria de admitir.
Beijinhos!^3
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