Capítulo XXVII
O tempo voava. Enviaram-se mensageiros às outras cidades atacadas, na esperança de receber informações de vitórias absolutas. Os feridos recuperavam aos poucos, tratava-se das questões logísticas e, devagar, a cidade retornava a algo que se parecia com normalidade. Fora das limitações na entrada e saída dos habitantes e dos treinos que todas as manhãs se realizavam do lado de fora das muralhas, o ataque pouco tinha mudado.
Yex começou a ensinar magia às crianças da cidade. O coração doía-lhe pelos mais velhos que, tendo crescido sob o controlo da Torre, nunca voltariam a ter a capacidade de aprender. Aquilo não era um acidente: os Irmãos sabiam que bastava impedir que uma geração aprendesse os velhos feitiços para quebrar milénios de tradição. Sem professores, os mais novos não aprenderiam magia e, sem magia, nunca teriam o poder necessário para vencer aquela maldita guerra. Isso era, em parte, a razão porque era tão importante para os Rebeldes manter as tradições, por mais perigoso que fosse.
O exército deles cresceu. Biara continuava a trabalhar, a andar de um lado para o outro —contra as indicações de toda a gente que tinha juízo– e o trabalho estava a dar frutos. Era inegável que a miúda tinha cá um carisma e que talvez fosse a única capaz de convencer a gente da cidade a juntar-se àquele exército. Muitos deles já tinham visto guerra antes, quando a Torre tinha tomado a cidade pela primeira vez, e a maioria arrependia-se de não ter feito nada para parar o seu avanço antes que isso acontecesse. Não era difícil para a jovem líder convencê-los de que, desta vez, podiam fazer uma escolha diferente. Não demoraria muito até que aquele grupo, maior que dantes e semi-treinado, avançasse até à próxima cidade, e depois até à próxima, libertando aquela zona da influência da Torre. Pelo menos era essa a esperança.
Tanto quanto sabiam, informações daquele ataque não tinham ainda chegado aos ouvidos dos Irmãos. O elemento surpresa era vital; se eles estivessem preparados para montar uma defesa, o pequeno exército rebelde não teria qualquer hipótese. Tinham de saber o a Torre sabia, tinham que controlar a saída de informação.
Foi por isso que, nessa manhã, Yex acordou cedo para ir preparar o cavalo negro. Ela pertencia ao deserto, não encafuada entre aquelas muralhas, e os seus aliados precisavam de informação. Desta forma podia fazer as duas coisas.
Eris entrou na pequena estrebaria ainda antes de ela ter selado Lyin. Em resposta, Yex ergueu-lhe uma sobrancelha.
–Estás a contar vir?
Sorriu, dirigindo-se ao cavalo cinza para lhe escovar o pelo. –Sim.
Eris tinha acabado por ser uma figura importante naquele grupo. Era uma lutadora exímia, e usava a sua simpatia e paciência quase ilimitada para ensinar os novos voluntários. Também tinha uma mente estratégica surpreendentemente apta e conhecimentos sobre a flora e fauna daquela região. Mas, independentemente do quão importante ela fosse, Yex não ficou particularmente surpreendida por ela querer sair dali. Tinha subido à ocasião por necessidade, não por escolha e, agora que a situação acalmava, queria voltar ao deserto tanto quanto Yex. Eram farinha do mesmo saco, e ela achava mesmo que Eris teria aceite qualquer desculpa possível para sair dali.
Ou então só queria estar com Nedoy, isso também era uma opção.
O Cavaleiro tinha as suas próprias razões para deixar aquela cidade para trás. Não se poderia dizer que fosse popular, independentemente do quanto fizesse para ajudar, de quanto tempo passasse a treinar os novos recrutas, já que Inês estava num dos outros grupos de ataque. Independentemente do que fizesse, continuava a ser visto com desconfiança. Já nem toda a gente o odiava, mas isso era um conforto frio e limitado.
Por isso saíram os três da cidade, juntos. Ainda era cedo, e o sol ainda nascia à sua frente, uma luz branca de fogo que a cegava, mas ela pouco se importava, apreciando o seu calor terno nas pálpebras fechadas e no pouco da pele que trazia destapada.
O plano era simples: ir até à próxima cidade, que ainda estava sob o controlo da Torre, e recolher o máximo de informações possível. Ela só esperava que ainda não tivessem lá chegado contos da vitória rebelde ou, pior, que eles soubessem que ela estava envolvida. Mosé, um dos Irmãos, sempre a quis capturar vida, e ela não conseguia desviar a sensação de que estava a avançar para uma cilada.
Durante toda a viagem, o casalinho nunca deixou de ter temas de conversa. O facto de partilharem a tenda durante as noites só erodia ainda mais a sua paciência. Fazia questão de passar o tempo a treinar com a espada como pretexto para lhes dar privacidade ou, melhor dizendo, para se dar a si mesma algumas horas de silêncio por dia. Silêncio puro e inalterado pelas vozes incessantes daqueles dois. Felizmente isso não teve de durar muito porque fizeram bom tempo até à cidade. Menos de uma lua mais tarde, já estaria visível sobre o horizonte se não estivesse escondida entre o encadeamento que o sol lhe causava.
–Chegamos, –comentou Nedoy, aliviado, horas antes de estarem sequer perto de chegar.
Eris soltou uma risada. –Menino de cidade, –gozou. Nedoy fingiu-se ofendido com isso.
Yex ignorou o resto da conversa. Cobriu o cabelo com um pano castanho e garantiu ter a sua adaga por perto, para o caso de ser necessária. Estava tensa. Se tivessem chegado à cidade notícias dos ataques rebeldes de certeza que não os deixariam entrar, e isso seria se tivessem sorte de os deixarem ir embora com vida...
Os portões estavam abertos, e ela fechou os olhos para melhor sentir a energia dos guardas. A esta distância, era difícil discernir números exatos, mas não lhe parecia que a segurança tivesse sido muito reforçada desde a última vez que ali tinha passado. Mas isso não a relaxou completamente. E se fosse uma armadilha?
–Sabem o que fazer? –perguntou ao casalito que a seguia.
–Sim, –disse Nedoy, e Eris só acenou com a cabeça.
Entrar na cidade foi fácil. Não foram questionados nem atacados. Nedoy tremia menos e, com Eris ali, nem sequer precisou de mentir. Ela nem hesitava enquanto enganava os guardas que os interrogavam, e falava o suficiente pelos dois, respondendo às perguntas dirigidas a si e a ele, salvando-o do embarasso de ser terrível nos enganos.
Mas mesmo depois de terem passado para dentro das grandes muralhas, Yex não se deixou relaxar. A cidade era grande o suficiente para que não tivessem sido demasiado importunados ao deixar os cavalos na estrebaria, e arranjar um par de quartos foi apenas uma questão de saber onde perguntar. Ainda ninguém a tinha reconhecido, havia apenas o número normal de guardas a patrulhar e, completamente ignorantes de tudo o que passava pela cabeça dela, o casal continuava na conversa. Depois de uma refeição quente, Yex deixou-os um com o outro e, com uma desculpa qualquer, começou a andar sozinha pela cidade. Tinha coisas mais importantes que fazer do que servir de vela.
Passeou pelas ruas guiada por memória muscular e pelos sons de conversa na língua da Torre. O mercado estava no mesmo sítio de sempre, montado sob o telhado de pedra quase tão velho quanto ela, e estava cheio de movimento e de vida. As lajes de arenito que serviam de bancas estavam cobertas de produtos, desde bijutaria a conservas de comida a álcool. O ar cheirava a novo, às plantas usadas para tingir tecido, a sal. O calor cobria-a, mesmo ali à sombra, trazido em resmas de vento que acompanhavam o movimento dos compradores que por ali passavam, e, através das pálpebras, ela via como aqueles corpos corriam como água, uns atrás dos outros por qualquer passagem onde coubessem. Ela deixou-se levar com a enchente, mais calma e já de olhos abertos. As velhas colunas tinham cordas atadas à sua volta, serpenteando de uma a outra, penduradas com panos coloridos e roupa do estilo europeu. As crianças fugiam do lado das famílias para brincar umas com as outras, falando naquela língua que não era a sua, e os vendedores competiam por quem conseguia gritar mais alto para ser ouvido sobre o som da multidão. Tudo mudava, mas aquilo estava demasiado igual às memórias que ela tinha de pequena.
Reparou que ainda havia carnes frescas e produtos agrícolas para venda em algumas das bancas. Isso confirmou-lhe as suspeitas de que a Torre ainda não tinha chegado ao ponto de restringir o movimento de mercadores para dentro da cidade. Os Irmãos ainda não sabiam dos ataques Rebeldes, ainda não sabiam que tinham perdido controlo de pelo menos uma cidade, ainda não sabiam o que os esperava.
Do outro lado da rua que servia de artéria principal da cidade, onde, em tempos passados, ficava um dos trilhos das tribos, o velho tempo ainda estava de pé. Ela soltou-se do correr da multidão, mais calmo ali que não estava restringido por bancas e banquinhas, e sorriu inconscientemente ao tocar na fachada áspera e gasta pelo tempo. Já não havia portas no grande arco de entrada, e aquelas gentes entravam e saíam sem impedimento ou respeito pelo que aquele sítio significava.
Yex respirou fundo e pensou uma oração antes de entrar no velho Templo. Andou devagar, evitando o melhor que podia os encontrões dos compradores que examinavam as bancas ali montadas, controlando a ira que sentia ao ver aquilo com uma eficiência praticada. Era mais fresco, ali dentro, e mais escuro, mesmo com o buraco enorme na fachada onde dantes havia uma porta. A velha torre cata-vento parecia estar a fazer o seu serviço. Talvez por isso o espaço estivesse tão cheio, quer de gente quer de barulho, já que todos queriam evitar o calor que se fazia sentir lá fora. Sob os pés, sentia que o chão estava ainda mais gasto do que da última vez que ali tinha estado, com a espiral outrora tão importante para os rituais que ali se faziam a tornar-se menos e menos visível a cada ano que passava. Nas zonas de maior tráfego já tinha até totalmente desaparecido.
Fechou os punhos, segurando-se, e rezou mais uma oração. Nunca tinha sido muito piedosa mas, ainda assim...
Coladas às paredes, subindo a altura do edifício, estava um par de escadas que espiralavam à volta uma da outra. O Templo tinha vários andares, colocados em anéis concêntricos, todos com um espaço no meio para deixar a luz passar. A espiral no centro do chão tinha de ter uma abertura direta ao céu pela clarabóia em cúpula no topo da alta torre, e aquele espaço também garantia que quem estivesse nos andares de cima conseguiria na mesma ver e ouvir as cerimónias.
Yex subiu até ao primeiro desses andares. Havia menos pessoas ali em cima, a admirar as bancas de jóias e outros materiais preciosos, do que no chão, onde se vendiam tecidos e peles. Ela sentou-se na borda, olhando para a multidão que, abaixo dela, dessecrava aquele sítio outrora sagrado. Fechou os olhos, tentando ignorar o barulho, mas as pálpebras não a impediam de sentir a energia de toda aquela gente que andava de um lado para o outro como baratas tontas e, por mais que ela os quisesse ignorar, não conseguia.
Como é que se atreviam?
Ela nunca tinha achado interessante o que os velhos sacerdotes tinham a dizer. Preferia as histórias que a família lhe contava, durante as noites que ela passava acordada, sobre como o Sol e a Lua eram os símbolos dos deuses que os tinham criado, como eram a fonte de toda a energia do mundo, como...
Suspirou. Havia cada vez menos gente a acreditar naquilo. Até ela duvidava mais e mais, ultimamente. Não era propriamente proibido contar as histórias, mas isso não fazia com que as pessoas de Nyin não temessem as consequências de o aprender. Muitos pais, por escolha, recusaram-se a ensinar os mitos aos filhos e os poucos que o faziam tornavam bem claro o facto de serem apenas isso, mitos e histórias. Não mais uma religião.
Talvez ela devesse ter prestado mais atenção aos sacerdotes, em criança. Poderia ensinar aquilo a quem a quisesse ouvir. Quando a guerra acabar e os Irmãos forem destronados, ninguém teria de temer conhecer os velhos contos.
Era tarde demais para isso.
Abriu os olhos, passando-os pelas pinturas destoadas das velhas histórias que cobriam as paredes de pedra. Pintadas com pigmentos feitos da própria terra do deserto de Nyin, ainda sobreviviam às décadas de abuso, de luz e de falta de conservação. Quando a Torre tomou aquela cidade especificamente para controlar aquele templo, o maior e mais importante para todas as tribos de Nyin, não se tinha dado ao trabalho de raspar aquelas imagens das paredes. Deitaram abaixo o poço que ficava no centro da grande espiral, fonte de água bendita pelos deuses, e fecharam o chão com escombros para que ninguém fosse capaz de o voltar a abrir. Essas eram as partes mais importantes, as coisas mais sagradas e, comparado com elas, as pinturas não importavam.
Mas importavam muito. Para quem conhecia as lendas que as imagens retratavam, aquilo era uma fonte de esperança, uma recordação para o futuro. Talvez um dia o Templo voltasse a ser seu.
Levantou-se para continuar a subir as escadas em espiral. Pouco lhe importava que, passando o terceiro nível, não houvesse mais banquinhas de comércio, e pouco queria saber dos poucos olhares de suspeita que lhe acompanharam a subida e, em vez disso, só olhou com atenção para cada uma das pinturas. Perto o chão estavam os contos do deus Esh, do deus terra. Era um ser de instinto puro, de terra queimada, a origem do mundo físico e de todos os instintos animalescos que existiam naquele mundo. Os monstros dele escondiam-se sob o solo de Nyin, espalhados pelo deserto todo. Eram criaturas físicas, de corpo apenas e sem qualquer alma, moralmente neutras e sem interesse nos humanos que lhes pisavam os lombos. O único que dançava sobre a superfície era o Vento, o único que se imiscuia nas cidades e dançava com os vivos.
Mais perto do alto começavam a aparecer os contos da deusa Lo'o, da deusa lua. Ela era a origem da mente, e dizia-se que era feita de conhecimento puro. As estrelas eram suas acompanhantes, criaturas feitas de pensamentos, sem corpo, que flutuavam no céu da noite. Alguns tinham interesse na vida dos humanos que habitavam o deserto, como os que formaram o cruzeiro sul, tão importante para a navegação noturna, e havia um número incontável de mitos que explicavam como cada uma tinha acabado onde estava.
Yex nunca tinha conseguido ver as estrelas. Eram pequenas demais e distantes demais para que os seus olhos fracos as conseguissem encontrar na infinidade que era o céu.
Tentou lembrar-se de todos os mitos que aquelas imagens mostravam. Não sabia quando poderia voltar àquele templo, e precisava de os ter de cor para poder recontar as histórias à próxima geração.
Quando voltou a descer, havia pouca gente no mercado. Viu a luz lá de fora, pensando-se apenas distraída com as horas, mas o sol ainda brilhava alto e era demasiado cedo para aquele sítio estar assim tão vazio. Tensa, saiu para a rua, avançando em passo acelerado. Aquilo estava vazio demais, também, livre das multidões que nem momentos antes tinham enchido as ruas de forma tão densa que quase as entupiam. Manteve os olhos fechados para melhor ver a toda a sua volta, e tomou atenção em escutar as conversas que a rodeavam. O coração caiu-lhe do peito quando, entre os sussurros dos poucos mercadores que ainda arrumavam as mercadorias, ouviu a razão da súbita evacuação. Ajustou a manga sob o couro e começou, sem desacelerar o passo, a entrançar o cabelo.
As portas da cidade estavam fechadas, e eles estavam à procura dela.
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