Capítulo XXIX
Quando os sentidos de Yex voltaram a funcionar, ela não pôde deixar de ficar aliviada. Não tinha força para sequer abrir as pálpebras, mas o coração ainda batia, fraco, no peito que subia e descia com a respiração laboriosa. A cabeça pulsava com dor e a pedra onde estava deitada torcia-lhe as costas desconfortavelmente, o ar cheirava a mofo e a humidade fria colava-se-lhe à pele, e ela nem tinha energia para se tentar aquecer ou para se virar para uma posição mais confortável. Mas nada disso importava, nesse momento, porque o alívio que sentia era maior do que qualquer desconforto.
Ainda estava viva.
Focou-se no que conseguia sentir com os olhos fechados. Tinha medo de voltar a desmaiar porque sabia que, da próxima vez, provavelmente não ia acordar.
Estava numa masmorra sob a cidade. Nas ruas acima de si, sentia pessoas a andar para trás e para a frente, seguindo as suas vidas. Já devia ter passado algum tempo desde a sua captura, para que eles se sentissem seguros o suficiente para sair à rua.
Focou-se no subsolo, esticando a percepção para tentar perceber o sítio onde estava. Sentia Nedoy a dormir encostado a uma parede, mas o resto do complexo estava deserto. Aquelas masmorras estendiam-se como teias sob a cidade, uma autêntica cidade subterrânea construída num tempo onde todas aquelas celas eram necessárias, Mas agora,eles eram os únicos convidados. Nem guardas havia, provavelmente por causa da recente falta de pessoal na superfície e do medo que qualquer sobrevivente teria de se aproximar do sítio onde ela estava.
Os seus músculos já tinham recuperado o suficiente para que lentamente, a custo, ela fosse capaz de se sentar e trazer os joelhos até ao corpo. Era um esforço imenso, tentar mexer-se quando o seu corpo tentava levar toda a energia que lhe restava para os órgãos vitais, mas ela precisava de calor.
Até pensar era difícil. Os pensamentos corriam tão lentos quanto mel, arrastando-se contra a sua vontade, misturando-se uns com os outros e tentando-a a deixá-los ir, deixá-los evaporar-se. Mas aquilo já lhe tinha acontecido antes, e ela sabia que a sua única hipótese de se agarrar à consciência era à força bruta e que se se atrevesse a ceder à tentação de descansar por um momento poderia ter o azar de não poder voltar desse transe. Tinha-se esforçado demais, tinha pedido demais ao seu corpo. Tinha gasto a energia de que precisava para viver em feitiços e agora o seu instinto estava a lutar tudo por tudo por a manter viva.
Descansou a cabeça sobre os joelhos, sentindo Nedoy a remexer-se enquanto acordava.
–Estás viva, –disse ele, e Yex sorriu.
–Estou tão surpreendida quanto tu, –sussurrou.
Porque é que os Cavaleiros os tinham posto juntos? Queriam-na viva, isso era certo. Talvez temessem aproximar-se mais que o necessário e o quisessem usar com entremeio; ela tinha um grilhão apertado ao pulso esquelético mas, quanto conseguia ver, Nedoy estava livre. Ou talvez a achassem perigosa até para ele, e os tivessem posto juntos na esperança de que não tivessem de ser eles a matar um dos seus. As direções da Torre quanto ao que fazer com ela eram algo contraditórias, realmente. Mosé, o mais novo dos Irmãos queria-la viva e insistia que era melhor deixá-la fugir do que a matar. Mas Aron discordava, e era Aron que liderava o exército.
À medida que os minutos passavam, Yex conseguia sentir os músculos a ganhar energia. Ainda estava exausta, mas já estava segura o suficiente de que não ia voltar a desmaiar por causa disso. Deixou-se relaxar o quanto podia, encostada à pedra fria e abraçada aos joelhos pelo que lhe pareceu uma eternidade.
–O que foi aquilo? –perguntou Nedoy, a medo.
Desta vez ela conseguiu abrir os olhos. Ele estava de pé, agarrado às barras de metal como se quisesse passar por elas.
–Isso o quê?
Ele suspirou, virando-se para ela. –Diz-me tu, bruxa.
Já há muito tempo que ele não se referia a ela daquela forma, com aquela acusação no tom de voz. Yex voltou a fechar os olhos, ponderando na melhor resposta a dar.
–Aquilo foi fruto da necessidade.
Nedoy não respondeu. Só lhe virou as costas para voltar a agarrar as barras de metal como se as pudesse puxar para o lado para passar por elas.
–Tu és um monstro, –sussurrou ele.
–Eu sei.
Ficaram em silêncio, no escuro, cada um preso nos seus próprios pensamentos. Ela abraçou os joelhos com mais força, procurando conforto, e ele acabou por se sentar no chão encostado a um canto.
Para já, não havia nada a fazer senão ficarem vivos. Só esperava que o exército Rebelde fosse mais rápido a ali chegar do que o Inquisidor que de certeza já estava a ser chamado para a interrogar.
Pela primeira vez em muito tempo, Yex tinha medo. Não medo da morte, que ela sabia que a sua hora já tinha passado à muito. Nem se importaria se tivesse perdido a batalha, se tivesse sido morta no meio daquela cidade; achava até que era isso que devia ter acontecido. E também não era bem da tortura que tinha medo, não era dos instrumentos dos Inquisidores nem das técnicas que eles usavam.
Ela tinha medo de ceder.
A Torre já era poderosa demais. Já alguém tinha cedido, antes, dando a Mosé o suficiente para se enfeitiçar a si e ao irmão com uma versão tingida da imortalidade que os Originais tinham. Aquele maldito mago já sabia demasiado, já tinha conseguido alterar o feitiço para o fazer funcionar, mesmo com as falhas que ainda tinha. Se Yex cedesse, se desse à Torre o que eles queriam... Deuses, como ela não queria viver no inferno que se seguisse!
Deitou-se, tentando pôr-se confortável sobre o chão de pedra ainda com o grilhão à volta do pulso. Estava recuperada o suficiente para achar que não ia morrer durante o sono, e sabia que, tão cedo, não ia ter acesso nem a água nem a comida, porque os poucos guardas que ainda havia estavam ocupados. Ela sabia o quanto demorava a enterrar aquela quantidade de corpos.
–Nedoy?
Ele olhou-a, a sua expressão cuidadosamente neutra. Como ele a devia odiar, agora...
Devias ter fugido.
Nedoy riu-se, relaxando contra a parede de pedra.
–Devia, não devia? Tornaria tudo mais fácil.
Yex olhou o teto alto, ponderando. Era mais que isso.
–Estou a falar a sério. Acho que não tens noção da sorte que tiveste em sair dali vivo.
Ela sentiu a pontada de medo que trespassou a alma dele, como se finalmente tivesse entendido que tinha estado a milímetros da morte e que Yex não o ia proteger.
Mas depois sorriu audivelmente. –Também tu. Aliás, se me tivesse ido embora, tu terias levado com pelo menos uma bala nas costas.
–Se calhar era exatamente isso que tinha de acontecer, –respondeu, soando demasiado certa disso.
Nedoy olhou-a com cuidado. Ela sentia-o a observá-la, sentia a forma como usava os olhos para lhe ler a expressão e a mente para tentar decifrar a emoção que se escondia na fraquíssima energia que ainda havia dentro dela.
–Porque dizes isso? –acabou por perguntar assim que teve a certeza que ela estava a dizer a verdade.
Yex virou-se para ele. –E porque não? –suspirou. –Todos temos um destino a cumprir, Cavaleiro, e eu já vivi o suficiente para ter cumprido o meu. –Depois olhou o teto, como se as respostas que procurava estivessem lá escondidas. Hesitou. –Tu quebras destinos, Nedoy. Tem cuidado com isso.
Ele não respondeu, e ela voltou a fechar os olhos, procurando conforto nesse simples gesto.
Claro que omitiu o facto de, mesmo assim, estar agradecida. Fosse ou não suposto ela morrer ali, estava agradecida em ainda estar viva. Por mais que odiasse a ideia do que lhe estava reservado no futuro próximo, ainda tinha esperança de conseguir escapar a isso. Mesmo se fosse o seu destino morrer naquela guerra, ela agradecia a hipótese de não ser nesse dia e não dessa forma.
Talvez por isso lhe custasse tanto fazer o que achava certo.
–Eu não posso ficar aqui, –disse para Nedoy. Sentia tanta culpa de o ter arrastado para aquilo.
Ele sorriu. –Também não acho muito agradável, mas...
–Não é isso, Nedoy, –tentou explicar. As palavras já começavam a ficar-lhe presas na garganta. –Porque se eles conseguirem o que querem... Tu podes sobreviver a isto, mas eu não.
Nedoy aproximou-se dela, ainda a medo, talvez percebendo a preocupação dela.
Oh Esh, porque é que a exaustão tinha o direito de lhe toldar os pensamentos e aumentar as emoções?
–Que loucura é essa, mulher? Eu não me lembro de eles te terem dado na cabeça...
Ela queria sorrir, mas estava incapaz.
–Não é loucura nenhuma, Nedoy, –queixou-se. –Eu não posso estar viva quando o Inquisidor chegar. Eu não...
–E não é que enlouqueceste mesmo, Yex? –disse ele, sentando-se à sua beira. –É bom saber que ainda és humana o suficiente para teres medo, mas eu acho que é uma terrível ideia desistir quando já chegaste tão longe.
Ela engoliu em seco, tentando controlar a humidade que ameaçava aparecer-lhe nos olhos. Ele não fazia ideia, pois não?
–Sabes porque é que a Torre me quer capturar viva?
Nedoy hesitou. –Nunca pensei muito nisso, por acaso. Porque és a última dos Originais.
Yex acenou com a cabeça. –E sabes porque é que isso é importante?
Ele admitiu que não, e ela baixou os olhos para o chão. Estava mais calma, e queria estar mais calma mas, de alguma forma, parecia-lhe errado estar a conseguir.
–Os Irmãos querem usar-me para descobrir como fizemos o feitiço da imortalidade. –Riu-se, amarga. –Bem, Mosé quer aperfeiçoar o que tem e Aron quer encontrar uma cura. Eles são cá um duo...
Nedoy hesitou por um longo momento, olhando-a como se estivesse a ser gozado.
–Yex, Aron está morto. Levou um tiro que lhe explodiu metade da cara há quase vinte anos! De certeza que estás bem?
Ela riu-se, segurando mal as lágrimas que lhe chegaram aos olhos. –Eu estive com ele há para aí dois anos, Nedoy. –Ignorou a reação do Cavaleiro. –O feitiço que Mosé fez nos dois salvou-lhe a vida, ou, na opinião dele, prolongou-lhe a morte. Estão os dois atados e enquanto um viver, o outro sobrevive. Senão teríamos conseguido assassiná-los há já muito tempo.
Nedoy não disse nada.
–Eu, como todos os outros Originais, continuo a ser humana e a ser mortal. Não envelheço, certo, e estou viva há tempo suficiente para ser uma maga proficiente, mas sou capaz de morrer como qualquer outro, –explicou, nem sequer pensando se lhe devia contar isso. Estava cada vez mais cansada. –Mosé roubou parte desse feitiço há séculos e, na tentativa de ser mais imortal e menos humano, atou-se ao irmão dessa forma. Imaginas do que é que ele seria capaz, do que é que eles seriam capazes se tivessem o feitiço completo para acrescentar às décadas de estudo daquele louco obcecado? A Torre já é capaz de tanto, imaginas o que fariam se tivessem a chave para... a chave para...
O Cavaleiro abanou a cabeça, levantando-se para se afastar dela, e Yex sentiu o desespero a encher-lhe o peito. Principalmente quando ele não disse nada.
–Eu não posso ficar aqui, –repetiu, mais fraca.
Ainda estava exausta, gasta até ao tutano. O seu corpo implorava-lhe por descanso, tentava mantê-la viva apesar do frio e do desconforto e da sua própria fraqueza, e ela sabia que não ia conseguir negar-lho por muito mais tempo. Já estava confiante de que, se adormecesse, não ia morrer durante o sono, mas agora isso estava a ser mais uma maldição que um conforto. Não fazia ideia de quanto tempo ia ficar inconsciente porque não se tinha nunca levado assim tão ao limite.
–Isso não vai acontecer, –disse Nedoy, de costas para ela. –Eles não vão vencer a Morte, que isso é impossível. Tu não lhes vais dar o que eles querem.
–Não podes prometer isso, Cavaleiro, –respondeu ela, já de olhos fechados. –Estamos os dois presos aqui dentro e, mesmo se não estivessemos, eu estou fraca e em nenhuma condição para lutar. E quando o Inquisidor chegar...
Ele abanou a cabeça. –Os Rebeldes vão tomar a cidade antes disso. Não vai chegar a esse ponto. Não te preocupes com isso.
–Raios te partam a ti e à tua positividade, –sussurrou Yex. –Não podes ter a certeza disso. Eu estou exausta, vou adormecer a qualquer momento por sei lá bem quanto tempo... e preciso que não deixes que eles me levem. –Suprimiu um bocejo. –Por favor.
Ele virou-se finalmente para ela. –Tu vais ficar bem, Yex. Vamos os dois ficar bem. Eu prometo.
....
Ai, Deuses, em que é que estes dois se foram meter?? É a primeira vez que vemos Yex tão desesperada, tão frágil... e o Nedoy continua a ser o Nedoy no seu melhor (e pior), positivo e honesto demais, sempre a fazer o que acha que está certo independentemente do quão errado esteja...
(Tenho um bocado de inveja da relação entre eles, actually. Gostava de ter um amigo a quem literalmente pudesse confiar a minha vida...)
A partir de onde diz "Talvez por isso lhe custasse tanto fazer o que achava certo.", essa parte da cena foi escrita do zero para este 3º rascunho. Temos uma explicação um bocado melhor do que mantém estes Irmãos vivos e do porquê de ninguém ter assassinado Yex até agora. Vamos conhecer Mosé daqui a um bocado, Aron só aparece bem mais tarde, e agora têm um bocado mais da motivação dele antes de o conhecerem em pessoa.
No segundo rascunho só descobríamos os detalhes do feitiço deles para aí no antepenúltimo capítulo, o que eu achei que era demasiado tarde. Daí esta mudança.
Acham que está acreditável? Acham que os personagens estão in character (tendo em conta a situação)? Acham que está decentemente escrito?
Beijinhos e até à próxima! ^w^
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