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Capítulo XX



Yex passava os dias a ajudar no que podia. Os planos estavam traçados, tinham sido enviados mensageiros com cartas encriptadas para todas as cidades onde tinham aliados. Todos os dias saiam grupos de caçadores, voltando à noite com caça fresca que a gente da cidade secava ou fumava em preparação. Mandaram mensageiros para as montanhas, a única fonte de metal não controlada pela Torre, e preparavam-se armas, distribuiam-se espadas, lanças, arcos, e até se criavam armas improvisadas com o que tinham à sua disposição.

Nedoy tinha convencido o prisioneiro a voltar a comer mas, infelizmente, não tinham conseguido mais informações. Ele voltaria lá e talvez aí tivessem mais sorte mas, para já, estavam-se todos a preparar para o pior, para a possibilidade de já haver um pequeno exército a caminho para tomar Eshafra.

De dia, ajudava em qualquer canto onde precisassem dela, ensinava magos, organizava o envio de mensageiros. À noite, apanhava cobras para lhes extrair o veneno. As estrelas eram demasiado pequenas e desfocadas para ela se orientar por elas mas, crescida numa das tribos, era uma das poucas que ainda sabia as tradições para trabalhar com aqueles animais perigosos. Por vezes Eris, a rapariga combatente, ajudava-a. Aqueles venenos seriam importantes mais tarde; além das capacidades letais, eram também parte de muitas medicações e mistelas que ajudariam a tratar os feridos. Teriam que recolher o mais possível agora, mas ela não queria correr riscos de que alguém acabasse magoado por não saber os procedimentos. Ela sabia-se capaz daquilo, e não queria que mais ninguém acabasse magoado, e então passava noites inteiras a trabalhar e mal dormia, ultimamente. Descansava umas horas por noite, com sorte, e durante um curto tempo de meditação para absorver a luz do sol no seu zénite. Era tudo o que tinha tempo para fazer. Isso dava-lhe alguma energia, mas nada fazia por ajudar os seus músculos doridos. Era um mal necessário.

Os armazéns, improvisados em casas e tendas, começavam-se a encher de mantimentos e medicamentos. Felizmente ainda havia quem os soubesse fazer a partir de certas plantas que os caçadores traziam todos os dias, porque Yex tinha a certeza que cada gota daquelas mistelas seria necessária para o que vinha. Salvar-se-iam mais vidas ao curar os feridos.

Não tinha sentido falta daquilo, mesmo nenhuma. Foi uma guerreira por décadas, combateu quer a natureza quer os Conquistadores, perdeu os amigos em ataques coordenados para garantir que o máximo de gente morreria. Mas, mesmo assim, nada se comparava ao desespero das dezenas de vezes em que tinha tido de tratar os feridos e enterrar os mortos. Andar de colchão em colchão, quando colchões os havia, carregando bacias de água fervida para trás e para a frente, limpando feridas para parar infeções ou usando magia naqueles que nem a medicina tradicional podia ajudar... não havia terror que se comparasse a esse. E ela sabia que, num par de semanas, teria de passar por isso mais uma vez.

Tinham que ganhar aquela guerra. Não podiam deitar tudo a perder; não agora, não depois de tudo aquilo. E o mínimo —ou o máximo— que ela podia fazer era estar preparada.

.

Nedoy desceu as escadas de volta àquela prisão, carregando cobertores e velas novas para Cristóvão. Tentou que a sua face não mostrasse o conflito interno quando quem o acompanhava baixou a barreira mágica que ajudava a prender o prisioneiro para ele poder pousar aquilo à beira dele.

Ele acenou, e o guarda deixou-os sem dizer mais nada, refazendo o feitiço. Ele parou em frente ao prisioneiro e esperou até ouvir a porta do edifício ser trancada.

–Porque é que não vieste sozinho? –perguntou-lhe Cristóvão.

–Há regras apertadas para qualquer um que lide contigo. Não me consegui livrar do guarda, –disse.

O homem encolheu-se mais contra a parede. Pegou nos cobertores novos que Nedoy tinha trazido para se enrolar neles. Um tilintar metálico soou, assustando-o, quando uma pequena chave caiu ao chão.

Nedoy sorriu. –Essa chave abre os grilhões. Não os deixes descobrir que a tens, –disse, e o homem acenou-lhe com a cabeça. –Eu consigo tirar-te do edifício, e daí conseguimos sair da cidade. Ainda estou a tentar perceber quais são os horários dos guardas, que está tudo caótico lá em cima... Posso precisar de mais alguns dias.

Quase pôde jurar que toda a esperança do homem o deixou ao ouvir isso. Mas ele controlou-se rapidamente. –Nem penses. Tínhamos um acordo.

Ele encolheu os ombros. –Confia em mim quando digo que não tenho problema nenhum em deixar-te ser apanhado e morto. Mas se queres sair vivo da cidade, eu preciso de mais uns dias.

Cristóvão baixou os olhos, escondendo a chave dos grilhões entre as dobras dos cobertores. Acenou com a cabeça.

–Vai haver uma solução, mas não vai ser fácil de encontrar. –Nedoy sentou-se no chão para estar mais de frente para o prisioneiro. –Mas tu também ainda não cumpriste a tua parte do acordo, pois não? Conta-me do que sabes, de como chegaste aqui.

Cristóvão semicerrou-lhe os olhos. –Eu não contei a ninguém quem tu eras. E porque é que queres saber isso?

Espreitou por cima do ombro. –Porque eu vou contigo, e gostaria de não morrer de sede por tu não te lembrares onde ficam os pontos de água.

A voz do preso traiu o seu receio. –Não, não vens. Tenho que voltar a Dobrario para falar com o meu superior. Vamos acabar ambos mortos, se descobrirem que eu te ajudei.

Abanou que não com a cabeça. A cidade de Dobrario ficava mais de um mês a este, se bem se lembrava, encostada a uma das curvas do grande rio que bissecava o deserto. Pelo menos assim sabia que a Torre não estava mais perto que isso, poisada para atacar. –Gostaria muito que isso não acontecesse, por acaso. Mas não tenho de ir contigo até tão longe, só a distância suficiente para não voltar a ser apanhado aqui.

Cristóvão dirigiu-lhe um olhar de suspeita, examinando-o de cima a baixo, e Nedoy engoliu em seco sob aquela observação.

–Vais morrer no deserto, então, e eu não acho que isso será muito melhor. E o meu acordo é não dizer nada sobre ti! Porque raio é que não ficas cá, junto ao resto desta cambada de traidores? Isso não faz sentido.

A sua expressão endureceu com determinação que talvez não tivesse merecido. –Chama-me de traidor o quanto quiseres, mas eu ainda sou um Cavaleiro, e, tanto quanto sabes, vou ser a pessoa que te salva a vida. Não tens direito de questionar as minhas decisões.

O prisioneiro não lhe desviou o olhar, talvez à procura de qualquer indício de dúvida ou hesitação. Depois riu-se. –Se fugires para o deserto, mata-te Deus, e se fugires para as cidades, mata-te a Torre. –Os cantos dos lábios curvavam-se para cima com sadismo. –Se queres fugir é porque achas que se ficares aqui vais acabar morto também? Como é a expressão? Xeque-mate?

Nedoy mufou. –Isso não é problema teu, Cristóvão, pois não?

O outro encolheu os ombros. –Estou aqui preso, pego em qualquer entretenimento que tenha disponível.

–Então que tal calares-te para falarmos de como fazer para que não estejas aqui preso?

Cristóvão mufou, queixou-se e praguejou mas, relutantemente e aos poucos, foi-lhe dando as informações sobre os pontos de água.

Contou-lhe que a Torre ia mandando patrulhas deserto adentro há já bastante tempo, para tentar chegar à mítica cidade rebelde de Eshafra. Não havia poços naquela parte do deserto, e as posições eram demasiado precárias para arriscar construir mais. Encontrar os pontos de água era difícil e muitos dos grupos enviados não conseguia voltar à Torre com as novas informações. Mesmo quando o faziam, os mapas eram incertos e difíceis de ler, o que tornava tudo mais difícil para o grupo seguinte. Com apenas uma bússola para os guiar, maus mapas e poucos mantimentos, era dificílimo sobreviver, mas os Irmãos achavam que aquela tarefa era importantíssima e por isso os Cavaleiros obedeciam.

–Foi sorte temos dado com a cidade. Começávamos a acreditar que talvez nem fosse real.

Encontrar aquele sítio para o destruir era suficientemente importante para que a Torre tivesse mandado dezenas dos seus homens para a morte no deserto. Isso azedou a expressão de Nedoy, mas ele continuou a ouvir.

Cristóvão e o parceiro tinham passado a maior parte de dois meses por deserto aberto antes de chegar ali, avançando com caução de ponto a ponto. Não tinha sido fácil, mas tinha resultado em acrescentos feitos em tinta transparente no mapa rudimentar que a Torre lhes tinha dado. O papel estaria entre as coisas que roubaram ao morto, e Nedoy já tinha utilizado aquela tecnologia antes e sabia como a ler. O prisioneiro garantia que, mesmo sem mapa, seria capaz de encontrar o caminho de volta, mas Nedoy não acreditava muito nele. Pelo menos agora sabia onde procurar.

Acenou com a cabeça, satisfeito. Levantou-se, sacudindo-se do pó que lhe cobria as roupas. –Tenho de conseguir arranjar mantimentos para esse tempo todo. Com a cidade a contabilizar tudo tão de perto, não vai ser fácil.

–Tens até amanhã, –instruiu Cristóvão.

Nedoy riu-se. –'Tás louco? Isso é impossível.

Cristóvão encolheu os ombros. –Já estou aqui trancado há tempo a mais, e agora que tenho as chaves do grilhão, –disse ele, tirando-a do meio dos cobertores para finalmente se soltar do metal pesado que lhe prendia o pulso, –não tens muita escolha. Eu vou fugir daqui, seja como for, e vou sobreviver. Que horas são? É tão difícil contar o tempo, aqui dentro...

–Estamos a meio do dia, e anda toda a gente de volta dos mantimentos e do almoço. Não recomedaria que tentasses fugir agora, –respondeu Nedoy, tenso.

O prisioneiro sorriu. –Tens até amanhã, ou eu tomo esse risco.

Nedoy virou-se para a saída, para as escadas íngremes e mal iluminadas, sentindo-se como se estivesse a sair do inferno quando a pouca luz que se escapulia pelos buracos da ventilação o começou a iluminar.

–Despacha-te, Nedoy! –disse o outro, quase em cantilena.

O outro tinha razão, ele era um péssimo mentiroso.Tinha sido uma ótima ideia, ele não contar mentira nenhuma. O homem não sabia da barreira mágica que ainda o prendia ali; provavelmente o feitiço seria invisível a quem não conseguisse ver as "energias do mundo", ou o que raio Yex continuava sempre a referir. Custava-lhe ser assim desonesto mas, se não o fosse, seriam as vidas de ambos a estar em risco. Pelo menos agora sabia do mapa, sabia onde o encontrar e como o ler. Tinha aquela pequena prenda para Eshafra para se pôr nas suas boas graças, e tinha menos de um dia para explicar que era Cavaleiro mas que estava do lado deles. Bastava-lhe contar a uma ou duas pessoas e deixar que a informação se espalhasse, rezando para que os rumores que a acompanhariam não o fizessem parecer demasiado mal.

Quando o guarda de serviço lhe abriu a porta para a rua, a diferença súbita de luminosidade fez os seus olhos doer. Tinha passado demasiado tempo lá em baixo.

–Ele soltou-se dos grilhões, –avisou, não querendo que ninguém se magoasse por causa da sua escolha. –Tenham cuidado quando descerem.

Deixando a mensagem, Nedoy seguiu para ir buscar e revelar o mapa. Levá-lo-ia ao Conselho e, com sorte, eles deixá-lo-iam explicar-se antes de o banirem da cidade por ter sido da Torre.

Ele tinha cá um jeito para ignorar o destino, mas agora tinha de lidar com as consequências.

.

Nota da Autora:

Pois, o Destino está mesmo irritado com ele!! No primeiro rascunho, Nedoy nem interagiu com este personagem. No segundo decidiu que o ia ajudar, e neste ele ficou do lado dos Rebeldes... Tou a arrancar cabelos, sério: ele é IRRITANTE! Nem sei que lhe faça...

(Jk eu sei o que lhe vou fazer.)

Estão a gostar? Estão a aproveitar a minha frustração?? Espero bem que sim. Beijinhos!

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