Capítulo XLVII
Nedoy pouco ajudou, desta vez. Não podia, mesmo que quisesse, com os braços feridos e assim enfaixados depois de ter piorado o ferimento com o pouco que fez durante a luta. A morte dos Irmãos chocou a cidade quase tanto quanto a descoberta de que eles estiveram vivos esse tempo todo, quase tanto quanto a quantidade de deserções entre os soldados da Torre. A maioria dos oficiais militares foram capturados ou derrotados. Se os ricos que fugiram da cidade retornassem, trariam consigo reforços, de certeza, para proteger a riqueza que ali tinham feito, desconhecendo o facto de que o fogo lançado pelos magos tinha destruído as suas casas. Quereriam manter as suas rotas de troca, protegê-las desta mudança súbita de liderança em Nyin, e quiçáo que fariam para que isso acontecesse. Mas isso era uma luta para outro dia, e pouco importava, realmente, quando maioria do povo não colocou qualquer resistência à tomada pelos Rebeldes. Queriam apenas um lugar seguro para viver; muitos, como ele, já tinham nascido daquele lado do oceano e não conheciam mais nada, e muitos mais não tinham para onde ir se fossem banidos dali. Ele sabia que o que restava do Conselho estava ainda a discutir qual seria a melhor forma de agir, mas o banir de pessoas tinha sido rapidamente negado como opção.
Seria impossível voltar a um ideal do "antes", voltar a um Nyin que não tivesse em parte sido influenciado por aqueles homens do além-mar e pelos Irmãos que lideraram a Torre. O melhor que podiam fazer era ir em frente, aprendendo com os erros do passado para tentar não os imitar.
Na noite seguinte, haveria festa. Tinham vencido, inegavelmente, e isso era uma razão para celebrar. Não duvidava que fosse um jogo político, também, abrir os armazéns que dantes pertenciam à Torre e aos seus soldados para alimentar o povo da Capital num grande banquete acompanhado de vinho, cerveja, cantares e dança para os começar a familiarizar com a cozinha de Nyin e com as suas tradições.
Talvez isso fizesse alguma diferença.
A noite caiu rápido, e com ela veio o frio que trazia todos para mais perto da fogueira acesa no centro da praça. Tinham-na feita pequena e débil, talvez para evitar trazer memórias do incêndio do dia anterior onde por sorte ninguém morreu, mas isso só fazia com que as pessoas se aproximassem ainda mais para lhe sentir o calor. Da luz pouco precisavam, com a lua cheia a pintar a sua prata sobre todos os que cantavam e dançavam um pouco mais longe. Havia mesas espalhados pelo perímetro do espaço aberto, arrancadas da cantina que dantes servia os soldados do regime, colocadas quase ao acaso. Estavam cobertas de todo o tipo de comidas para qualquer um que as quisesse experimentar. Havia barris e barris de bebida, servidos por voluntários que corriam de um lado para o outro a encher copos para tentar que todos tivessem os copos cheios. O ar enchia-se de música, quer daquela com que tinha crescido quer com as tradicionais de Nyin que ia aos poucos aprendendo neste ano que passou; e enchia-se de risos e conversas e felicidade que quase o faziam esquecer do que se tinha passado há pouco mais de um dia. Crianças dançavam à volta da fogueira, ignorando a hora tardia, e os adultos que se espalhavam pelo perímetro olhavam com desconfiança e medo para os magos rebeldes que ensinavam feitiços aos mais pequenos. Mas ninguém os impedia.
Deixou-se sorrir com a cena, fechando os olhos para melhor ver a constelação de vidas que se lhe apresentava. Estava sentado sozinho num banco, longe da luz da fogueira e com um copo já vazio na mão. Daqui, conseguia ver tudo.
Era lindo, e era alegre e era feliz. Queria usar aquilo para apagar tudo o que tinha visto. Tinham ganho! Ele devia estar feliz!
Abriu os olhos ao ver um homem a aproximar-se dele. Tinha o cabelo entrançado das formas tradicionais de Nyin, algo que era raro mesmo entre os rebeldes, e as orelhas estavam-lhe decoradas com dezenas de brincos que brilhavam ao luar. Trazia os olhos húmidos e rodeados de olheiras e, pela maneira como andava, parecia muito mais velho que as feições sugeririam.
Parou em frente a ele, olhando-o de cima a baixo.
–És o Nedoy? –acabou por perguntar, com uma voz escura e cansada.
Ele ergueu os olhos e respondeu-lhe que sim. O homem fechou os dele por um momento, acenando com a cabeça antes de lhe estender um envelope fechado que Nedoy aceitou a medo. Passou os dedos pelo relevo da tinta, sentindo a textura do papel antes de ter coragem de ler o que lá estava escrito.
Aquilo era uma carta de Yex, endereçada a si. Aquela que ela não estava lá para queimar.
O homem que ele não conhecia não recuou, balançando apenas sobre os pés à procura do que dizer. Estava perdido em pensamento, segurando um outro envelope no punho cerrado.
–Tiveste sorte em conhecê-la, miúdo, –sussurrou, quase inaudível sobre a comoção da multidão antes de se virar e desaparecer entre ela.
Nedoy suspirou, todas as emoções a virem-lhe à tona mais uma vez depois de se ter forçado a empurrá-las para longe. Ponderou não abrir a carta, e queimá-la apenas no meio das dos que tinham sobrevivido, fingindo que tinha sido ela a fazê-lo. Mas, depois de um longo momento e com as mãos a tremer, acabou por a abrir.
Quando acabou de ler o que seriam as últimas palavras de Yex, as lágrimas caíam desimpedidas e ele agradeceu à Lua por não o estar a iluminar. Não fez por as impedir, sentindo o sorriso que trazia na cara tão bem quanto a humidade salgada que lhe cobria as bochechas.
Ele tinha esperança; Nyin tinha esperança, agora! Foi por isso que ela tinha lutado e morrido como tantos outros. E podia haver muito trabalho pela frente, sim, muita coisa para fazer enquanto tentavam estabilizar as incertezas que o futuro trazia com ele.
Mas ele ainda ali estava, e ia lutar para que o amanhã fosse melhor que o hoje.
Custasse o que custasse.
FIM
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