Capítulo XLVI
Nedoy acordou com o tocar incessante do sino de alarme. Sentou-se cama, assustado, à espera que alguém o viesse libertar.
Estava na hora.
Foi o próprio Mosé que lhe irrompeu pelo quarto, pouco depois, e lhe destrancou os grilhões. Atirou-lhe uma camisa branca limpa.
–Veste-te. E porta-te bem, hoje; eu não aceito erros.
Era difícil perceber se tinha acabado de acordar ou se tinha passado mais uma noite em claro, mas fosse como fosse já tinha a máscara decorativa sobre a cara a tentar cobrir a expressão de zanga contida. Mosé saiu do quarto-cela deixando a porta aberta atrás de si.
Nedoy vestiu-se velozmente, pegou na espada, na pistola e no necessário para a disparar. Respirou fundo, mentalizando-se do que teria que fazer. Depois seguiu o seu captor para a sala de estar chique que já estava cheia de soldados e guardas e servos que, ao tocar do alarme, para ali se tinham dirigido. Era Aron que liderava o exército, não Mosé, mas isso não significava que ele fosse menos importante.
O caos estava organizado, mesmo enquanto o pânico enchia a sala. Mosé estava sentado no sofá com um guarda de cada lado e com a mesa à sua frente já completamente vazia de documentos incriminadores. Estava parado no meio de toda a comoção, irritado com tudo, enquanto servos fechavam as janelas e as cobriam de panos pesados e cortinas de cota de malha, moviam mobília e transportavam cartas com ordens para dentro e fora daquela casa.
–Não pode sair, senhor; é demasiado perigoso! –disse um dos guarda-costas quando Mosé se levantou do sofá para se dirigir à porta.
O Irmão só se cobriu com sua capa e abanou a mão no ar. –Eu sei o que faço, criança. E tu tomas as ordens de mim, não de Aron, lembras-te? –O pobre guarda ficou surpreendido e assustado, preso contra a espada e a parede, entre as regras de Aron e de Mosé. Sem se virar para ele, o mago disse –Vem, zero-quatro. E se vocês os dois me quiserem seguir, estão à vontade. Mas aviso-vos que vão estar em muito mais perigo que eu.
Depois saiu para o frio da madrugada, seguido de perto por Nedoy. Os guardas hesitaram e acabaram por deixar uma boa distância entre eles e o mago, mas seguiram-no na mesma.
–Sabes o que fazer? –perguntou-lhe Mosé, avançando pelas ruas mal iluminadas pelo sol da madrugada com um passo veloz, ignorando os sons de gritos, de tiros e de explosões que enchiam a distância.
A muralha estava sob ataque. Talvez viessem atacantes do rio, também, era impossível ter a certeza.
Nedoy acenou com a cabeça. –Feri-la, senhor. Você quer-la viva.
–Exato. Não estragues isso. Prefiro que ela fuja a que a mates, –disse, virando uma esquina repentinamente, dirigindo-se para as zonas mais pobres da cidade.
As casas ricas estavam quase todas silenciosas e vazias, mas quanto mais eles se distanciavam delas, mais barulho ouviam. Aquelas pessoas não tinham conseguido fugir enquanto podiam, ou não tinham tido para onde ir, e agora corriam pelas ruas com os filhos pela mão à procura de algum lugar seguro onde se pudessem esconder. Bem, relativamente seguro. O pânico era palpável, principalmente agora que os sons da batalha se aproximavam a passos largos, agora que a informação de que os Rebeldes tinham magia fazia os próprios soldados hesitar.
–Não te metas na luta, não combatas com mais ninguém, –disse Mosé, curto, antes de fechar os olhos. –A bruxa vai aparecer não tarda. Eu sinto-a. Deve estar à minha procura. –Depois virou-se num passo para ficar assustadoramente perto da face de Nedoy, ameaçando-o. Não tinha nenhum humor na expressão, só uma raiva fria de um assassino, o monstro que ele normalmente escondia tão bem. –Fica aqui e não faças nada de estúpido.
E, sem mais nada, quase correu pela rua fora, com a capa a dançar atrás dele, para se esconder como o covarde que era no meio das casas dos pobres. O maldito sabia que Yex nunca atacaria civis, muito menos nas suas próprias casas, e sabia também que a sua energia seria mais difícil de seguir quando escondida por entre as luzes dos outros. As espectativas de Nedoy para com Mosé estavam os mais baixas possível mas, de alguma forma, aquilo conseguiu desapontá-lo.
A luta aproximava-se mais e mais a cada momento. Soldados rebeldes pingavam das muralhas e para as ruas da cidade, matando os homens da Torre que tentavam defender-se dos magos e dos arcos e das pistolas. Os disparos não cessavam, e agora eram acompanhados pelo colapsar de edifícios e pelos gritos dos feridos de ambos os lados. Os magos estavam a atacar não só os soldados, mas também a cidade em si. Quase se sentia a ira deles a vibrar no ar, junto do pó e das pedras que levantavam.
Nedoy tentou avançar, mas aquela dor infinita a que se tinha habituado voltou a tomar conta dos seus músculos e ele parou, praguejando em voz alta. Onde quer que Mosé estivesse, estava de olho nele. Fechou os olhos, seguindo o feitiço para encontrar a fonte, e descobriu que Mosé não estava tão bem escondido assim, sentado no chão de costas para uma das paredes fracas daqueles edifícios, protegendo-se junto da família que ali vivia. Tinha uma criança deitada sobre o seu colo, provavelmente para a fazer de refém se disso houvesse necessidade. Era difícil saber se o medo que Nedoy sentia nos civis era causado pelo Irmão ou somente pela situação.
E, aos poucos, a batalha aproximava-se. Alguém tinha pegado fogo à área mais rica da cidade, fazendo o ar brilhar com fumo e chamas e com o brilho do sol refletido do mar e, quando ele fechava os olhos, conseguia sentir cada feitiço lançado. Se Yex se alimentava da luz do sol, não devia ser coincidência que este ataque, em vez de ser lançado à noite, o tivesse sido de madrugada.
E Nedoy estava ali parado, à espera, com a Torre pelas costas e a muralha a espreitar-lhe sobre os telhados à sua frente.
Infelizmente, Mosé tinha razão. Yex aproximava-se, desviando esquadras inteiras de soldados como um humano desviava formigas, caminhando em força para onde tinha sentido a energia corrompida do Irmão que agora se escondia entre o pânico do povo.
Nedoy sabia o que tinha de fazer.
Quando ela apareceu na esquina, sozinha e coberta de sangue que não era seu, não demorou a reconhecê-lo e a reagir com surpresa, quebrando o foco por quase um segundo. Depois ignorou-o, virou-lhe as costas e fechou os olhos para melhor localizar quem procurava.
Mosé não gostou da sua falta de ação, e Nedoy rangeu os dentes contra a dor de ser usado como uma marioneta, resistindo contra a força que o obrigava a apontar a arma às costas da amiga, a um ponto fraco para a paralisar. Ele só tinha uma hipótese de fazer isto, e não podia errar.
No último segundo, usou toda a sua força para quebrar o feitiço de Mosé. Urrou de dor ao ferir os próprios braços, empurrados de um lado e puxados do outro por aquela luta mágica. Premiu o gatilho quase sem o sentir, e o tempo parecia lento à medida que a bala atravessava o ar, dançando num assobio, até ficar espetada na parede fina da casa onde o mago se escondia. A família lá de dentro gritou, Nedoy caiu ao chão e Yex reagiu mais rápida que o próprio tempo para lançar um feitiço que ignorou a parede fraturada e se agarrou a Mosé.
Mosé gritou com um misto de fúria e dor, ferido, acabando de partir a parede rachada e de sair para a rua. Ainda trazia a criança refém contra o seu corpo. A família gritava e o miúdo esperneava e lutava para se tentar libertar. Mosé riu-se ao ver Yex carregar o arco.
–Vamos ver qual de nós é mais poderoso então, Bruxa Branca! –urrou ele, rodeando-se com um vento que rugia como um animal enjaulado, tão forte que se tornava quase opaco. –E temes pôr em risco a vida deste verme, não é! Matarias uma criança? –gritou Mosé, mais alto ainda para se fazer ouvir sobre a cacofonia que enchia o denso ar.
A família chorava, a criança chorava e gritava e esperneava, e Mosé teve de lutar com ela para a segurar.
Mas Yex estava calma, talvez demasiado, e disparou o seu arco talvez uma dezena de vezes num piscar de olhos. Algumas das flechas ressaltaram da parede de ar, mas a maioria atravessou os seus pontos fracos para se espetar algures ali dentro. Mosé urrou, e o vento acalmou-se o suficiente para Yex continuar a disparar, rápido demais para que o mago conseguisse desviar todas as flechas, e Mosé atirou a criança para longe, já inconsciente, ao perceber que lhe era inútil. Um homem correu para ir buscar o pequeno e para fugir o mais longe possível dali.
Nedoy demorou a carregar a pistola com os braços feridos como estavam, e a luta escalava rápido. Era difícil sequer seguir os movimentos que eles faziam, Yex rodeada por uma sombra inatural a roubar os raios do sol e Mosé, já ferido e cada vez mais lento, a cobrir-se de fogo roxo e de ventos densos para se tentar defender da barragem de feitiços e ataques que a bruxa lhe lançava.
Ela, naquele momento, não era humana. Era uma sombra viva que levava tudo no seu encalço, lançando flechas e pedaços enormes de terra que soltava do chão e atacando com a espada rodeada de fogo que, de tão brilhante, parecia o branco de um sol em miniatura.
Mosé estava com medo. Escondida por detrás da parede cada vez mais fraca de ar e vento e chamas, meio tapada pela queimadura que lhe cobria a cara agora que a máscara se tinha perdido algures, estava a expressão de puro pânico de alguém que sabia que ia morrer vincada na face dele.
O disparo de Nedoy não foi o suficiente para acabar com ele, mas serviu para o distrair pela fração de segundo da qual Yex precisava para atravessar as defesas de Mosé. Aquelas chamas roxas queimavam-na, mas ela não se parecia importar, avançando entre elas como que pelo ar, atacando-o com a lâmina uma e outra vez, não lhe dando abertura para criar um contra-ataque ou sequer lançar um novo feitiço. Nedoy disparava, fazendo por o magoar ou, pelo menos, distrair. Feriu-lhe os braços, uma bala passou de raspão na cabeça, e o mago tinha cada vez mais ira e mais dificuldade em se proteger.
Foi só preciso um momento, e Yex espetou a lâmina no peito de Mosé.
O fogo roxo que tentava proteger Mosé acabou de vez. O vento demorou um pouco mais a parar, rodando sobre si antes de todo o pó e pequenas pedras que soltara do chão cairem na forma de uma chuva dolorosa por toda a rua.
Por uma eternidade, tudo parou. O barulho da luta, o incêndio que se espalhava, o silêncio deixado para trás pelo povo em debandada... tudo isso parou, ficando tão distante que quase nem parecia real. Mosé estava no chão, de joelhos, com uma espada que já não brilhava a trespassar-lhe o peito. O choque na face dele foi bem visível, mesmo a esta distância. Ele não podia acreditar no que estava acontecer, nem quando o sangue lhe caiu da boca e do buraco que a lâmina tinha deixado. Olhava para cima, para a sua assassina e para a sua fria falta de expressão ainda rodeada de sombra, e abriu a boca para dar mais uma das suas piadas sem graça. Mas já não tinha força, e acabou por apenas tossir umas parcas gotas de sangue, exausto, a luz da sua vida a sair a olhos vistos do seu corpo ferido. Yex puxou a lâmina e, como se aquilo fosse a única coisa a mantê-lo de pé, Mosé caiu de costas no chão com um baque seco, os joelhos ainda no chão e os braços pendendo em posições estranhas a seu lado. Sem nada na ferida para segurar o sangue, ele começou a fluir mais rápido para o chão, formando uma crescente poça húmida e escura à sua volta.
Nedoy aproximou-se, tão incrédulo quanto o morto. Yex ergueu a espada, ainda insatisfeita, e cortou a cabeça de Mosé, como se ele fosse um vampiro e aquela fosse a única forma de garantir que não voltaria à vida.
Ofegante, ela ficou mais um momento a olhar para o corpo do mago, para o sangue que ainda vertia dele e para a expressão de terror que lhe tinha ficado congelada na cara que ela pontapeou para longe. Uma triste energia dançava sobre o corpo, sugada de outro lugar qualquer, mas era pouca demais para corrigir os danos que Yex tinha causado.
Pelo menos por agora, Mosé estava morto.
–Não sabia que estavas aqui–disse ela, e Nedoy demorou demasiado tempo a perceber que era a ele que se referia. Ela falava como se nada daquilo tivesse acabado de acontecer. –Fico feliz por estares vivo.
–Também eu, –respondeu, sorrindo. Fechou os olhos, tentando controlar a dor que sentia nos braços feridos. Não tinha a certeza se os tinha partido ou não.
Yex riu-se, ilegível, e ele não pôde evitar a tensão que o encheu. E se ele não tivesse conseguido resistir ao feitiço de Mosé? Mais um meio-segundo, e seria ela ali, estatelada no chão numa poça do seu sangue, com um tiro na coluna. E pelas mãos dele.
–Eu não vou perguntar como sobreviveste, nem como vieste aqui parar, nem porque é que estás com um uniforme e pistola e espada da Torre. Só... –hesitou. –Bem vindo de volta ao mundo dos vivos, pa'am.
Ela virou-se e desceu a rua em direção à Torre que, a esta hora, ainda deitava a sua longa sombra sobre eles. O incêndio continuava a espalhar-se, fraco, pelos interiores das casas e mansões ricas de fachadas de pedra. A batalha esticava-se pelas ruas, ignorando o fumo que crescia em direção ao céu para avançar ao centro da cidade, onde os soldados da Torre ainda montavam toda a resistência que podiam. Nedoy seguiu-a, incerto do que mais fazer.
A rua estava coberta de sangue e de corpos e de coisas que tais. O fumo tinha-se espalhado para ali, empurrado pela brisa marítima, escondendo o que de certeza seria ainda mais feridos e mortos. Ele fechou os olhos para os proteger do ardor, focando-se na energia brilhante dos que ainda lutavam no interior daquela nuvem escura. Eram poucos, e não demorou até que ele percebesse porquê. Havia um mago poderoso ali dentro, a criar chamas e outros feitiços sob a coberta do fumo e a aproveitar o pânico dos soldados restantes para vencer a batalha. Não era preciso ter muitas forças rebeldes ali quando uma pessoa sozinha se conseguia livrar de esquadras inteiras com tão pouco esforço.
Avançou com receio para mais perto da entrada da Torre, temendo ser tomado por um inimigo escondido entre o fumo opaco.
–Mosé está morto. O tempo conta, –disse Yex, ou foi isso que ele percebeu do nyiniano dela.
O mago acenou. –Vai, –respondeu. –Se tiver forças quando acabar, ajudo.
Yex pousou a mão sobre a porta de pedra da Torre e, quase sem se esforçar, destruiu-a com um feitiço.
Ela estava a ficar cansada, isso era claro. Idem aspas para o mago que defendia a entrada e, com sorte, também para o exército cada vez menor da Torre. Subiu as escadas atrás dela, carregando a pistola devagar com os seus braços doloridos.
Aron estava no seu escritório. Era a única pessoa naquele edifício, e senti-lo era fácil. Nedoy acendeu uma pequena luz mágica para guiar o caminho naquelas escadas íngremes, poupando a Yex o cansaço de ser ela a fazê-lo. Desta vez, subir tudo aquilo pareceu ser bem mais rápido, ou pela luz que o guiava ou pela adrenalina que lhe acelerava e coração e lhe entorpecia a dor.
–Boa sorte, Quebra Destinos, –disse Yex quando eles chegaram à porta do escritório, sacando do arco mesmo antes de a abrir de rompante.
Yex disparou as flechas que tinha em mãos em rápida sucessão, fazendo Aron gritar com a fúria de um titã antes de lançar um tiro à bruxa. Ela saltou do caminho do chumbo impressionantemente rápido, e a bala espetou-se no estuque da parede depois de passar por onde ela estava há nem um segundo. Nedoy encostou-se perto da porta, recarregando a pistola para a disparar assim que tivesse uma abertura.
Aron dizia algo ininteligível pelo meio da dor de ser perfurado por flechas e por balas. Voltou a disparar a pistola contra a bruxa e Yex desviou a bala no último momento, dando tempo ao Irmão de saltar por cima da secretária para se atirar sobre ela e lhe tentar atingir a cabeça com a coronha da arma.
Yex gritou ao, incapaz de se desviar velozmente que chegasse, ser atingida no braço. Deixou o arco cair e rolou para trás, para perto da janela com o gigante que Aron era sobre ela, ameaçando-a. Nedoy disparou a última bala, atingindo-lhe as costas largas, mas em vez de ele gritar de dor só se virou com uma expressão irritada. Ao reconhecer quem o atacou, ficou mais irado ainda. Avançou para Nedoy com a pistola descarregada na mão, e ele hesitou antes de lançar um feitiço contra ele, uma chama azulada que o surpreendou.
Aron gritou. Yex aproveitou a distração pegar numa das espadas penduradas na parede. Cortou as costas do Irmão, rasgando-lhe a camisa e revelando as feridas sangrantes que antes se escondiam sob o pano negro. Ele devia ter um qualquer encantamento a protegê-lo, porque mesmo aquele ataque só lhe cortou a pele e músculo em vez de causar os danos letais que seriam normais naquilo. Yex escapou para perilosamente perto do vitral da janela e, ao erguer uma mão, encheu o ar com fogo. Por mais que gritasse de dor, Aron voltou a avançar sobre ela e Nedoy voltou atacar, abrindo mais uma ferida sangrante no abdómen do homem. Yex fez mais um encantamento, tirando o ar de onde Aron etentava respirar, mas ele ainda teve a força para a esmurrar e quebrar a sua concentração antes que ela pudesse fugir do seu alcance.
Tudo ficou um borrão, a seguir. Aron tentava agarrar Yex e ela, ágil como água, saía-lhe do caminho e aproveitava para o atingir com um golpe de espada nas costas ou por um feitiço. Estava cada vez mais cansada, e Aron estava cada vez mais ferido, com a energia a escapulir-lhe imiscuída no sangue fresco pelos cortes e golpes e buracos de bala, e cada golpe a atingia-o mais profundamente agora que ele não tinha força para os impedir. Nedoy sacou da espada, enfeitiçando-a como lhe tinha sido ensinado, mas tinha receio de se juntar à luta e atrapalhar Yex que, apesar do cansaço, se continuava a mover rápida como o vento.
Até ao último momento, não importava quem estava a ganhar.
Aron agarrou Yex antes que ela conseguisse rolar do caminho, e mesmo quando ela o feriu com uma chama azul e o desequilibrou, Aron não largou, procurando encontrar o equilíbrio no chão húmido de sangue. Nedoy avançou, acertando-o repetidamente com a espada, tentando magoá-lo para a bruxa o poder acabar.
E o tempo parou. Desta vez a proteção de Aron falhou o suficiente para que o metal o atravessasse todo. O grito de dor encheu o ar, e as pernas fraquejaram-lhe por um momento só, agora que já estava desequilibrado e ferido. Yex puxou-se para trás, tentando em vão libertar-se das mãos que ainda a seguravam, agora com mais força ainda por o Irmão procurar nela um qualquer apoio que o impedisse de cair.
Quando o tempo voltou a correr, a janela já estava estilhaçada. Alguns dos vidros coloridos tinham ficado ali em cima, quase se rindo sobre as poças vermelhas de sangue fresco, usando a luz difusa da manhã para brilharem como pequenas joias maldosas ou como milhares de olhos virados para ver a sua reação. Estava sozinho no pequeno escritório agora, como se lá tivesse subido horas depois de uma qualquer luta que já tinha há muito acabado. Será que tinha sido isso? Nada lhe parecia real, e o silêncio que lhe enchia a mente era ensurdecedor.
Aos poucos, ganhou coragem de ir espreitar para o chão do lado de fora da janela quebrada. O fogo na zona rica da cidade estava moribundo, mas o fumo ainda dançava sobre as ruas como um cobertor translúcido que ainda demorava a se dispersar. Mesmo assim, olhar para baixo dava-lhe tonturas, e ele puxou-se para dentro da sala danificada e respirou fundo, procurando acalmar-se. Aquilo não era real, pois não?
Saiu, entorpecido, para as escadas em espiral. Os sons voltavam-lhe a pouco e pouco, e ele teve de se esforçar para ignorar o descolar húmido dos seus sapatos a cada passo que dava, para ignorar as que deixava para trás, feitas de sangue que rapidamente escurecia
Tudo lhe parecia um péssimo sonho. Mosé tinha-lhe dado a volta à cabeça, e não era surpreendente que tivesse pesadelos daqueles, assim trancado na cama com grilhões a segurá-lo no sítio. Fazia sentido. Mas saiu para a rua ainda sem conseguir acordar. Tão perto do chão, o fumo era fino e quase nem lhe queimava os olhos, mas ele optou por os deixar fechados e procurar a energia que lhe era tão familiar entre as dos que o rodeavam. A batalha tinha acabado, isso era óbvio pela forma como o povo agora saía à rua, apagando as réstias de chamas que ainda se agarravam aos edifícios e aos seus escombros, mostrava-se na forma como os soldados rebeldes começavam a organizar enfermarias e cantinas e tudo o que seria preciso para tomar conta dos vivos e dos mortos depois de uma batalha ganha.
Nedoy não ouvia nada daquilo. Só sentia o próprio corpo, a dor cada vez mais forte dos braços feridos, o bater tão violento do coração no peito a tentar partir-lhe as costelas, a sua respiração laboriosa e o som dos próprios passos. Era-lhe difícil focar, mas ele deu o seu melhor para examinar cada energia que sentia à procura de uma em específico, à procura de Yex. Mas não a via em lado nenhum.
Contra os seus instintos, abriu os olhos. O fumo já se dispersava, deixando o sol tenso do fim da manhã atravessá-lo para iluminar a carnificina. E, oh, como ele esperava que assim não fosse!
Os pedaços de vidro espalhados pelo chão refratiam e refletiam a os raios brancos do sol em todo o tipo de tons. Era um sonho, de certeza, pela forma quase irreal que aquelas cores se misturavam no ar como pequenas lágrimas de luz congelada no sítio. Os olhos ardiam-lhe mesmo com a falta de fumo, e ele arrependeu-se de ter olhado no instante em que a realidade caiu sobre ele. Fechou os olhos e virou as costas, engolindo em seco para segurar toda a tristeza dentro de si, tentando procurar naquela pilha de membros a luz que tão bem conhecia.
Mas aquilo era real, não era? Não era um pesadelo. Yex estava mesmo morta.
Tinha mesmo caído do topo da Torre, puxada por Aron quando ele caiu pelo vitral aberto da janela decorativa. E agora estava ali, estatelada no chão, espalhada por entre o seu sangue e o sangue do Irmão e as lágrimas de vidro colorido que escorriam, levadas com os riachos de vermelho que se esticavam pelos espaços entre as pedras brancas da calçada. Pudera que ele não conseguisse encontrar a luz dela; era impossível a fosse quem fosse sobreviver àquilo.
Já não havia luz para encontrar.
Seria que, se ele não tivesse atacado como fez, aquilo teria acontecido? Estava entorpecido, dormente, e tinha as bochechas húmidas de choque e dor. Os braços não lhe obedeciam, demasiado doridos e feridos para ele sequer as conseguir enxugar.
Nedoy tinha aceitado que podia morrer em batalha. Ele era um soldado, e desde a sua adolescência que não conseguia imaginar uma outra forma de acabar a sua vida. Mas nunca pensou que ela fosse capaz de morrer. Depois de tudo, depois das lendas e das décadas de luta, ela ainda ali estava, intacta e pronta para a luta. Como raio é que uma queda evitável tinha acabado com ela?
Procurou, entre o barulho e comoção crescente da cidade tomada, algum lugar silencioso onde pudesse descansar. Estava exausto demais, era isso. Só tinha que descansar um pouco e ficaria bem.
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