Capítulo XL
A porta do quarto abriu-se de repente, assustando-o.
–É hora de sair, traidor, –disse um guarda, gesticulando com uma corda que trazia nas mãos. Este não era o de ontem, era um ainda mais novo e mais estridente e trazia uma ira fresca na face.
Nedoy sentou-se na cama, ainda a esfregar os olhos de sono. Os ombros ainda lhe doíam do dia anterior e as nódoas negras já lhe surgiam sob a pele numa imitação triste de uma pulseira negra, decorada com os arranhões que os nós lhe fizeram à superfície dos pulsos. Ele estava tão cansado daquilo. Sem a adrenalina a correr-lhe nas veias e por entre o cansaço da manhã ele não conseguia arranjar a energia para se importar. O guarda voltou a gesticular com a corda, fazendo Nedoy rir.
–Nem penses que eu te vou deixar prenderes-me.
–Não tens de deixar nada que isto não é um pedido. –Ele aproximou-se um pouco mais e Nedoy só ergueu uma sobrancelha questionante.
O outro guarda, o de ontem, estava encostado à ombreira da porta fazendo truques com a pistola, desinteressado. O mais novo avançou um pouco mais e Nedoy levantou-se com um meio-sorriso na face. Sabia que o queriam vivo. Se lhe quisessem prender os pulsos doridíssimos teriam que aguentar com ele.
–Deixa-o em paz, Martim, –disse o mais velho, aparentemente cansado.
–Não o podemos deixar solto, –respondeu, tentando laçar as mãos de Nedoy, mas ele foi mais rápido e desviou-se sem dificuldade.
–Podemos sim. Será mais discreto andar com um soldado ferido do que com um Cavaleiro preso, e Mosé não quer chamar demasiada atenção. E esse aí também não vai fazer nada, se quiser sair daqui vivo. –Parou de mexer na pistola, virando-se para Nedoy com uma expressão de desinteresse fingido. –Pois não?
Ele saltou mais uma vez para longe de Martim, evitando a maldita corda que ele lhe tentava atar. –Claro que não.
O guarda da porta sorriu brevemente, e o mais novo bufou mas acabou por baixar a corda.
–Se acontecer alguma coisa será a tua cabeça na forca, Hra, e não a minha.
–Se achas que não consegues lidar com ele eu tomo a responsabilidade toda. Vamos?
Com isso foi guiado para fora dali, escadaria abaixo e para fora da torre-dormitório. Agora que tinha as mãos soltas e a capacidade de se apoiar à parede se precisasse já não tinha receio de cair. Os quartos ainda estavam fechados, àquela hora, com os soldados feridos a dormir e os que já estavam sarados a ainda não terem começado o dia de trabalho. Muitos ainda deviam estar vazios, depois da quantidade de morte que tinha tomado conta da cidade.
A rua, ainda mais iluminada pela lua alta que pelos raios de sol que já começavam a subir no horizonte, estava vazia de gente. Nedoy estava a ser transportado discretamente, por alguma razão que desconhecia. Já era manhã o suficiente para que quem os visse simplesmente achasse que tinham acordado cedo, mas a esta hora era pouco provável que houvesse sequer alguém para os ver. Ele engoliu em seco.
–Onde vamos? –atreveu-se a perguntar num sussurro enquanto avançavam pelas avenidas largas, com Martim à sua frente e Hra atrás de si, com arma carregada e pronta a disparar.
–Para o rio, –respondeu Hra, seco. –E daí vais para onde fores mais útil à Torre.
–Quem diria que um traidor como tu podia servir para alguma coisa que não churrasco!
O outro suspirou. –Tu não tens graça nenhuma, Martim.
Estavam perto da margem do grande rio que, sob a lua, refletia apenas o escuro do céu da madrugada. Naquela zona mais longínqua do porto, havia um único barco dançante nas águas mal-iluminadas, o mesmo que Mosé tinha usado para contrabandear os livros ilegais. Parecia vazio, sem nenhum movimento ou luz no convés, mas estava pronto a que se lhe entrassem.
–Não caias à água, –disse Martim, irritado.
Com isso Nedoy não ia discutir. –É só isto? –perguntou, subindo para o pequeno veículo aquático.
Nenhum dos dois respondeu, só lhe indicaram a entrada para o porão. Ele suspirou, olhando o céu mais uma vez, incerto de quando o iria voltar a ver. Depois acenou com a cabeça e desceu as escadas íngremes para a barriga da besta.
Mosé estava ali, quase deitado numa poltrona confortável, segurando um livro sobre o colo e bebendo chá de um copo tapado para se proteger dos balançares incertos do barco. O bule estava periclitantemente pousado numa mesa pequena, junto de uma lamparina acesa cuja luz era desnecessária, mesmo para lhe ajudar à leitura, porque a pequena sala já estava mais que bem iluminada por candeeiros e velas e outras lamparinas. Todas as pequenas janelas estavam tapadas com cortinas pesadas feitas de um grosso pano negro, provavelmente para evitar que fossem vistos de fora. Depois do escuro da rua, aquela luz quase lhe magoava os olhos.
Desta vez, a cicatriz horrífica estava coberta por uma máscara de ouro, feita de filigrana e decorada com jóias transparentes que brilhavam sob o dourado da luz artificial.
–Olhem quem chegou! –disse Mosé, usando um dedo para marcar o livro antes de o fechar. –Alguma vez andaste de barco, zero-quatro?
Ele acenou que sim com a cabeça. –Onde vamos? –perguntou, aproveitando o bem-estar de Mosé para, com sorte, não ser punido pela afronta.
–Para a Capital. –Mosé deu mais um gole do seu chá. –A viagem ainda vai demorar uma semanita, isso se os teus amigos não decidirem atacar todos os barcos que tentarem passar por eles.
Ele acenou com a cabeça em resposta. Realmente, bloquear a passagem de navios de suprimentos, como aquele, seria uma ótima decisão estratégica, mas ele duvidava que os Rebeldes tivessem o conhecimento e o pessoal necessário para isso. Mas o que seria feito dele e daquele barco, se fossem atacados? Mosé não avançaria sem ter uma estratégia pronta para se proteger e contra-atacar.
–Já que eu sou um ótimo anfitrião... –disse Mosé. Esperou que Nedoy reagisse, mas ele não lhe deu tal satisfação. –Vais ter comida em condições, desta vez, não só pão e água. Quero-te forte. Tenho planos para ti.
–Sim senhor, –disse Nedoy, tentando controlar o seu medo. Percebia a ameaça naquelas palavras, mesmo disfarçada pela eloquência do orador, e começou a pensar que teria perdido a sua hipótese de escapar. Não se atreveu a perguntar em que consistiam os planos e porque precisariam dele forte; achava que saber a resposta só o poria numa pior situação.
Mosé riu-se. –Ótimo! Tranquem-no lá em baixo e chamem a tripulação. Quanto mais cedo zarparmos, mais cedo chegamos!
–Sim, senhor, –disse Hra, sem emoção na voz, começando a guiar Nedoy para onde ficaria trancado durante o tempo da viagem.
Quer quisesse quer não, ele agora estava do lado da Torre.
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Yex olhava o horizonte. Já tinham começado o avanço para a Capital, com apenas metade de um plano e talvez demasiada esperança. Ainda não tinham tido o azar de se cruzarem com os Cavaleiros que normalmente patrulhavam o deserto; Nyin estava ainda mais vazio que o costume agora que a Torre tinha falta de pessoal e que os Rebeldes controlavam as rotas comerciais de quase toda a zona a norte do rio. Ela não sabia o que pensar disso.
Aquele grupo de soldados, avançando aos poucos com os mantimentos sobre os ombros ou sobre o lombo dos poucos cavalos que tinham, que dormia nas tendas negras que montavam a cada noite e desmontavam a cada madrugada, era o mais próximo das velhas tribos que o presente deixava existir. Tinha passado tanto tempo. Eles cantavam outras canções e contavam outras histórias, andavam por rotas diferentes e falavam com uma mistura de sotaques que mais parecia outra língua. Estava tudo diferente. Mas eles não deixavam de ser a esperança do futuro de Nyin.
Yex respirou fundo, sentindo o calor seco do ar, o cheiro do pó que os seus pés levantavam e a presença de toda a multidão atrás de si. Sorriu.
–Está alguém a se aproximar! –avisou um dos homens responsável por manter a guarda, chegando o cavalo que montava para a frente do grupo. –Uma pessoa sozinha, montada a cavalo.
Yex pegou no arco. –Amigo ou inimigo?
À sua volta, as pessoas começavam a carregar pistolas e a sacar de espadas. Era pouco provável que um homem sozinho conseguisse fazer qualquer dano a um exército, por mais pequeno que fosse, mas ninguém queria correr esse risco.
–Não se identificou, e não sabemos de ninguém que falte. Mas temos estado à procura de recrutas, e é possível que...
Ela acenou com a cabeça, calando-o. Fechou os olhos, esticando os sentidos para procurar a energia do talvez-intruso. Infelizmente, ainda estava longe demais para ela lhe sentir os detalhes. Pelo menos deu para garantir que, quem quer que fosse, estava sozinho.
Nocou uma flecha, saindo a pé para mais perto de onde o tinha sentido. Lyin estava carregado de mantimentos e não a iria ajudar.
–Não há mais ninguém por perto, –informou, andando veloz ainda de olhos fechados. Isso fez alguns dos que a rodeavam relaxar. –Os da Torre nunca andam sozinhos se não for uma emergência, nem mesmo os escutas. Por isso não disparem, mas também não baixem a guarda.
Enquanto o grupo se organizava para uma pouco-provável emboscada, ela avançava para tentar discernir melhor os detalhes da figura finalmente na sua linha visual. Era-lhe mais fácil sentir a luz de vida dele do que seguir o movimento do cavalo bege que trotava e do cavaleiro vestido a negro que lhe saltava sobre a sela, quando a luz ainda estava forte o suficiente para que o clarão da areia quase a cegasse.
Ainda estava maioritariamente tapada pela duna à sua frente, idem aspas para os guardas que ainda esperavam por ordens ou que o intruso se aproximasse. A não ser que aquela pessoa os tivesse visto antes ou que soubesse onde os procurar, seria improvável serem avistados. Ela manteve os olhos abertos, mas focou-se mais na forma brilhante que via com a mente.
Yex não pôde evitar sorrir quando ele ergueu uma mão no ar, enchendo-a com uma esfera de fogo azul e dobrando-a num velho símbolo que ela já não encontrava há décadas. Seria que...
–O que é aquilo? –perguntou um dos guardas, curioso, deixando que o medo se derretesse ao ver magia.
Ela sorriu ainda mais, reconhecendo o sinal. –Já sabe que estamos aqui, não vale a pena esconderem-se, –disse, subindo um pouco mais a duna para se mostrar. –E acho que já temos a resposta que queríamos. É um aliado!
Aqui mais de perto, ela já lhe conseguia ver os detalhes da energia, e tinha cada vez mais a certeza disso. Já não o via há tento tempo, e não estava à espera de alguma vez o voltar a fazer, mas não podia negar que a surpresa de o encontrar ali fosse agradável. Avançou de encontro a ele e, agora tão perto, ele desmontou do cavalo para fazer o mesmo. Assim que ela o alcançou, abraçou-o com força, um imenso alívio enchendo-lhe a alma.
O homem riu-se com o ar que lhe restava nos pulmões, abraçando-a de volta.
–Pensava que estavas morto! Pensava que era a última!
Ele abanou a cabeça, afastando-se um pouco. –Não te deixo assim sozinha, Yex! Não te vais conseguir livrar de mim.
–Ai não? –perguntou, incrédula, libertando-o do abraço. –Então onde raio é que estiveste este tempo todo? Para onde é que desapareceste, Ekkun'am?
Ekku olhou-a, afastando-se um pouco mais para que ela lhe visse melhor a face. Os guardas aproximavam-se aos poucos, tendo já enviado um para avisar o grupo de que o perigo tinha passado e estando agora apenas curiosos de quem era aquele estranho que Yex parecia conhecer.
–Tu também sempre achaste que o mundo pertence aos vivos, por isso é que deixaste de aceitar brincos e de entrançar o cabelo... quanto mais tempo passa mais eu concordo contigo. –Ele parou por um momento, hesitando com toda a ternura que tinha e incerto de como continuar, de como se podia justificar. Olhou o chão e suspirou. –E nem toda a gente tem a tua força, Milagre. Eu estive nas montanhas, escondido, longe o suficiente para não chamar a atenção. Achei que devia voltar quando pudesse fazer a diferença, sabes, em vez de morrer numa masmorra qualquer depois de dar aos Irmãos o que sempre quiseram. Vim assim que ouvi que precisavam de ajuda.
Os guardas agora estavam a conversar entre si, receosos de interromper aquele encontro, enchendo o silêncio que Yex criou por não saber como responder.
Podia chamá-lo de covarde, por ter fugido de Nyin quando era tão necessário, mas infelizmente percebia o seu ponto de vista demasiado bem. Ela própria tinha sido capturada mais do que uma vez, torturada outras tantas, e sabia bem o risco que corria de cada vez que aquilo acontecia. Tinha sempre escapado, claro, mas muitas vezes por um triz, e sabia que alguns dos outros Originais não tinham tido tanta sorte. Estava irada com o amigo por ter chegado tão tarde porque sabia perfeitamente o quão diferente a batalha em Porto Seguro teria sido com a sua ajuda, mas não sabia se ele sequer tinha conhecimento do que lá se tinha passado. Os boatos e a informação corria rápida sobre o deserto, mas a distância não ajudava em nada.
Estava aliviada. Tão, tão contente com o facto de saber que, além dela, havia pelo menos mais um sobrevivente do que agora era passado tão longínquo, alguém a quem o tempo não prometia morte. E, se Ekkun'am estava vivo, isso talvez significasse que a Torre tinha falhado em destruir os Originais, que talvez alguns dos seus outros amigos também ainda estivessem escondidos num lugar longínquo qualquer à espera de se juntar àquela revolução.
Por isso só sorriu. Abraçou-o de novo, decidida a perdoá-lo pelo tempo perdido.
–Bem vindo de volta ao mundo dos vivos, Ekku.
Ele riu-se, rodeando-a com os braços para a trazer para mais junto de si. Devia ter tantas saudades dela quanto ela tinha dele. Tinha-se passado tanto tempo, tantas décadas, e havia tanta coisa que se tinha mudado no entretanto...
Foi Yex que acabou por quebrar o abraço, sabe-se lá quanto tempo depois. –Anda, tens que conhecer a gentalha a que chamamos de exército. E temos muito sobre o que falar.
.....
Ui!
Ok, Nedoy está *%&$#o, claro. Acham que se vai safar disto? O que é que Mosé tem planeado para ele?
E quem é este Ekku, e o que é que o seu retorno pode simbolizar?
Digam-me o que estão a achar! Estamos mesmo no princípio do fim, os dominós estão todos colocados para começar a cair em linha... Mais uns 5 capítulos ou assim e já podem dizer que acabaram de ler mais um livro!
Beijinhos!
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