Capítulo X
Yex estava exausta. Lutar contra uma tempestade de areia para montar abrigo e depois ainda ter que passar horas a avançar contra a chuva era uma ótima forma de se cansar. Os feitiços que insistira em fazer para ajudar no avanço de Lyin, gastando a sua energia para acalmar as águas onde ele andava, tinham gasto as suas reservas.
Nada que um bom jantar e uma noite de sono não corrigissem.
Saiu da sombra do edifício, sentindo o calor húmido na pele pálida. Ainda tinha umas parcas horas de sol, e ia aproveitar cada minuto de luz para absorver toda a energia que pudesse. Cheirou fumo, e aproximou-se do falso Cavaleiro que tentava cozinhar alguma coisa. Estranho; era sempre ela que tratava das refeições porque ele se recusava a usar magia e ela achava que trazer lenha era um enorme desperdício. Mas ele tinha arranjado alguma, algures e, por qualquer razão, estava a usá-la agora.
–Que fazes?
Ele saltou, surpreendido por a ver ali. –Que te parece? –Baixou os olhos de volta para a pequena chama que começava a subir no centro de uma pilha de alguma coisa.
Yex riu-se. Ele ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada quando ela se sentou à sua frente, olhando o pequeno fogo. O calor daquilo começava a perceber-se, competindo com o sol que lhe tocava as costas para saber qual seria mais forte.
–Porque é que fazes assim? –perguntou. Mostrar-lhe-ia uma chama maior que aquela feita por magia num só segundo, mas hoje estava demasiado exausta para isso.
Ele cerrou os dentes, talvez até antes de reparar que reagiu. Depois relaxou e abanou a cabeça. –Foi assim que me ensinaram.
Claro. A Torre nunca deixaria que um dos seus usasse magia assim, no dia a dia, em coisas tão básicas quanto cozinhar, porque quebrava demasiado a propaganda do quão rara e perigosa ela era que os Irmãos ensinavam a todos sob o seu controlo.
–Podes sempre aprender a fazer de outra forma, sabes?
Ele controlou a sua expressão, mas a forma como as mãos pararam de mexer deixaram claro os seus sentimentos na matéria. Yex fechou os olhos, ouvindo o crepitar do fogo e o bater do seu coração.
–Não o farei, –disse ele.
Olhou-o com cuidado, inclinando a cabeça para o examinar. Aquela resposta foi demasiado seca, curta. Demasiado artificial.
Sabia que corria o risco de pôr o dedo na ferida, mas tinha de perguntar. –Porque não, Nedoy?
Ou ele a não tinha ouvido, ou estava a escolher ignorá-la. Provavelmente só não queria pensar na resposta, no que isso significava para ele. Ela até tinha pena que o pobre tivesse passado a vida toda a aprender que magia era um pecado que lhe tingiria a alma imortal. Ainda bem que ela tinha todo o tempo do mundo, porque, a ser assim, ele ia demorar ainda mais que isso a convencê-lo a aprender.
A chama já subia forte, dançando ao sabor do seu próprio vento. O sol tocou o horizonte, desistindo de aquecer as costas de Yex com a sua luz, e ela levantou-se para ir buscar a sua taça. Não sabia o que ele estava a cozinhar, mas estava ansiosa por descobrir.
Por mais grata que estivesse, não se atreveria a agradecer ao falso Cavaleiro. Estava incapaz de cozinhar, hoje, e, embora não se chateasse de comer conservas para jantar, preferia mil vezes comer uma refeição quente. Quando se voltou a sentar à beira do fogo, já ele fritava uma fatia de bacon num prato de metal, enchendo o ar com um cheirinho fantástico que a fez salivar de antecipação. Estendeu a tela molhada da tenda para secar, e depois ficou a admirar a estabilidade da chama baixa.
Ela ainda estava encharcada e, agora que o sol se tinha posto, sabia que o frio da noite seria imperdoável se não se conseguisse secar. Podia mudar as roupas, mas o longo cabelo ainda pingava, e não era como se o pudesse tirar da cabeça. Pelo menos deixava-o solto, em vez de atado nas tranças tradicionais do seu povo. Esta era uma das poucas situações em que se agradecia por isso.
Abraçou os joelhos e chegou-se ao fogo, tentando manter o calor. Nedoy estava a fazer o seu melhor por a ignorar, evitando cruzar os seus olhares. Mal tirava a vista da carne que cozinhava e, quando o fazia, tinha o cuidado de se virar para longe dela. Se não fosse pela situação, quase o acharia engraçado. Se ela tivesse sorte, ele estaria a pensar nas perguntas que ela lhe colocou, e não nas histórias que a Torre lhe contou.
Ele serviu a comida em silêncio, e em silêncio ficaram enquanto provavam a refeição. Estava boa; talvez cozinhar a fogo aberto tivesse mesmo os seus méritos. A única falha da refeição era a falta de picante.
–Sempre me disseram que a magia era perigosa, –disse ele, assustando-se com o quão alta a sua voz soava contra o silêncio do deserto. –Só serve para batalha e para destruição.
Ela sorriu o seu meio sorriso. Progresso!
–É por isso que achas que me chamar de bruxa é um insulto?
Nedoy mexeu com a lâmina da espada nas brasas da chama que começava a esmorecer. Encolheu os ombros.
–Acho que é um insulto porque é mesmo, bruxa. – Depois hesitou e, por um meio segundo, sorriu. –Só... não me parece certo usar um poder desses para cozinhar.
–Já viste que não precisa de ser perigosa, –começou. –É uma ferramenta. –Fechou os olhos, sentindo o calor das labaredas moribundas a brilhar-lhe na cara. –É tal como o fogo. Não é por ser capaz de fazer incêndios que não deve ser usado para fogueiras.
Ele pousou a espada a seu lado, deixando as chamas morrer. Os animais da noite começavam a acordar, enchendo o ar com uma cacofonia baixa de gritinhos de ataque e de passos sobre o chão húmido. Morcegos subiam aos céus, gritando, e grandes lagartos corriam pelo chão à procura de caça.
–Só não me parece certo tomá-la em tão pouca conta, sabes?
Yex acenou com a cabeça. –É preciso respeitar algo tão forte, claro, mas... –hesitou. Não sabia como ele ia reagir. –Talvez ainda sejas capaz de aprender a fazê-lo.
Os olhos dele brilharam por um momento apenas, antes de ele baixar a cabeça e perder toda aquela esperança e curiosidade. Era como se alguém lhe tivesse espetado uma adaga na barriga, tal era a forma como se dobrava sobre si. Ela continuou a comer, incapaz de quebrar o silêncio. Lembrava-se do orgulho que tinha, em pequena, de ter nascido parte de uma família de bruxos, de ter herdado aquela capacidade inata de ver a energia do mundo. Sentia pena da vergonha que Nedoy tinha de exatamente a mesma coisa.
–Porque dizes que sou um bruxo, Yex, se não para me insultares?
Ela encolheu os ombros. –A meu ver, a verdade nunca é insultuosa.
O falso Cavaleiro ficou tenso, mas não demorou a relaxar e a negar tal acusação com a cabeça. –Não pode ser verdade. Eu não sei magia.
–Ainda não, pelo menos, –sorriu ela. –Mas mesmo assim, ser bruxo é coisa inata. Nasce-se com isso. –Tirou mais uma mordida do que restava da refeição. –E tu, Cavaleiro, nasceste assim.
Ele reagiu àquela frase, mas era impossível saber o que estava a pensar sobre isso. Quando acabou de comer, virou-se para as estrelas, talvez somente para não ter de olhar para ela.
–Sabes porque é que a Torre impede que se ensine magia a crianças?
Nedoy riu-se. –É óbvio, não é? É demasiado perigoso; crianças são incapazes de a controlar, e podem magoar-se a si e aos outros.
Ela riu-se. –Faz sentido, não é?; se acreditares que a Torre diz a verdade sobre a magia ser perigosa.
Ele vacilou. –É pela mesma razão que não deixamos crianças brincar com fogo.
Yex sorriu, acabando a sua refeição. –Claro. Mas não, Nedoy, essa não é a razão. Os Irmãos não deixam que se ensine magia às crianças simplesmente porque elas são capazes de aprender. –Sorriu marotamente, pousando a taça vazia no chão, a seu lado. –Todas as crianças são capazes de aprender magia. Os adultos, nem tanto.
Ele parecia curioso, por mais que o tentasse esconder atrás da fachada de ira.
–Quando crescem, a maioria das pessoas perde essa habilidade. Mas, se continuarem a praticar, desde pequenos até à idade adulta, isso não acontece. –Sorriu. –Ensinados, crescem para ser feiticeiros. Muitos deles tornam-se poderosos.
–Se magia é perigosa, claro que se quer impedir isso.
–Mas não é, lembras-te?
Ele corou. A fogueira estava já apagada, feita de brasas que mal aqueciam o ar.
–Mas, –começou ele. –Eu não aprendi em criança. E quando fizeram o diagnóstico, no treino dos Cavaleiros... –Ficou tenso, arrependido de ter usado aquela palavra.
Não continuou.
–És um bruxo, Nedoy. Herdaste isso de alguém. –De quem; perguntava-se? –Isso não se ensina e não se aprende. É... instintivo, pode-se dizer. É uma ligação com a energia do mundo que passa de geração em geração. Mesmo que ninguém te tenha ensinado.
Ela fechou os olhos e esticou o seu instinto. Respirou fundo, sentindo o queimar do ar frio nos seus pulmões, ouvindo os barulhos dos animais, cada molécula de vida no mundo que a rodeava que brilhava através das pálpebras, ou até mesmo a toda a sua volta: atrás de si e sob a terra em sítios que os seus olhos seriam incapazes de ver.
–É difícil de explicar. Também é difícil de perceber, se não souberes do que estás à procura. –Sorriu. –Também significa que não precisas de ser criança para aprender. Essa ligação não se perde, nem mesmo na velhice. –Sentiu o sorriso cair-lhe da face, e hesitou. –Se quiseres... ainda podes aprender,
Os olhos dele caíram para as brasas adormecidas. Era difícil ler-lhe a expressão no escuro da noite mas, se ela tivesse que adivinhar, descrevê-lo-ia como "ansioso", em todos os sentidos da palavra.
–Não há como voltar atrás, –acabou ele por dizer.
Ela levantou-se, sacudindo o pó das roupas ainda húmidas, e estendeu-lhe a mão para o ajudar a fazer o mesmo. Nedoy aceitou-a.
–Vais precisar de energia amanhã, - disse.
Mesmo na escuridão da noite, pareceu-lhe que o viu sorrir.
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Oi gentinha! O que estão a achar? Qual é a vossa opinião de Nedoy, está a mudar para melhor ou para pior?
Obrigada a todos os que chegaram até aqui. A sério. Sei lá onde estaria sem vós!
Beijinhos!^3
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