Capítulo VI
De manhã, ainda antes do nascer do sol, Yex estava a arrumar o pouco que trazia consigo. Desceu as escadas de mansinho, não querendo acordar os outros hóspedes, e saiu para a rua ainda deserta pela porta das traseiras. O frio da madrugada fazia até os seus passos na calçada soar ainda mais alto, mas pelo menos a pouca luz do fim da noite não lhe magoava. Entrou no estábulo sem problemas, preparou Lyin e, quando os primeiros raios roxos de sol escaparam sobre o horizonte, já estava montada sobre a sela.
Saiu da cidade sem demorar, passando pelo par de guardas de serviço sem problemas. Poucos ali se importavam com seguir as regras da Torre. Tão longe da Capital, a sua influência era fraca. Era como eles faziam as coisas: capturavam uma cidade, passavam alguns anos a destruir tudo o que passasse por cultura local, substituindo os habitantes por imigrantes e famílias de soldados, governando por medo. Depois decidiam se a posição era estrategicamente importante para manterem um regimento permanente. Aquela cidadezinha no meio do nada, pela qual nem rotas de comércio passavam, evidentemente, não era. Se não fosse, iam embora, deixando para trás um grande grupo de guardas treinados sem qualquer filiação ao lugar. De vez em quando mandavam Cavaleiros, dependendo do quão perto cada sítio ficava das principais rotas, e tinham sempre espiões por perto para descobrir rebeliões antes que essas se tornassem demasiado grandes para conter.
O único problema nesse plano quase perfeito, criado por Aron, o mais velho dos dois irmãos que lideravam a Torre, era que as pessoas eram humanas. Os guardas criavam vidas nos sítios onde eram colocados, casavam-se, tinham filhos, passavam vista grossa ao que os amigos faziam, aprendiam os costumes locais e acabavam por se integrar. Os espiões raramente passavam tempo suficiente num sítio para que isso acontecesse, fazendo-se passar por comerciantes ou exploradores de passagem, mas podiam sempre ser subornados para esquecer as piores coisas que tivessem visto. Ou lidava-se com eles de outras formas, e como as distâncias entre as cidades do interior eram tão grandes, os seus desaparecimentos demorariam a ser notados.
Yex estava enrolada na sua velha capa, desbravando o frio da noite que o fraco sol da madrugada não conseguia aquecer. Animais noturnos ainda enchiam o ar com os seus sons, voltando aos poucos para as tocas e ninhos antes que o calor se tornasse insuportável. Como ela, preferiam a frescura da madrugada ao calor queimante do dia.
Os cascos de Lyin, o cavalo negro, batiam num ritmo constante sobre o chão de gravilha. Ela adorava ouvir aquele clique-claque do progresso, a indicação do seu avanço constante. O poço mais próximo estava a talvez meio dia de viagem a cavalo, e Yex queria lá chegar o mais cedo possível. As últimas estrelas desapareciam no céu, tapadas pela luz cada vez mais insistente do sol nascente, e ela tirou a capa, confiando nas largas vestes tradicionais para a proteger do calor que se começava a fazer sentir.
Quando finalmente viu o poço na distância, já se tinham passado horas e o pico do calor aproximava-se. Os pequenos edifícios, quase cúpulas de arenito áspero, escondiam-se bem na paisagem de cores de terra, mas ela conhecia o deserto como a palma da própria mão e encontrá-los era-lhe simples. Aproximou-se com cuidado, em silêncio, preparada para uma qualquer reação violenta do Cavaleiro exilado. Desmontou para espreitar para o maior dos edifícios, o que servia de estábulo, e a égua branca ainda estava lá. O animal não parecia estar assustado com a sua presença, ou mesmo com a chegada do cavalo negro que ela guiava pelas rédeas, o que ela tomou como um bom sinal. Os animais eram ótimos juízes de carácter, e aquela égua estava completamente certa sobre si, claro.
Libertou Lyin do peso que carregava, encheu os cantis com água fresca e deu de beber aos cavalos. Depois sentou-se no chão, encostada à parede de pedra, petiscando alguma coisa que lhe servisse de almoço. Quando acabou, moveu-se devagar, pegando no pacote embrulhado a papel pardo que tinha comprado na cidade antes de sair para o calor da tarde.
O chão ali era pavimentado, com largos blocos de arenito tosco que serviam para impedir os animais de cavarem para tão perto das habitações, e ela não teve receio de se sentar de pernas cruzadas, meditando. Não dormiria com o Cavaleiro tão perto, pelo menos não ainda, mas isso não significava que não podia descansar. Acalmou a respiração e focou-se na energia do mundo que a rodeava. A luz do sol queria-lhe queimar a pele albina, mas ela tinha lidado com aquilo a vida toda de forma a que a absorver era uma tarefa trivial. Aquilo dava-lhe forças. Não lhe descansava os músculos nem a mente, mas dava-lhe energia e, por ora, isso tinha de chegar.
O tempo passava mais depressa quando ficava assim, focada, e não demorou muito até sentir o falso Cavaleiro a acordar. Mesmo através da parede, conseguia sentir a energia dele, brilhando tosca, mas forte. O que era uma combinação pouco usual para um adulto.
Abriu os olhos, quebrando o foco, e levantou-se. Não demoraria até que ele saísse do pequeno edifício de pedra, e Yex queria estar preparada se ele fizesse algo estúpido. Depois de esticar as pernas e alongar os braços, encostou-se ao poço e esperou.
Quando Nedoy a viu, congelou, todos os músculos tensos como uma mola que se preparava para saltar.
–Boa tarde, –disse Yex.
–O que estás a fazer aqui, bruxa? –O ódio dele pingava de cada sílaba, desimpedido. Ele não parecia convencido de que ela era real, avançando para a olhar de vários ângulos para garantir que não era só mais uma miragem. Ela riu-se e pegou no pacote pardo que, co cuidado, atirou para o chão aos pés dele.
Da forma como Nedoy saltou até parecia que aquilo era pólvora preparada para explodir. Pôs a mão o cinto, mas o coldre já lá não estava.
–O que é isto?
Yex encolheu os ombros. –Comida. Da forma como fugiste da cidade, pensei que precisasses. Especialmente agora que não vais conseguir entrar em mais nenhuma.
Ele só não ficou mais tenso porque não podia.
Por um longo momento, nenhum deles se mexeu. Nedoy olhava-a diretamente, ignorando o embrulho que ainda estava pousado no chão, e ela sorria, despreocupada com o escorno que ele lhe lançava.
–Não há razão para seres tão agressivo assim, Nedoy. –Foi ela a primeira a quebrar o silêncio, mas isso não fez o Cavaleiro relaxar. –Não sei como é convosco mas, na minha cultura, trazer comida é uma oferta de paz.
–O que queres de mim? –Cada sílaba lutava para ser mais agressiva que a anterior.
Ela apenas encolheu os ombros, de braços cruzados sobre o peito. Continuava encostada ao poço, nem sequer completamente virada para ele, tomando conta para continuar focada na energia dele para o conseguir seguir sem nem sequer usar os olhos.
Conseguia ver perfeitamente que a sua despreocupação punha o falso cavaleiro inquieto.
–Estive a informar-me. Contaram-me o que te aconteceu para acabares assim, exilado. –Deixou o sorriso desaparecer da cara e, com cuidado, descruzou os braços para se mostrar desarmada. Isso pareceu acalmá-lo um pouco. Pouco sendo a palavra chave. –E podemos dizer que temos interesses em comum.
Nedoy riu-se dela. –Nunca na vida terei algo em comum contigo, bruxa.
Ela ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada. Ele não fazia mesmo ideia do que o esperava, pois não? Pelo menos aquela reação ajudou-o a relaxar um pouco.
–Bem. –Ela virou-se para ele, gentilmente, tentando ser o menos agressiva possível. O falso cavaleiro parecia um animal selvagem pronto a atacar, e ela queria evitar isso a todo o custo. –Podes odiar-me, Cavaleiro. Mas se não me engano, não tens comida nem forma de a conseguir. Sabes pelo menos caçar?
Ele não se moveu nem respondeu. Yex suspirou.
–Não confias em mim, mas isso não será um problema. Também não confio em ti! És um assassino, não és, Nedoy? És um traidor que esfaqueia aliados pelas costas, portanto sei lá o que me farias a mim se eu baixasse a guarda.
Ficou surpreendida pela forma como ele tremeu. Remorso pelo que fez, talvez?
–Pelo menos se me mantiveres debaixo de olho, podes evitar... –O que é que a Torre Branca contava os seus, hoje em dia? –... que eu destrua cidades inteiras e que roube doces a crianças. E aproveitas e ficas vivo no entretanto.
– É entre ti e a Morte, uh? –comentou ele, relaxando um pouco. Tentava escondê-lo na sua expressão, mas parecia... perdido. Não havia melhor forma de o descrever.
–Que dizes?
Ele olhou para as mãos vazias dela, ponderando. Mas acabou por acenar com a cabeça.
–Tréguas?
–Por ora, –disse ele, nem sequer se aproximando para a cumprimentar.
Aquilo servia.
Ele passou por ela numa curva larga para a manter sempre sob olho, entrando no estábulo para ir buscar a égua branca. Yex baixou-se para pegar no embrulho de papel que ele ignorava.
–Não te esqueças disto, Cavaleiro. –Atirou-lho, e desta vez ele apanhou-o do ar sem problemas, sem fugir como se de uma bomba se tratasse.
A indecisão era palpável na energia dele, mas ele acabou por aceitar o pequeno presente.
Não demorou muito até estarem a avançar pelo deserto, juntos, cavalgando em silêncio.
Talvez este jovem assassino fosse aquilo de que precisavam. E talvez, só talvez... destino da Bruxa Branca estivesse a mudar pela primeira vez em muito tempo.
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