Capítulo IX
Nedoy acordou com o som de água. Começava a chover, e ele não demorou muito a sentir as pesadas gotas a caírem sobre ele, molhando-lhe o cabelo e a roupa. Aventurou-se a abrir os olhos, confiante de que o pó já tinha tido tempo de assentar. Yex ainda dormia, ignorante ou invulnerável às intempéries que a rodeavam, coberta por panos e cobertores de forma tão completa que quase era ela mesma parte do monte de roupa. Ele levantou-se e procurou o sol por entre as nuvens, mas a negrura destas era demasiado densa para o deixar ver. Chovia cada vez mais, a ira da água a lavar a superfície do deserto, correndo em lençóis sujos encosta abaixo, arrancando a gravilha do chão com a sua força. A bruxa tinha razão: aquele vale em que ele se queria abrigar tinha-se transformado num rio violento, tingido do vermelho da terra como se estivesse cheio de sangue. Teria sido perigoso abrigarem-se ali em baixo.
Ele não estava preparado para uma coisa daquelas, uma tempestade tão forte. Não estava preparado para lidar com a violência do deserto porque não tinha treino, porque fugiu por necessidade e por nada mais. Sabia lutar, mas não tinha as capacidades nem os materiais necessários para lidar com a força da natureza; só tinha consigo o que trazia no corpo quando fugiu. Nem tinha nada que o protegesse da água que continuava a cair a potes do céu, e já estava encharcado até ao osso! Agora arrependia-se de ter arrancado as insígnias cosidas ao equipamento que a Torre lhe deu, deixando buracos no deu lugar. A falta de tecido deixada toda a água passar desimpedida.
A única coisa que ainda tinha da Torre era a tatuagem no interior do seu pulso direito. Aquilo era permanente e, por mais que quisesse, não havia forma de a arrancar de si. Um desenho simples, de linhas retas a imitar a torre que dava nome à instituição, e o número que tantas vezes substituiu o seu nome. Aquela marca, pintada a tinta preta sob a sua pele, mais clara no interior do braço, faria parte do seu corpo para sempre.
Yex estava a acordar, desconfortável com a água que já a cobria, caindo com mais força a cada momento. Nedoy procurou entre as suas coisas pela sua capa rasgada, para pelo menos se conseguir aquecer.
Riu-se da forma como Yex rogou pragas noutra língua qualquer.
–Bom dia, – disse ele. –Ou tarde. Realmente, não faço a mais pequena ideia.
Yex resmugava, e não parou de o fazer enquanto se desprendia dos panos encharcadou nem quando se levantou para preparar o cavalo, e nem lhe respondeu. Nedoy cobriu-se o melhor que podia com o que restava da capa furada, puxando-a para tapar o cabelo que já lhe pingava sobre os ombros.
–Vamos tentar chegar ao próximo poço, –disse ela, lutando para se fazer ouvir sobre o som da tempestade. Começou a soltar os toldos que, horas antes, os tinham protegido do pó e do vento. Examinava-os, à procura de danos. –Vai demorar, com este tempo. Aproveita a chuva e enche os cantis.
À velocidade com que a água caía, não demorou até que todos estivessem quase a transbordar. Nedoy nunca pensou que água a mais fosse um problema no deserto! Quando acabou de os arrumar, a bruxa pôs-lhe o toldo da tenda nos braços.
Olhou para ela, confuso. –Eu não sei dobrar isto.
Ela riu-se.
–Nem precisas. Cobre-te com ele, estás encharcado.
Yex não estava muito melhor que ele, com o cabelo longo a pingar e as vestimentas pretas a colarem-se-lhe à pele, mas ele não lho referiu. Ela remexeu nas suas sacas e sacou uma capa negra que a cobria da cabeça à cintura, pondo-a logo de seguida e, vendo que ela já estava protegida, aceitou cobrir-se com o pesado toldo de pêlo de cabra. Montou sobre a sua égua branca e ajeitou a tela sobre a cabeça. Era grande o suficiente para ele a poder dobrar e ainda estar completamente coberto. As fibras negras, antes esburacadas e soltas, tinham inchado com a água que agora saltava delas como da gordura que se usava para proteger os sapatos. Yex montou o seu cavalo negro e começou a avançar.
Andar à chuva trazia uma sensação estranha. Mesmo assim coberto, o vento atirava lençóis de água à sua cara e para todas as direções. Sentia o esforço de Preciosa a cada passo que ela dava, lutando contra a água que lhe batia no focinho e que corria sob os seus cascos. A bruxa avançava à frente dele, seguindo caminhos que ele ou não via ou não sabia ver. Ele pôs-se atrás dela, e a diferença foi imediata: ali, na água menos funda e turbulenta, as patas de Preciosa afundavam menos no rio que cobria o chão.
Avançaram por horas. Ou assim lhe pareceu; era difícil ter a certeza sem saber onde o sol estava. Não devia faltar muito até ao poço, e era isso que lhe dava alento para continuar. À medida que a tempestade acalmava, tornava-se aos poucos mais fácil de ver mas, mesmo assim, as construções de arenito escondiam-se bem na paisagem da mesma cor. A água que antes corria em lençóis e inundava tudo em vista começava a abrandar e a ficar presa em poças e pequenos lagos que cobriam a paisagem com reflexos de luz. Tão abruptamente quanto começou, a tempestade parou, e o céu voltou a estar azul como se nada se tivesse passado.
Ele desmontou, poupando à égua o trabalho de levar também o seu peso. Yex avançava à sua frente, guiando o cavalo por entre as poças e charcos que o chão não conseguia absorver. A capa brilhava, a água que ainda pingava a refletir a luz em cada movimento da bruxa. Nas costas, ela trazia um símbolo bordado. Nedoy sabia reconhecê-lo, mas não fazia ideia de onde.
Faltava pouco para finalmente alcançarem o poço. Ela saltou para o chão e agarrou as rédeas do cavalo para o guiar gentilmente, e Nedoy avançou até estar ao lado dela. Sabia que ela preferiria assim.
Só havia uma construção, ali; um longo edifício de pedra que se curvava como uma ferradura à volta do poço. O ar estava finalmente a começar a aquecer, puxando a humidade do solo e tornando o calor desconfortável. Entraram no edifício que tinha o interior miraculosamente seco e ele começou logo a soltar a carga da sua égua. O alívio do animal foi imediatamente aparente; Nedoy mal conseguia imaginar o quão exausta Preciosa devia estar, depois de tanto tempo a lutar contra o pó e a chuva e o correr da água. Tirou-lhe a sela de cima e afagou-lhe o pescoço molhado, sussurrando-lhe agradecimentos. Já lhe era tão difícil sobreviver no deserto e, sem aquele animal, provavelmente ser-lhe-ia impossível.
Nedoy não o queria admitir, mas até ele, na sua teimosia, era incapaz de negar que aquela bruxa lhe tinha salvo a vida. O dar-lhe um pacote de comida embrulhada em papel pardo era algo que ele podia chamar de inconsequente, convencido de que, tendo necessidade disso, ele seria capaz de caçar para sobreviver. Mas hoje, no meio de uma tempestade daquelas— ou de várias seguidas, até, quando pensava nisso— ele sabia que seria incapaz de escapar com vida se não fossem os conhecimentos dela. Claro que ele odiava estar ciente disso.
Arrumou as suas coisas o melhor que pôde, encostadas a um canto. Yex já tinha arrumado as suas e agora escovava o pelo do cavalo negro. Parecia exausta, tão exausta quanto a sua montada, se isso fosse possível.
Pegou em mantimentos para fazer o jantar. Talvez fosse melhor ser ele a cozinhar, hoje.
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