Capítulo II
Já o sol brilhava alto quando ele finalmente saiu do abrigo. As costas doíam-lhe de ter adormecido numa posição estranha mas, pelo menos, já não estava tão cansado quanto ontem. Ele não conhecia aquela parte do deserto e tinha-se perdido por tempo suficiente para só encontrar aquele abrigo durante as horas mais negras da noite.
Como odiava o deserto! Odiava os animais, e a falta de água e, clara, a completa falta de qualquer ponto de referência que lhe dissesse onde estava. Tinha que confiar nos mapas que tinha roubado e, como tinha sido sempre o seu parceiro a lidar com a navegação, que nunca foi algo que lhe agradasse fazer, Nedoy tinha a sensação que ainda se viria a perder bastantes mais vezes.
Espreguiçou-se, aproveitando o calor do sol da manhã. Petiscou uma só fatia de carne seca; não podia gastar mais que aquilo, já mal tinha comida suficiente para chegar até à próxima cidade. Agora que não tinha o luxo das rações da Torre, alimentar-se estava cada vez mais difícil, e ele só esperava que notícias do seu exílio ainda não se tivessem espalhado por todo o lado, ou ser-lhe-ia impossível sobreviver muito mais. Bebeu um pouco de água para acabar de encher o estômago e entrou no pequeno estábulo para ir buscar Preciosa, a sua égua.
Parou. Aquilo não tinha sido um truque da luz, na noite anterior. O cavalo daquela mulher era mesmo negro. Não era todos os dias que se via um cavalo daqueles no deserto, porque o pêlo escuro em nada os ajudava naquele calor.
A Yex do cavalo negro...
Mas não podia ser a mesma Yex ou o mesmo cavalo negro. Não depois de tanto tempo. Mesmo que os rumores da imortalidade dela fossem verdade, com certeza que o cavalo não teria a mesma sorte. E, aliás, se o cavalo ainda ali estava significava que a senhorita estaria por perto. Se ela fosse realmente aquela Yex, teria fugido durante a noite, enquanto ele estava a dormir, para evitar a captura. Ela não estava dentro dos abrigos de pedra, mas não podia estar muito longe.
Nedoy encheu o bebedouro dos animais e depois saiu para a procurar. Na imensidão lisa do deserto, não demorou a encontrá-la, afastada dos pequenos abrigos, com o arco apontado para o céu. As Nixos dispersaram num instante com o grito estridente que uma largou, batendo as asas em desespero enquanto caía. Aquelas grandes aves azuis eram quase invisíveis quando voavam, desfazendo-se contra a cor do céu e eram, por isso, famosamente difíceis de caçar. Mas ali estava um corpo de penas azuladas a cair ao chão, quebrado. Ele avançou um pouco mais rápido para tentar alcançar a bruxa.
A mulher sacou de uma lâmina e cortou o pescoço da ave, parando assim os seus pedidos de socorro.
Nem o calor do dia conseguiu impedir o arrepio que ele sentiu.
Era ela.
Era mesmo ela. Sob aquela luz, o cabelo loiro quase branco brilhava intensamente na cabeça de alguém tão jovem. Ela era mais pálida do que qualquer um que ele conhecesse, como se até o sol tivesse medo de a tocar. Vestia-se com as roupas tradicionais das tribos, a túnica larga dançando à sua volta, e tinha um qualquer apetrecho de couro atado à volta do braço direito.
E estava acocorada sobre o cadáver do animal, esquartejando-o velozmente.
–Bom dia! –disse ela, e ele tremeu. Como podia ser assim tão casual?
Nunca tinha acreditado que ela existisse mesmo, muito menos que ainda pudesse estar viva. Mas ali estava ela, a última sobrevivente dos Originais.
–Bom dia, – respondeu ele, tentando esconder o medo que lhe crescia no peito. Pelo olhar que ela lhe dirigiu, não devia ter tido muito sucesso.
Yex riu-se, voltando para a tarefa sangrenta de preparar a carne do animal. –Porque não prepara os cavalos, senhor? Convém chegarmos ao próximo abrigo antes de o anoitecer.
Ele apenas acenou com a cabeça, ignorando o facto de ela estar de costas para ele agora, impedida de o ver. Não se atrevia a dizer-lhe não.
Aquela mulher parecia tão inocente, tão gentil. Não podia ser o monstro que lhe tinham dito que ela seria.
Ou isso, ou era ótima a mentir.
Que devia fazer? Se a conseguisse capturar, seria de certeza aceite de volta de braços abertos, poderia voltar ao conforto da sua antiga vida. Mesmo se ela fosse poderosa, quão poderosa poderia ser? Nem ela se poderia aproximar das lendas que eram contadas sobre os Originais. Se a atacasse quando ela estivesse de costas, ou quando dormisse, e talvez assim tivesse uma hipótese. Nem um monstro capaz de arrasar exércitos se conseguiria proteger enquanto dormia.
Ele começou a arrumar os seus pertences, a carregar o peso sobre a sua égua branca. Não se atreveu a incomodar o cavalo negro ou, por mais curioso que estivesse, a mexer nas coisas da bruxa. Subiu para a sela e, quando Yex voltou com a carne já cortada em nacos, ele já estava pronto a fugir, se precisasse.
Mas nem sequer o tentou fazer, e a bruxa não demorou a montar sobre o cavalo negro, pronta a avançar.
–Vamos?
Ele tentou esconder a tensão nos seus músculos e acenou com a cabeça.
–Sim. Depois de si.
Ela olhou para ele com aqueles olhos quase transparentes, e sorriu um meio sorriso troçador que só fez por o pôr ainda mais stressado. Mas depois começou a avançar, deixando-o ficar atrás. Saber que ela não o conseguia ver quando estava de costas para ele ajudou-o a relaxar um pouco.
Yex sabia que ele era um Cavaleiro da Torre. Ele não o tinha tentado esconder, as insígnias ainda lhe estavam na roupa e, claro, marcadas com tinta pintada sob a pele. Se fosse mesmo aquela Yex, porque se deixaria vulnerável assim?
Uma mulher mais pálida que a própria luz e um cavalo negro como a noite, avançando sob o sol da manhã como espectros no deserto. Que par aquele.
Em que é que Nedoy se tinha metido?
Avançaram a manhã toda sem trocar uma só palavra, e só pararam quando o sol chegou ao zénite e o calor começou a ser insuportável. O estômago vazio já se começava a queixar, e ele contou mentalmente as poucas rações que ainda tinha. Esperou que ela desmontasse primeiro, observando com atenção todos os movimentos que fazia. A bruxa pegou em quatro grandes varas de metal, e ele, por instinto, levou a mão ao coldre.
Yex viu-o e, em vez de ter medo, riu-se. Virou-lhe as costas como se não o temesse e começou a espetar as estacas na areia fina.
–Vai ajudar ou vai ficar aí pasmado a olhar? –perguntou ela, já empurrando a terceira vara para dentro do solo arenoso.
–Tenho escolha? –perguntou ele, e depois desmontou, ainda receoso.
Ela passou a prender a última estaca com uma eficiência treinada antes de pegar num par de panos que o cavalo negro carregava e estender um no chão e outro sobre as varas, como toldo, a fazer sombra naquele calor infernal do meio-dia.
Yex começou a tirar a carga do cavalo. Ela punha os seus mantimentos no chão, organizados em pequenos grupos, e ele pôde ver que ela quase só carregava comida e roupa. Um arco e flechas chamaram-lhe a atenção, mas ele fingiu o melhor que pôde não ter reparado que ela estava armada. Depois, sem tirar os olhos dela, começou a descarregar a sua égua.
Sentou-se no chão, sob o toldo, antes de ela acabar a sua pequena arrumação. Ele trazia pouca coisa e não se tinha demorado. Tinha fugido para o deserto só com o seu cavalo e o que trazia no corpo, durante a dificuldade dos últimos meses, tinha arranjado pouco mais que isso. Pegou numa torta de pão e em carne seca enquanto Yex cortava a carne que tinha caçado em suculentos pedaços.
–É só isso que vai comer, Cavaleiro?
Ele ficou surpreso com a pergunta. Virou a cara para o chão, escondendo a vergonha.
–Receio que sim.
Yex continuou a cortar a carne. –Há que chegue para ambos. Aliás, não vou conseguir conservar toda esta carne se continuarmos a avançar a este ritmo. Mais vale comer a caça ainda fresca, não é?
Nedoy não respondeu. Ela provavelmente não queria resposta, enquanto temperava os nacos com todo o tipo de pós e de especiarias. Depois ela sentou-se sob o toldo, a seu lado, segurando na taça metálica.
Ele saltou para trás quando uma chama azul cobriu as mãos da bruxa, fazendo o metal brilhar em vermelho e cozinhando a carne. Yex estendeu-lhe a mão ilesa, ainda a segurar na taça que ainda fumegava e ele, a medo, deixou que ela colocasse a carne recém-cozida sobre a sua mísera torta de pão.
Yex repetiu o processo com mais dos pequenos pedaços de carne. Desta vez ele estava preparado para o susto, e ficou a olhar para a chama dançante, fascinado. Ela ignorou-o, segurando na taça ainda quente para começar a comer a carne já cozinhada.
– Come-se com a boca, não com os olhos, – disse ela.
Nedoy ficou atrapalhado. – Eu sei, é só que... que... – hesitou. –Que você faz magia.
Ela riu-se. –Sim. Mas tu, Cavaleiro, já sabias disso.
Ele sentiu o ar à sua volta roubar-lhe todo o calor do corpo. Não encontrando resposta para aquela acusação, simplesmente a negou com a cabeça.
Yex comeu mais um pedaço de carne.
–Vá lá. Se não soubesse, porque insistiria em ficar atrás de mim em vez de a meu lado? – Ela continuou a comer, indiferente. –Não é como se não houvesse espaço. Se há uma coisa que não falta por estas bandas, é espaço.
Hesitou. –Fi-lo para a proteger, senhorita.
A bruxa riu-se com leveza, como se aquela situação não a perturbasse.
– Se ainda tivesse dúvidas, Cavaleiro, aqui tem a confirmação que quer: sim, eu sou essa Yex.
Ele não se mexeu. A sua arma não estava carregada, e, mesmo que estivesse, ele não seria rápido o suficiente para a usar. Não mais rápido que ela.
Mas Yex, em vez de o atacar, só sorriu para ele com um meio sorriso de gozo e continuou a comer. Ele baixou os olhos, como se isso fosse acalmar a besta com que, por azar, se tinha cruzado.
–Não está envenenada, se é isso que pensa, –disse ela, entre dentadas.
Ele nem tinha considerado isso! Em que estava a pensar, aceitando comida de alguém como ela?
A bruxa estendeu a mão, roubando um dos pedaços já frios de carne dele. Engoliu-o num instante, divertida, olhando para ele com humor na expressão. Nedoy relaxou um pouco, embrulhando a torta à volta da carne que restava antes de trincar.
Aquela comida tinha tanto picante que mais valia estar envenenada.
–Afinal, –continuou ela, limpando as mãos, –podia tê-lo deixado comer aquela miséria de alimento, e acho que isso seria uma punição ainda maior. A Torre deve estar mesmo mal para dar rações dessas aos seus soldados! Será que é desta que cai?
Pelo menos ela ainda não sabia sobre a situação em que ele estava. Escondeu a vergonha o melhor que pôde, tirando mais uma trinca daquela mistela que lhe fazia os olhos arder para não ter de continuar a falar.
–Tu já sabes quem eu sou, Cavaleiro. O que vais fazer quanto a isso? – disse ela, divertida.
Sentada de pernas cruzadas, virada para ele, iluminada pela luz que se escapulia pelas fibras do pano que os cobria, parecia quase inocente. Mas ele não se deixaria enganar.
–Que vais fazer comigo, bruxa? –perguntou, tentando dar tempo ao calor na sua boca para abrandar, de certa forma agradecido por essa sensação o ajudar a ignorar o medo.
Todo o humor deixou a cara dela e, por um momento, Yex parecia quase triste. Virou os olhos transparentes para o horizonte, mastigando distraidamente.
–Eu não sou o monstro que a Torre lhe disse que eu era.
O silêncio do deserto era ensurdecedor enquanto aquelas palavras lhe ecoavam na mente.
A Torre não lhe mentiria. Claro que esta mulher, esta bruxa, diria de tudo para se justificar, para o fazer relaxar.
Nedoy tirou mais uma trinca, decidindo não responder. Mesmo com o incómodo que era ter um fogo na boca, sentia o seu estômago agradecer-lhe pela primeira refeição completa em semanas. A fome sempre foi o melhor tempero, e, depois de perder a sensação na língua, estava cada vez mais fácil deliciar-se com aquilo. Evitou olhar para a mítica bruxa, esperando que ela desaparecesse a qualquer momento, revelando-se apenas uma ilusão causada pelo calor e pela malnutrição. Quando acabou de comer, limpou os beiços às costas da mão, que não podia fazer melhor que isso agora e, quando olhou de volta para ela, Yex ainda ali estava. Deitava-se sob a sombra do toldo, preparando-se para a sesta que era costume os viajantes fazerem para evitar as horas de maior calor.
–Porquê a refeição?, –arriscou ele perguntar.
Yex demorou a responder, e ele ficou a ver a forma como a luz que atravessava o tecido lhe fazia padrões coloridos na pele branca.
Ela parecia tão nova. Se tivesse chegado aos vinte anos, não devia ter passado muito disso e ali, com os olhos semicerrados para os proteger da luz e a cabeça deitada sobre os braços, era tão fácil acreditar que ela era apenas uma miúda.
–No deserto, todos são irmãos. –Parou, virando-se para ele sem se levantar, com dificuldade a focar-lhe na cara. –É um velho ditado; bem, é pelo menos uma versão dele. Desde que não me ataque, Cavaleiro, eu não farei nada para o magoar. Podemos viajar juntos até à próxima cidade. –Virou-se de costas para ele. –Ou, se quiser, tem sempre a hipótese de se ir embora. Eu não vou ficar ofendida.
Ele olhou à volta, para a imensidão de deserto inóspito que rodeava a pequena tenda. Depois suspirou, recostando-se o quão afastado dela quanto a sombra do toldo permitia e com os olhos cravados nas costas que ela lhe virava. Ainda assim, não se sentia seguro. Porque é que ela lhe teria virado as costas vulneráveis? Tinha que ser uma armadilha.
–Não tente ser um herói. Já muitos tentaram, e eu ainda aqui estou.
Hesitou.
–Isso é uma ameaça?
–Não, –respondeu. –Somente um aviso.
~
Acordou com o brilho forte do sol. Tentou ajustar-se para voltar à sombra.
–Boa tarde, Cavaleiro! –Ela puxou o pano sobre o qual ele estava deitado com força suficiente para o fazer rolar para a areia. –Se ainda queremos chegar ao próximo poço antes do anoitecer, convém fazermo-nos ao caminho.
Ele sentou-se, gemendo. Yex já dobrava aquele último pano e arrumava as varas, com tudo o resto sobre os cavalos e pronto a partir. Nedoy ficou irritado ao ver que ela tinha mexido nos seus pertences. A Preciosa não parecia incomodada com já ter a sela posta e os sacos arrumados. Sempre lhe disseram que os animais eram bom juiz de caráter, mas a sua égua estava certamente enganada.
Ela sacudiu o pó das roupas, com o mesmo meio sorriso detestável na face, antes de montar sobre o cavalo negro. Nedoy levantou-se a custo, ainda bocejando, e subiu para a sua própria sela.
–Ah, e Nedoy? –disse ela. –Agora cavalgas a meu lado.
Bem, pelo menos não havia veneno na comida.
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