Capítulo 9 - FILIPE - Parte III
A enorme guarita demonstra a dimensão que ela havia comentado: a maior vinícola do Brasil.
Ela diminui a velocidade do carro, mas não para. Só acena para os seguranças e entra sem se identificar.
O local contém alguns prédios não muito altos, mas grandes em extensão. Placas indicam os lugares: estacionamento, administração, loja, restaurante...
— Essa é a Casa Fontenelle. Eu trabalho aqui — conta ela ao estacionar o carro.
Arqueio as sobrancelhas.
— Então poderei degustar alguns vinhos? — pergunto e ela franze cenho.
— Pensei que padre não bebesse vinho.
Não poderíamos. Eu tenho meus limites e não seria isso que me faria ser um pecador. Eu, pelo que andei pensando, teria outros motivos para ser.
— Eu disse que sou normal — digo.
Não sabia o porquê, mas queria que ela entendesse isso de uma vez por todas.
Ela sorri e torce a boca, aceitando a minha resposta.
— Então está no lugar certo.
Saímos do carro e entramos em um lindo jardim gramado com turistas perambulando o local com câmeras e celulares em mãos. Até vejo um casal tirando foto vestido de noivos.
O dia está realmente lindo.
Aurora me olha.
— Tudo bem?
Faço que sim.
— O lugar é bonito — digo.
Ela para de andar e olha para todos os lados.
— É.
Vejo seus olhos brilharem.
— Vamos entrar?
Assinto e a acompanho logo atrás.
Assim que entra, Aurora é assediada por um grupo de pessoas. Pelo uniforme vejo que todos trabalham aqui.
Ela sorri um pouco, brinca que está de férias e me apresenta para as pessoas.
Fico satisfeito quando me apresenta apenas como Filipe.
Saindo de uma das salas, observo Giulia, a mulher espirituosa que conheci quando eu cheguei à cidade, caminhar até Aurora e abraça-la.
— Oi, padre! — diz ela vindo me dar um beijo na bochecha.
Ao lado vejo Aurora segurar um sorriso e arqueia uma sobrancelha quando me vê olhando-a.
— Danadinho! — Giulia ajeita a cabeleira loira e coloca uma mão na cintura. — Não contou que era padre.
— Eu contei — digo para ela.
Giu dá um tapinha em minhas costas.
— Eu pensei que estava me zoando. Aliás, eu não sou a...
— Noviça Rebelde — completo e ela ri.
— Deus me livre, mas quem me dera, padre!
Aurora agora revira os olhos.
— Vai conhecer a melhor vinícola da região, padre! — exclama Giulia.
— Estou vendo que sim. — Em um movimento rápido, tenho quase a certeza de que ela pisca um olho para mim.
O charme que ela joga chega a ser bem engraçado. Eu não deveria achar, mas acabo achando.
— Eu ou você? — Giulia pergunta para a amiga.
— Eu vou apresentar a Casa — responde Aurora de forma enfática.
— Que pena. — Ela faz bico, contrariada.
— Aquele grupo está te esperando, Giu! — Aurora aponta para algumas pessoas. — Nada de furos.
— Eu sempre faço o meu melhor. — Ela manda um beijo no ar para a gente e sai se apresentando para o grupo grande que espera na porá.
— Ela é Hostess da sala de degustação. Giulia é responsável por realizar as degustações, comunicar os visitantes e ajudá-los em suas compras. Explica a melhor forma de servir e beber os vinhos e atua também como guia turístico da vinícola.
— Ela não poderia ter melhor profissão.
— Ah sim, seu ponto forte sempre foi seu carisma e persuasão. Quando ela não está na vinícola, vendemos metade da meta diária. — Aurora sorri. — Mas hoje sou eu que vou fazer isso. Se alguém perceber que estou trabalhando aqui vão contar para o Otto rapidinho.
— Otto é o dono?
— Sim — ela aperta os lábios. — Vem, vou te contar um pouco da história.
Aurora pega a minha mão.
Não sei o porquê esse ato tão sem importância faz o meu batimento cardíaco acelerar.
Ela me induz a entrar em uma sala e, na primeira oportunidade, eu retiro minha mão de dentro da sua.
— Enquanto a Giulia faz a apresentação inicial aos visitantes, vamos adiantando as etapas na frente — Aurora sorri e me guia até o lado de fora do prédio.
Ela me leva até as parreiras com placas mostrando os seus nomes: Merlot, Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc, Sauvignon Blanc, Tannat, Tempranillo, Carmenere, Chardonnay, Alvarinho, Pinot Noir e algumas outras.
— Aqui você pode observar que são uvas diferentes, de várias variedades — explica Aurora. — Só aqui nessa vinícola há quarenta e cinco tipos de uvas que são utilizadas para a produção do vinho.
— Quarenta e cinco? — Fico surpreso.
— Esse é um pequeno exemplar, Filipe. Hoje estão catalogadas e identificadas mais de três mil tipos de uva como essas.
— Isso inclui aquelas uvas que compramos no mercado?
— Não — Ela sorri lindamente. — Essas nas quais consumimos in natura são diferentes. Então a quantidade de vinhos que a gente pode encontrar com aromas e sabores diferentes de uva são muito grandes. E ainda tem mais... —Ela vai até uma videira e aponta. — Se eu pegar essa casta Alvarinho, por exemplo, e plantar lá na Bahia, no Vale de São Francisco, onde temos uma vinícola também e fizermos um vinho como os daqui eles serão diferentes porque irá mudar o aroma e sabor. Cada uva, além de ter a própria característica, é influenciada pelo clima e solo.
— Então além das três mil diferentes uvas, o clima e o solo também mudam o sabor?
— Exatamente. O sabor e o aroma.
— Isso nos dá infinitas variáveis.
Arregalo os olhos.
— Mais do que eu poderia imaginar.
Aurora parece feliz com a minha curiosidade.
— E existem uvas mais propícias para cada tipo de clima? — pergunto.
— Sim. Climas quentes acabam favorecendo aquele vinho mais leve, mais macio, mais fácil de beber, ou o vinho suave, aqueles do tipo docinho. Nos climas frios ocorre o oposto. Favorecem vinhos mais intensos, mais ácidos, aqueles encorpados que podem envelhecer por décadas.
— Então eu posso escolher o vinho por região?
— Sim, mais relevante do que o nome da uva que está expresso no rótulo é a região que ele é produzido. Se eu gosto de um vinho que não agride o paladar, o da região quente vai favorecer essa bebida. Sempre observando, claro, a região de plantio da uva que estará escrita na garrafa. Região fria tem um vinho mais marcante.
— Incrível — digo baixinho olhando as parreiras.
— É. Eu também acho.
— Já consigo ver os cachos — aponto para os frutos pendurados. — Quando é a colheita?
— Entre janeiro e março. Não falta muito, porém elas vão crescer ainda mais até lá.
— Acredita que nunca havia visto um cacho de uva no pé?
Ela ergue uma sobrancelha.
— Acredito. Ouvimos muito isso por aqui.
Ela me leva de volta ao prédio, só que agora em outra sala.
— Aqui é a sala onde conta a história da Casa Fontenelle — diz Aurora enquanto observo todo o local.
Fotos antigas de colonos italianos estampam as paredes da sala. Aurora explica com grande entendimento a história dos imigrantes italianos que saíram do seu país por conta da crise de emprego na segunda metade do século XIX.
— Então eles fugiam da pobreza?
— Sim. Fugiram da pobreza e viram no Brasil uma oportunidade para recomeçar. Giuseppe Fontenelle veio com a esposa e três filhos. Com o pouco que trouxeram compraram um pedaço de terra e começaram a cultivar a única coisa que aprenderam na terra natal: uva. Muitas das viticulturas aqui da região nasceram assim.
Em uma das fotos, um homem segura uma pequena placa de madeira, finamente esculpida com os dizeres: LOTE 12. Fontenelle.
— O Lote 12 era o nome do seu pedaço de terra que o governo havia repartido. Pouco mais de um hectare foi o que eles conseguiram comprar, mas foi suficiente para sustentar a família.
— Imagino o quanto deve ter sido difícil.
— Otto costuma a contar a história de modo menos superficial. A família sofreu para se adaptar na nova terra. Um dos filhos voltou para a Itália depois de um ano e a mãe, nona Adina ficou muito triste e morreu depois de alguns meses. Nem sempre a história é bela.
Aurora mostra uma nova foto na parede. Uma família em uma região de matagal.
Na descrição abaixo informa que se trata da família de Giuseppe Fontenelle, Adina e seus três filhos, Matteo, Romeu e Leonel no Lote 12.
Observo a foto em preto e branco.
— Giuseppe era o avô do Otto.
— Posso imaginar que você trabalha aqui há muito tempo — digo, percebendo a sua magistral sabedoria sobre tudo da vinícola.
— Nasci aqui.
Arqueio as sobrancelhas.
Ela pisca algumas vezes e respira fundo, olhando para a foto do homem segurando a placa.
Após alguns milésimos de segundos, Aurora me olha e caminha para sair da sala quando percebe que os turistas comandados por Giulia começam a entrar.
— A história de Giuseppe Fontenelle no Brasil começa em 1892 quando... — Giulia fala alto e dá uma piscada para gente.
Devagar saímos do local.
Vamos para a sala seguinte, que mais parece um galpão com uma dezena de tonéis de madeira com mais de 5 metros de altura. O cheiro forte também me chama a atenção.
— Essas são as pipas de grápia. Era um tipo de madeira utilizada pelos imigrantes para fazer casas, móveis e esses recipientes de vinhos. Alguns desses têm mais de cem anos. Mesmo naquela época, no início da imigração, eles sabiam que essa não era a madeira ideal para o vinho. Ela causa um sabor e aroma fortes e isso interfere diretamente no vinho. Ainda hoje, mesmo após tantos anos, dá para sentir a forte fragrância da madeira, não é?
Faço que sim.
— Eles bebiam o vinho mesmo com essa alteração no sabor?
— Sim e não — ela sorri. — Uma curiosidade legal é que eles revestiam internamente cada barril com cera de abelha para evitar isso. Mas dava muito trabalho e, mesmo assim, não garantia cem por cento.
— Posso imaginar. Mas hoje em dia, o que fazem?
— Vou te mostrar na próxima sala.
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