Capítulo 19 - FILIPE
"Não veio sobre vós tentação, se não humana;
mas fiel é Deus, que não vos deixará tentar acima do que podeis,
antes com a tentação dará também o meio de saída,
para que possais suportar."
1 Coríntios: 10:13
Diante do desespero de ter que reger a missa, finalmente me dei conta das convicções que estavam tão óbvias dentro de mim.
Eu estava em pecado. Meus pensamentos já não pertenciam apenas a Deus e ao meu trabalho. Eles pertenciam à Aurora.
Era a única coisa que não poderia acontecer. A única que eu diria ser impossível.
Afago o cabelo de Aurora sobre o meu colo. Sinto o seu choramingar diante da sua respiração curta.
Eu não queria dizer apenas que não conseguia ficar longe dela. Eu queria poder dizer que eu a desejo, que ela pertence aos meus sonhos, que meus dias são mais felizes quando a vejo, dizer que eu estou completamente apaixonado e entregue a todas essas aspirações. Mas não posso.
Sentindo-a assim tão perto de mim, com toda a sua vontade e disposta a viver intensamente, me causa uma profunda tristeza.
Eu a amo.
Eu a amo como jamais amei alguém.
Percebo que eu não fugia de nada do Rio de Janeiro. Não fugia dos fantasmas que herdei da minha mãe, nem dos sentimentos que compartilhei durante toda a minha vida. Fugi de mim mesmo. Fugi do homem que sentiu desejo por Milena, fugi da vida como uma forma de pagar por todas as dores da minha mãe. Minha punição. Foi por isso que fiquei tão animado com a minha transferência.
E, convencido desse sentimento tão real, uma lágrima cai sobre o meu rosto.
Ergo meus olhos enxergando tudo com uma clareza quase enlouquecedora e, de repente, vejo o padre Giovanni retirando a túnica enquanto nos observa, ao lado do altar.
Paro de respirar.
Acho que Aurora repara, porque logo desfaz o abraço e vê onde meus olhos estão pairados. Assim que compreende o motivo do meu enrijecimento, ela se arrasta pelo banco, mantendo distância. Ela ajeita o cabelo, envergonhada.
— Bom, eu... — ela fala para mim. Seu rosto está vermelho e seus olhos molhados. — Eu já vou.
Concordo, sem me mover demais.
Ela se levanta e ouço seus passos até sair da Igreja.
Padre Giovanni espera ela sair para enfim ir à sacristia.
Levanto-me e vou atrás dele.
Não sabia ao certo o que ele viu e nem como interpretou, mas precisava tentar explicar.
Abro a porta e o vejo guardando sua túnica.
— Como está, padre?
Ele não fala, apenas acena com a cabeça.
Pude ver como Eleonora era alguém muito importante para ele.
Mas agora não sabia se a sua falta de fala era pela perda ou pelo acabou de ver.
— Sinto muito pela Eleonora, padre. — Eu já havia dito isso, mas estava nervoso.
Eu sentia de verdade.
Ele concorda e se senta em uma das cadeiras de madeira e, inesperadamente, começa a chorar.
Um choro alto. Desesperador.
É doloroso ver um senhor tão forte como ele colocando tanta dor para fora.
Sento-me ao seu lado e o deixo chorar.
— Há algo que eu possa fazer pelo senhor? — pergunto, quando ele parece se acalmar.
— Consegue trazer Eleonora de volta?
Olho para ele. É visível, quase palpável a dor que dilacera o seu rosto.
— Eu não posso. Eu não posso fazer isso — digo, diante do seu olhar aflito, e, sem muito esforço, capto o que está diante de mim.
— Não cometa o mesmo o erro que eu — diz ele.
Eu encaro o chão, certo das minhas percepções.
Queria dizer que não sei do que ele está falando, mas não faço.
— Eu e Eleonora éramos muito amigos, sabia?
— Não saberia viver sem ela por perto. — Ele solta uma risada baixinha ao se lembrar. — Eu me sinto perdido.
— Nunca disse isso a ela?
Ele me olha aturdido com a pergunta e me arrependo de fazê-la.
— Onde já se viu?! — pragueja com seu jeito turrão. — Eu não precisava dizer. Ela sabia muito bem.
Padre Giovanni amava Eleonora e ela a ele.
Como eu não percebi isso antes?
Perdi as contas de quantas vezes eu a via em sua casa e o jeito tão cuidadoso que ela cuidava dele.
— Ela se casou, teve seus filhos, ficou viúva e eu sempre estive ao seu lado.
— O que faria diferente, padre?
Ele volta a me olhar, profundamente triste.
— De alguma forma eu a prendi a mim. Fui egoísta. Eu a mantive perto apenas para me sentir bem.
— Mas você a amava.
Ele abre a boca para reclamar, mas desiste. E, sem conseguir mentir, concorda com a cabeça.
— O erro não foi sentir amor. O erro foi ser egoísta. Por causa desse amor, Eleonora nunca foi feliz no casamento e nunca conseguiu sair daqui.
Franzo meu cenho. Eu tentava compreender rápido demais uma vida de mais de oitenta anos.
— O senhor nunca pensou em...
Novamente, ele mostra sua carranca.
— Fiz promessas para uma eternidade, padre Filipe. Jamais trairia os meus compromissos com Deus.
Ele enxuga o rosto e se levanta. Agora parece ter raiva de mim.
— Eu nunca abracei Eleonora daquela forma, Filipe. Lembre-se de quem você é, do que escolheu ser. Não pense só em você. E nunca mais pergunte nada sobre Eleonora para mim. Você não ouviu nada, não é?
— Claro que não, senhor.
Ele caminha pela sala, para no meio e se vira de novo para mim.
— A partir de hoje, eu o manterei ocupado. Nada de ficar por aí arranjando conversa fiada.
Fico paralisado.
— Padre, eu...
— Alguma objeção a minha exigência, padre Filipe? Pelo que sei o Vaticano te mandou aqui com um objetivo, não é? Estou velho e agora estou mais ciente disso. Então, se vai cuidar do meu rebanho, está na hora de começar.
****
Dias depois
Padre Giovanni cumpriu a sua promessa. Ele me mantém ocupado.
Agora eu tinha visitas marcadas na casa dos fiéis e atualizava os arquivos da igreja no computador. Eram décadas de organização feitas à mão e eu não estava nem na metade.
Não sabia se era bom ou ruim. Estava inquieto e para não agir precipitadamente, deixo os dias passarem porque os que se sucederam a minha chegada foram complexos.
Pensei mil vezes em mandar mensagem para Aurora. Outras mil vezes em perguntar a alguém sobre ela. Mas não fiz e meu coração estava apertado.
Não havia mais passeios pela cidade. Não havia mais fugidas para o Bistrô do Pablo. Não ouvi mais a sua voz doce. Ficar sem ver Aurora era o que me deixava mais angustiado.
A tentativa de me manter ocupado está sendo um sucesso, mas ele sabe que, uma vez dentro do coração, estará para sempre marcado em mim.
Aurora é a dona dos meus pensamentos, dos meus anseios, dos meus desejos carnais, dos meus sonhos. Aurora é a personificação do amor em mim. Eu ansiava por tê-la por perto a qualquer momento. Mas eu só sentia a distância. Não só física, mas a distância da vida. O que nos impedia de viver esse amor. O imenso abismo que nos impede de estar juntos.
O Padre Giovanni estava mais quieto. Mantém sua firmeza, mas eu consigo ver a saudade que carrega.
Antes da morte de Eleonora eu estava procurando alguma casa para alugar aqui nos arredores, mas desisti por enquanto. Ele precisa de alguém por perto nesse momento. E, em meu benefício, o melhor da situação em continuar morando com ele era a oportunidade de ficar de olho para ver se Aurora aparecia no bistrô. Só a possibilidade de vê-la me deixava eufórico.
Padre Giovanni fez a escolha dele em relação ao que me contou e se punia, não por não ter tido o momento que tanto desejou com Eleonora, mas sim do quanto a deixou presa. Um amor impossível, proibido. Era o que eu tinha. O que eu sentia.
Um amor que nunca havia imaginado na minha vida. Talvez o amor que minha mãe teve pelo meu pai.
Continuo lendo as cartas da minha mãe e conclui que sua dor era mais presente do que havia imaginado. Não era difícil ler frases em que ela se perguntava o porquê do seu abandono. Eu apenas me limito a não ter mais sentimentos ruins pelo homem que fez isso com ela.
Desligo o computador depois de digitalizar mais alguns documentos.
Vou para casa e faço uma ligação via Skype com Milena e Bruno. Eles reparam o meu desânimo, mas falo que é apenas cansaço. Fico feliz por matar saudade dos meus amigos.
Janto a comida que o padre fez e visto a minha roupa de caminhada.
Agora corro antes de amanhecer e de dormir. É bom porque, geralmente, a cidade está vazia e é o tempo que deixo destinado para pensar apenas na minha vida.
Aperto o passo e, apesar de minhas tentativas falhas de me tranquilizar quanto a falta que sinto de algo que nunca foi meu, eu sempre me sinto melhor quando chego até as parreiras de uva. Respiro fundo o aroma da fruta. Aurora tem um pouco desse cheiro. Costumo fechar meus olhos e deixa-la entrar em mim. Não sei por quanto tempo faço isso, mas saio dali com a sensação de que nunca será suficiente.
Passo pelo pórtico da cidade, voltando para casa e vejo Pablo, saindo da casa de alguém. Ele me vê e acena no outro lado da rua. Aceno de volta, mas não diminuo o passo largo até que ele me chama.
Eu paro e ele atravessa a rua. Apertamos a mão em cumprimento.
— Como vai, padre? Está sumido.
— Estou bem. Trabalhando bastante dentro da igreja e você, como está?
— Não muito bem. Eu ia até a igreja mesmo conversar com você. Pedir uns conselhos.
Meu coração palpita em antecipação. Ele está abatido. E eu me sentia assim também. Como aconselhar?
— Por enquanto o padre Giovanni ainda mantém tudo voltado para ele em relação a...
— Não. Não queria conversar com o padre, sabe. Não com o Giovanni. Acho que ele não entenderia muito coisas do coração e tal.
Ajeito minha postura.
— E eu sim?
— Eu sei que você é padre também, mas temos quase a mesma idade e você conhece Aurora e... — ele respira fundo e eu perco o ar. — Ela me deixou.
Encaro o chão por alguns minutos e noto um frio subir pela minha espinha.
— Sinto muito.
— Faz alguns dias. Foi na manhã seguinte à festa da Giulia.
Uma alegria me invade e me sinto péssimo por esse sentimento diante da tristeza dele. Eu estou todo errado.
— Será que posso te acompanhar até a praça?
Respiro fundo e concordo. Caminhamos lado a lado.
Eu queria mesmo era poder procurar pela Aurora. A saudade que sinto dela parece triplicar.
— Eu achei que iríamos nos casar, padre.
— É, eu sei — respondo, sem saber do que estou falando.
— Eu achava que nossa relação era perfeita.
Concordo com a cabeça.
— Ela sempre dizia que eu era legal porque não a perturbava. Nunca dormi na casa dela porque Otto não gostava e eu entendia. Não nos víamos todos os dias porque ela sempre trabalhava demais. Não disse para ela que achava besteira fazer curso na Europa e sei lá onde. Eu nunca...
— Por quê? — pergunto.
— Por que o quê?
— Por que nunca disse para ela que achava besteira ela estudar fora?
— Porque ela não iria gostar. Todo mundo sabe que Aurora vai ser a dona de toda a Casa Fontenelle. Ela não precisa sonhar em ir lá pra Europa e fazer o mestrado. Não é porque não me importo com ela, padre. É porque sei o trabalho que ela tem e isso só iria deixá-la mais esgotada.
Paro de andar. Uma súbita raiva do que ele acabou de dizer me domina. Ele não se importava com os seus sonhos.
— O que você quer que eu fale, Pablo?
Ele para de andar também e levanta os ombros.
— A verdade.
— Você não foi verdadeiro com ela — digo rispidamente.
Ele franze o cenho.
— Como não fui?
— Você apenas foi aceitando tudo sem mostrar que se importava. Deveria dizer o que achava.
Ele aperta os lábios e concorda com a cabeça.
— Eu sempre tive medo de perdê-la. Essa é a verdade.
— E acabou perdendo. Infelizmente as coisas não acontecem sempre do jeito que queremos.
— Eu quero reconquistá-la, padre. Quero provar que eu posso mudar. Que eu posso ser um bom marido no futuro, um bom pai. Eu vou passar a dizer o que penso. Vou exigir coisas. Vou mostrar interesse. Vou amá-la do jeito que eu quero e posso. Eu amo aquela mulher, padre, e sei que não há ninguém no mundo mais perfeito para isso do que eu.
A última frase de Pablo quase me faz ir para trás.
Repito-a em meus pensamentos, deixando-a destruir meu coração e percebendo todo o estrago que faz dentro de mim.
Não há ninguém no mundo mais perfeito do que ele.
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