Capítulo 12 - AURORA -Parte III
Ele, espantado, engole com dificuldade todas as palavras amargas que acabei de cuspir sem nenhum cuidado.
Pisco algumas vezes e vejo os seus olhos castanhos caírem em uma evidente decepção.
O que estou fazendo? Nós nunca brigamos. Nunca!
— Pablo, eu estou nervosa e...
Ele volta a me olhar.
— Isso não te dá o direito de ser grosseira.
— Não. Não leve isso em consideração, eu...
— Acho melhor você ir embora mesmo, Aurora. Depois, com calma, nós conversamos.
— Mas...
— Vá. Embora. Aurora — pede pausadamente, com o olhar firme nos meu. — Por favor.
Diante da sua notória tristeza, meus olhos lacrimejam. Eu não deveria fazer isso com ele. Sem querer piorar as coisas, apenas concordo.
E, mais uma vez, vou deixando as coisas para depois.
Saio do bar com o coração apertado.
Atravesso a praça e entro no Sun sem olhar para os lados até que ouço Giulia me chamar.
— Ei! — ela grita e caminha na minha direção. — Estava tentando te ligar e...
— Meu celular está desligado em casa.
— Nossa! Que cara péssima. O que houve?
Assim que ela faz essa pergunta, uma lágrima cai do meu olho.
— Eu sou uma idiota, Giulia!
Ela dá a volta no carro e entra no carona.
Desabo em choro. Não me lembrava da última vez que eu tinha chorado. Giulia me abraça e eu acabo contando a ela sobre o que estava me deixando tão nervosa. Sobre a herança que estava quase em minhas mãos.
Ela ouve com toda atenção do mundo e reflete sem me interromper.
— Eu não quero perder a minha vida. Só isso.
— Quer sinceridade? — pergunta.
— É o que mais quero. Estou perdida.
— Não acho que você esteja perdida, Rory. Acho que falta algo que você ainda não encontrou. Algo que faça você se sentir completa. Sei lá, talvez seja a falta de um equilíbrio para todas as coisas.
Faço que sim, enxugando o rosto.
— Eu tenho sonhos, Giulia. Quero ir para Bordeaux, quero poder construir uma casinha com vista para o pôr do sol e...
— Espera. Você tem anseios materiais e tal. Mas ninguém sonha em ter o ar para respirar, sendo que ele é essencial para viver, não é? Não sentimos falta de algo que nunca precisamos lutar.
— De onde você tirou isso? — pergunto, abismada.
— Sou uma guria vivida.
— Não, você não é.
— O Fê é filósofo — conta. — Não o Fê padre, claro! O Fê de Felício, meu novo rolo. Ele é professor na Universidade de Caxias do Sul. Passamos as últimas noites namorando e...hum... conversando também. Ele anda me ensinando muita coisa, amiga.
— Estou vendo. Aproveite esse seu Fê.
— Vou sim. O meu Fê está valendo a pena. É aquela história: que seja eterno enquanto dure.
Sorrio, me sentindo um pouco mais leve por desabafar.
— Me conta, e o Otto? O que falou sobre tudo isso?
— Ele deixou a papelada na minha mesa.
— A vida é sua, minha amiga. Você precisa se encontrar antes de pegar tudo isso e se tornar infeliz com a decisão.
— Está sendo difícil colocar tudo em perspectiva, Giulia. Não posso negar o pedido dele e deixar a Casa Fontenelle nas mãos dos seus parentes distantes, pessoas com as quais nem temos contato.
— Então você já tem a decisão?
— Só não sei como fazer isso.
Ela respira fundo.
— Talvez eu esteja fazendo tempestade num copo d'água.
— Mas ninguém está dentro de você pra saber o que sente. Agora me diz, o que falou para ele?
— Para o Otto?
— Não. Para o Pablo.
— Como sabe que...
— Eu o vi indo atrás de você, mas percebi que ele desistiu no meio do caminho e voltou para o bistrô cabisbaixo.
— Brigamos — digo e ela franze o cenho.
— Brigaram? — pergunta, incrédula.
— Eu briguei, na verdade.
— Vocês nunca brigaram.
— Eu sei. Para tudo há uma primeira vez, não é? Eu estava nervosa. Tudo o que vem acontecendo com o Otto e mais cedo eu fui grosseira com a minha mãe também e...
— O que disse ao Pablo, Rory? — ela repete a pergunta e eu conto a ela quase que palavra por palavra. — Sinto-me péssima por isso.
— Isso foi...
— Horrível, eu sei, Giulia.
— É. Você foi má. Ele não merece isso.
— Eu sei que não.
— Mas você não falou nenhuma mentira, não é?
Arregalo os olhos.
— Ué! Por que está contando tudo isso para mim sobre a herança e não contou para ele?
Eu poderia dizer que não sabia a resposta, mas seria uma mentira.
— Por que você vai falar o que deve ser falado. Não vai apenas concordar comigo e sorrir achando que estou fazendo drama.
— Você não é dramática. Ele deve saber disso. Na verdade, acho que é a pessoa que mais guarda as coisas para si que eu conheço. É difícil ser sua amiga.
— Eu imagino. Acho que é por isso que te contei. A verdade é mais dura do que isso, Giulia. Conclui que a opinião dele não importa. É como se eu fosse desperdiçar meu tempo em contar a ele tudo isso e, no fim, nada tenha adiantado.
— Eu fico triste, Rory. Triste porque fui eu que o apresentei para você e, sinceramente, não consigo ver Aurora sem Pablo e vice-versa. Não é porque vocês estejam sempre juntos, pois sendo bem sincera, isso quase não acontece, mas, sei lá, eu sempre achei vocês um casal tão lindo.
— Isso não é suficiente, não é?
Ela faz que não e fica calada diante da minha declaração.
Um pouco mais à frente, vejo Filipe diminuir o passo chegando à casa do padre Giovanni, de camisa grudada no corpo, calça comprida e tênis, ele me avista dentro do carro e retira o fone de ouvido das orelhas acenando com um sorriso lindo no rosto. Meu coração dá um salto e os batimentos aceleram. Sorte que a Giulia não consegue ouvi-lo.
Isso também logo acabaria. O Padre Giovanni iria se certificar de que o Filipe não se tornasse meu amigo, pois eu sou uma pecadora. Acho que depois dos olhares que dei para ele ontem, o Filipe não vai nem questionar essa possibilidade.
Pecadora, eu? É! Talvez eu seja mesmo. Principalmente quando pensei em beijá-lo ontem.
Hostilizo meus pensamentos.
Aceno de volta, fingindo nenhuma animação e me viro no banco para Giulia que percebe minha agitação um tanto quanto forçada com um olhar desconfiado.
— O que está pegando?
— Como assim?
Ela indica a cabeça para onde Filipe está.
— Com o padre.
— Nada.
— Nada? Tem certeza? Você sabe fingir muitas coisas, Aurora, mas agora não fez uma boa atuação, não.
Eu me ajeito no banco do carro.
Ela bate seus enormes cílios postiços e espera minha resposta.
— Dormimos juntos.
— O QUÊ? — Ela grita.
Tampo sua boca.
— Shhhh... não é isso que você está pensando. Está louca?
— Você acabou de dizer que dormiu com o padre! — Ela sussurra gesticulando desesperada.
— Não! Não dessa forma, sua mente poluída! Nós ficamos atolados.
Ele me olha desconfiada.
— A chuva. Lembra-se da chuva? O Sun atolou quando fui ao Lote 12 e não conseguimos sair.
— Lote 12?
— Eu sei. Por favor, não conte para ninguém que fui até lá. O Otto talvez não goste.
Agora é ela que tampa a boca com a mão evitando uma risada alta.
— Vocês dois ficaram naquele carro desconfortável a noite inteira. Se estivesse com o carro novo isso não aconteceria, não é?
— A culpa não foi do Sun, Giu. Foi minha.
— E sobre o que conversaram a noite toda?
— Tomamos banho de chuva e observamos as estrelas.
Ela para de rir.
— Isso é bem romântico.
— Não fale besteira. O Padre Giovanni acabou de dizer que sou uma pecadora e que vai contar para o Filipe
— Ele disse isso?
— Que eu sou pecadora? Não. Não com todas as letras, mas insinuou. E sim, ele disse com todas as palavras que contaria para o Filipe.
Ela ri da situação e eu acabo rindo também.
— Amiga, você está mais enrolada do que linha em carretel.
— Estou. Mas não por causa dele. Isso não tem nada a ver.
— Não adianta mentir para mim.
— Olha o que está falando, Giulia! — Repreendo-a. — Ele é padre.
— Desculpe — sussurra. — Era uma brincadeira.
Eu estremeço e volto sentir dor, agora em todo corpo.
— Está com frio?
— Um pouco.
Passo a mãos sobre os meus braços e Giulia checa a minha temperatura no pescoço.
— Você está com febre.
— Acho que é um resfriado. A chuva de ontem e... — arfo. — Melhor eu ir, Giu.
— Vou com você.
— Não. O Pablo também é seu amigo e ele precisa ser ouvido tanto quanto eu.
— Tem certeza?
— Absoluta.
Ela concorda e me abraça.
— Vê se coloca seu celular para carregar.
— Pode deixar.
Ela sai do Sun e para no lado de fora.
— Promete que vai se acalmar?
Concordo.
— Se cuida!
Mando um beijo no ar para ela e ligo o carro para voltar para casa.
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