Capítulo 11 - FILIPE - Parte III
A verdade é que eu queria fugir. Fugir do novo. Fugir de um padre chato que não se vê perdendo espaço. Fugir das lembranças que tenho da minha mãe. Fugir de muitas coisas.
— Aurora...
— Hum?
— Temos duas opções — digo, com a voz amigável. Uma tentativa quase frustrada de mostrar tranquilidade. — Podemos ficar aqui calados ou conversar um pouco.
Percebo seu olhar de soslaio.
Até que ela se vira.
Ela não iria negar meu pedido. O pouco que eu a conheço, percebo que também não estava gostando do clima instalado aqui dentro do carro.
— Do que quer falar? — questiona ela, séria.
Torço a boca, levantando um pouco os ombros.
— Por que fez enologia? — Minha pergunta é aleatória. Só queria ouvi-la falar. Sem deixá-la sem graça.
Eu já imaginava a possibilidade de ela não continuar sendo minha guia pela cidade depois da forma inconveniente que agi.
Eu sabia que ela não ouvia meus pensamentos, mas por várias vezes me peguei olhando para ela de um jeito inapropriado.
Ela deixa os ombros caírem, desfazendo a posição tensa de antes.
— O que quer ouvir? — Vejo os seus olhos brilharem. — O que todo mundo quer ou a verdade?
Pisco algumas vezes e arqueio uma sobrancelha.
— Com certeza a verdade.
Minha curiosidade é genuína, assim como meu interesse de saber mais sobre ela.
Aurora inspira fundo e encosta no banco.
— Lorenzo, o filho do Otto Fontenelle, começou a fazer enologia na França quando era jovem. Mas, infelizmente, voltou antes e acabou... — Ela suspira. — Acabou morrendo. Sempre foi o sonho do Otto ver o seu filho formado e ajudando na empresa. Esse desejo se estendeu para mim, então, quis dar essa alegria a ele. Acho que consegui.
— Você é parente dos Fontenelle? Eu... — Eu queria fazer essa pergunta há algum tempo.
— Não — responde com um pequeno sorriso. — Otto praticamente me criou. Meu pai era seu empregado e eles eram amigos e, quando meu pai morreu, minha mãe foi trabalhar dentro da casa para ajudar Elena, sua esposa, com as tarefas de casa. Aí dona Elena morreu pouco tempo depois e Otto passou a cuidar de mim como se fosse sua filha. Resumindo, é isso.
— Mas você gosta do que faz, não gosta?
— Gosto de colocar a mão na terra, de cuidar do plantio, da escolha do solo, da produção, envelhecimento e engarrafamento do vinho e até mesmo da parte da venda. É, eu gosto sim.
— Reparei o dom enquanto me explicava hoje.
Ela sorri, baixando o olhar.
— Eu amo o que faço, mas...
— Mas?
— Mas que a gente nunca está satisfeito com o que tem, não é? — pergunta voltando a me olhar.
Eu não poderia responder isso nesse momento.
— A verdade é que eu tenho medo. Medo de muitas coisas — confessa baixinho.
— Todo mundo sente medo, Aurora. Eu também sinto.
— Eu tenho alguns sonhos e me culpo por não se encaixarem na vida que tenho. Na vida que está destinada a mim. É difícil explicar, Filipe.
— Por que temos essa mania de querer explicar tudo, não é? Você me disse isso no dia que nos conhecemos, quando negou o pedido de casamento.
— Pois é. Engraçado, não é? Eu consegui achar uma explicação lógica por não ter aceitado aquele pedido. Acredita?
Sua declaração me causa curiosidade.
Ela mostra um meio sorriso para mim depois de suspirar melancolicamente.
— Pablo não está nos meus planos. Eu não consigo encaixá-lo em nenhum deles. E eu me culpo por isso.
— Não deveria, Rory. A gente não manda nos sentimentos, não é?
Ela concorda.
— É. Acho que não — suspira e mostra mais um sorriso para mim. — Eu não sou assim, Filipe. Não fico só falando das minhas dúvidas, das tristezas. Eu não sou assim — repete.
Dou-lhe um sorriso sincero.
— Você é — digo e ela arregala os olhos. — Uma parte de você é. Eu vi o seu outro lado também.
— Viu?
— Vi quando cantou. Vi quando sorria para os seus amigos no bistrô. Vi quando me apresentou hoje a vinícola. Vi sua alegria envolvida nisso.
— Estou até encabulada. O que você tem, Filipe, que começo a falar coisas que nunca disse para ninguém? — questiona em tom de brincadeira.
— Talvez seja porque sou padre — digo, sem pensar muito. Talvez fosse bom eu me lembrar disso mais vezes.
Ela aperta os lábios.
— É. Acho que sim — concorda. — Mas e você? — pergunta. — Você não tem momentos assim? Sem explicação?
Respiro fundo.
Sua pergunta era fácil de ser respondida.
— Tenho, mas ao contrário de você, sempre tive as explicações.
Ela arqueia uma sobrancelha com o olhar interessado.
— Gostaria de falar sobre esses momentos?
Levanto um pouco os ombros.
— Também perdi alguém que eu amava e ainda é recente.
— Sua mãe?
— Sim. Acho que não fiz o que deveria ter feito.
— A gente sempre pensa assim. Eu acho que deveria ter abraçado mais o meu pai.
— É. Eu deveria ter feito mais também. O problema é que ela se fechava para o mundo.
— O que aconteceu? O que a fez partir? — sua pergunta me faz titubear.
— Câncer, mas creio que isso só a ajudou partir. Não foi o motivo principal.
A tristeza. A tristeza a fez partir.
Pensando friamente, em certo momento, acho que ela agradeceu quando a doença voltou pela terceira vez. Eu havia me tornado um sacerdote e ela não tinha mais responsabilidades sobre a minha criação. Foi uma maneira de se entregar sem atentar sobre a própria vida.
— E o seu? — pergunto a ela. — O que o fez partir?
Seus olhos se perdem por um segundo antes de eles voltarem a mim.
— Eu tinha nove anos. Era uma manhã de sábado e ele resolveu verificar a colheita e eu o acompanhei. Estávamos caminhando sobre essas parreiras quando ele... — Sinto sua voz embargar. — Quando ele caiu e acabou. Não pude lhe dar um último abraço e nem um beijo.
— Sinto muito.
Ela aperta os lábios.
— Ele tinha um aneurisma e ficou internado alguns dias no hospital, mas nunca mais acordou. Ele nos deixou de repente.
Vejo seus olhos marejarem.
— Mas... — ela respira fundo. — É passado. Por muito tempo busquei algo que pudesse me sentir mais perto dele, e o que restou foi esse pingente de flor de lótus. — Ela sorri. — O que dói é a saudade.
— Não conheci meu pai — conto.
— O que aconteceu?
— Não sei — respondo, sorrindo sem motivo. — Minha mãe nunca contou. Acho que ele não queria ser pai. Bom, eu só tenho suposições.
— Ela nunca te contou?
— Eu nunca perguntei quando realmente deveria, e foi ficando para trás.
— Não tem curiosidade?
— Tive, por muito tempo. Agora, não mais.
Sinto meu corpo tremer. Agora, era de frio.
Minha roupa ainda está ensopada.
Ela inspira devagar e sorri para mim, como se quisesse mudar o teor triste da conversa.
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