Capítulo 10 - AURORA - Parte I
"Tenho andado distraído
Impaciente e indecisoE ainda estou confuso, só que agora é diferenteEstou tão tranquilo e tão contente"
Legião Urbana – Quase sem querer
Assim que acabei de mostrar a Casa Fontenelle para Filipe, me senti perdida. Um desespero bateu forte em meu peito.
Se eu voltasse para casa, Otto falaria mais uma vez sobre o seu testamento. Se eu fosse para o Bistrô do Pablo, iria perceber o enorme esforço dele de tentar esquecer que eu rejeitei seu pedido de casamento. Giulia ainda teria bastante trabalho por aqui e eu também não poderia me enfurnar em uma das salas da vinícola sem que Otto soubesse.
Por sorte Filipe aceita a ideia louca de irmos ao Lote 12.
Filipe se tornara a minha primeira opção de fugir do caos.
Assim que saímos do prédio percebemos como o tempo havia mudado. As nuvens estavam carregadas e um vento gelado esvoaça meus cabelos.
Olho para Filipe e ele ri, sacudindo o casaco na mão.
— Esqueci que o tempo daqui é bipolar — digo.
Entramos no Sun e partimos em direção ao Lote 12.
O local não é aberto para os turistas e somente pessoas específicas colhem as uvas naquele hectare. Otto deixa essa regra bastante clara.
— Eu só fui até lá uma vez — falo. Pensando alto.
— Sério?
Faço que sim enquanto dirijo.
— Otto não gosta que ninguém vá.
— E devemos ir?
— É. Acho que posso fazer isso.
Sem desviar da estrada, sinto seus olhos em mim.
— É secreto ou...
— Não. Acho que ele vê mais como um lugar sagrado. Ali tem toda a história de gerações. Tem a primeira casa construída por Giuseppe, a casa de pedra. O prefeito até tentou que o lugar se tornasse patrimônio da cidade, mas Otto nem cogitou a possibilidade.
— Foi onde toda a história da vinícola começou — comenta.
— Sim. Minha mãe conta que Elena, a falecida esposa de Otto amava aquele lugar e então fez um belo jardim que, depois da morte prematura do filho Lorenzo, se tornou praticamente a sua casa. Ela morreu poucos anos depois. Acho que Otto tem uma mistura de sentimentos por aquele lugar.
— É compreensível.
— É sim.
Algum tempo depois adentramos na estrada que vai direto para o Lote 12. É uma estrada de terra batida bastante sinuosa. Um tipo de terreno horroroso para um carro antigo. Eu deveria ter vindo com o novo.
Filipe se segura no banco enquanto o Sun sacode.
Quando chegamos, vejo o real estado do lugar. De imediato, percebo algumas parreiras que emolduram a frente da casa, secas. O pequeno açude ao lado está tomado pelo matagal, juntamente com o pequeno deck de madeira, pouco se vê do banco de madeira no fim dele. O jardim de Elena não existe mais.
As janelas e porta de madeira da antiga casa de pedra, de dois andares, pelo menos, estão no lugar, mas verifico a falta de algumas telhas que o vento pode ter carregado.
— Otto me trouxe aqui uma vez — conto, alisando as parreiras secas, sentindo por elas. — Eu ainda era pequena, lembro que nunca havia visto tantas cores em um só lugar.
— Estão mortas?
— O quê?
Ele aponta para a parreira em minha mão.
— Não. Secas. Não cuidaram delas. Otto deve ter mandado não chegarem perto.
Enquanto agacho, analisando o solo e as parreiras para verificar o estado dela, Filipe vai para frente da casa e fica parado.
— É uma pena ver esse lugar assim, tão abandonado.
Mesmo sabendo que Otto não vinha mais aqui, pensei que tivesse dado a ordem para alguém manter esse lugar do jeito que era. Mas não. Ele desistiu.
— Eu consigo imaginar esse lugar colorido — Filipe fala, sem olhar para trás.
Solto a raiz da planta e me levanto, sacudindo a mão e limpando o resquício da terra na calça. Ando até ele e fico ao seu lado, vendo as pedras de tamanhos diferentes encaixadas de forma perfeita na construção da casa. Era realmente uma arquitetura incrível.
No rodapé externo, nenhuma flor. Nenhuma cor. Apenas barro sujando as paredes.
— Consegue mesmo? — pergunto e ele me olha.
Viro-me e me deparo com o seu rosto sendo banhado pelo pôr-do-sol que encontrou uma brecha sobre as nuvens carregadas.
E ele fica ainda mais perfeito. Seus olhos azuis transluzem com o efeito.
Desfazendo o olhar e os pensamentos, viro-me para o outro lado, indo em direção ao açude.
— Você é otimista, Filipe.
Ouço seus passos atrás de mim.
— Eu já fui mais. Eu me obrigava, pela minha mãe.
— Hum. Ela deve ser uma ótima pessoa.
— Foi. Ela faleceu há alguns meses.
Viro para ele.
— Sinto muito.
— Está tudo bem.
— Eu perdi meu pai também, mas eu ainda era criança.
— Eu sei, você me contou.
— Contei?
— Quando cheguei, lembra? Contou sobre a sua flor de Lótus.
Logo seguro meu pingente. O que carrego todos os dias em meu pescoço.
Começo a rir com o que acabo de lembrar. Um sorriso saudoso.
— O que foi? — pergunta ele.
— Eu sempre imaginava que quando voltasse aqui veria uma flor de lótus no meio desse açude — aponto para o lugar onde não existe nada além de mato sobre a água. — Acho que posso ter sonhado com isso algumas vezes.
Sem hesitar, ele vem ao meu lado.
— Ela está ali, não está vendo?
O quê?
Cerro o meu olhar e não vejo nada.
Segurando meu ombro esquerdo, ele agacha até ficar com a cabeça rente a minha. Sinto sua respiração próxima e meu coração parece mudar de ritmo.
— Ali... — Ele pega a minha mão devagar, pega meu dedo indicador e o aponta para o meio do açude. Em um desenho imaginário, ele traça cada pétala de uma flor de Lótus, com uma delicadeza inexplicável.
Como um passe de mágica, ali está a flor de Lótus em tons de rosa como sempre imaginei.
Meu coração dispara.
— Uma vez ouvi que podemos imaginar a felicidade quando não podemos tê-la — ele sussurra em meu ouvido. — É só uma questão de ponto de vista.
Meus olhos lacrimejam e viro meu rosto em sua direção.
Enquanto eu o olho, inebriada, vejo seus olhos pairarem em meus lábios.
Um repentino clarão me faz retomar a razão e, sem querer ser rude demais, desfaço a conexão das nossas mãos. Sorrio o máximo que posso, para que não fique um clima estranho.
Em seguida ouvimos o trovão e o céu escurece em segundos. O vento fica ainda mais forte e logo sentimos os primeiros pingos d'água.
Outro raio cai próximo e a tempestade resolve desabar com tudo.
— Vem! — grito e puxo a sua mão.
continua...
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