░VEADO░
I
Na semana entre a Páscoa e o feriado de Tiradentes, Nilo Romano foi manchete em todos os jornais do Brasil. Tudo porque não o haviam deixado desembarcar nos Estados Unidos, alegando ser ele um elemento perigoso à sociedade, com possíveis envolvimentos com tráfico de drogas e formação de quadrilha. Irritado, voltou ao país em pleno feriado.
— Onde já se viu uma coisa dessas? Tá certo que têm uns quarenta e tantos processos correndo contra mim na justiça, mas são todos porque vivo da contravenção, não são porque matei ou roubei.
Jorge Fontana não queria tomar partido:
— Essa preocupação toda dos americanos deve ser em função do que está acontecendo no Rio de Janeiro. A repercussão tem sido muito negativa para a imagem de vocês, pois é a primeira vez que bicheiros vão parar na cadeia.
— Mas o caso lá é outro — argumentou Nilo. — A juíza que os prendeu alegou formação de quadrilha e tráfico, não tem nada a ver com o bicho, em si. O jogo do bicho é ilegal, mas não faz mal a ninguém.
— Há quem diga que eles continuam comandando tudo de dentro da prisão.
— Isso, com certeza!
Jorge tomou um gole de seu café:
— Parece que o Exército tem um relatório que revela que o primeiro contato entre os bicheiros do Rio e os traficantes foi em 1981. Talvez a solução seja a legalização do jogo. Aliás, teve uma época em que quiseram legalizar, lembra?
Nilo riu:
— Lembro, claro, mas nunca vão conseguir e não há interesse, ia perder a graça, se entende o quero dizer. E aposto que não ia ser tão organizado.
Nilo tomou mais um gole de sua água com gás:
— Outro dia o Ministro da Justiça disse que a Caixa¹ tem condições de bancar o jogo. Seria uma espécie de estatização, mas eu pergunto: o que aconteceria com as seiscentas mil pessoas que estão ligadas ao bicho no país todo? Desemprego em massa? Eu mesmo respondo: ia ter uma revolução! Já pensou? Uma revolução civil por causa do jogo do bicho? Ia ser engraçado.
— Parece mesmo quase impossível empregar toda essa gente.
— Claro que é! O estado está falido e você acha que vão querer se meter numa roubada dessas?
— Zooteca, acho que esse foi o nome que ventilaram.
— Duvido que o Congresso aprove algo assim. Esquece.
— Quanto a esse problema do desembarque, quer que o ajude?
— Não, obrigado, já tenho advogados cuidando do caso.
E aquela parecia ser mesmo a semana dos bicheiros. Não bastassem os escândalos e prisões no Rio de Janeiro e o não desembarque de Nilo nos Estados Unidos, além de toda a investigação que corria relativa às mortes de General e Felipe, um novo fato ocorreu: Gomes foi preso.
Não tendo comparecido ao Deic, desrespeitando a intimação feita por Basílio — e estando escondido, sua situação complicou-se ainda mais quando a polícia descobriu que dois dias depois da morte de General, ele tinha vendido um carro por uma ninharia. Localizado e reconhecido por testemunhas, o carro teria sido usado pelo homem que atirara mortalmente em General, muito provavelmente o próprio Gomes.
Gomes era um sujeito baixinho e carrancudo, usava um desodorante de odor insuportável e adorava goma de mascar. Detido, dizia-se inocente das acusações:
— Eu juro que não matei o General. Tenho um álibi.
O delegado Basílio vinha sofrendo pressões do Secretário de Segurança para acelerar as investigações:
— Correção, você tinha um álibi. A mulher com quem você disse estar, já confessou que foi paga para mentir.
— O quê? Aquela desgraçada fez isso? E vão acreditar nela?
Basílio o ignorou:
— Gomes, já era! Você tinha motivos, seu carro foi reconhecido e seu álibi forjado. A prisão preventiva já está decretada e você vai ficar sob custódia, até esclarecermos todo o caso. A melhor coisa que faz é confessar tudo de uma vez.
— Confessar? Confessar o quê? Não fiz nada!
Basílio novamente não lhe deu bola. Gomes suava frio e toda aquela pose de machão caía por terra. Justamente ele, que gostava de bater na mulher — a esposa já registrara várias queixas; e que gostava também de dar surra nos filhos — já fora preso por isso, agora estava morrendo de medo de ir parar na detenção e virar novidade entre os detentos, principalmente se soubessem o que ele fazia em casa com a família.
Tinha sido ele, sim! Matara o General e não se arrependia disso. Odiava aquele barrigudo metido a besta. Quantos cambistas ele não perdera para aquele miserável? Quantos pontos de aposta o General não lhe tomara, utilizando-se dos métodos mais baixos possíveis?
Ateara fogo nos chalés, sim! E se pudesse, teria ateado fogo na própria casa do desgraçado. Era autor também dos atentados contra os Patrocínio, pois não tolerava ninguém atravessando seu caminho. Agora, quanto a Felipe Torres, aquilo não procedia. Nilo Romano nunca mexera com ele.
II
No feriado de Tiradentes, após o término da peça "O Mar não está pra Peixe", Jorge procurou Helena nos camarins. Teve que esperar algum tempo, até que ela trocasse de roupa e retirasse a maquiagem. Vestia uma camiseta com a imagem de um cervo, onde se lia: "Liberdade e Vida".
O cervo, como símbolo presente em algumas tradições religiosas, simbolizando a pureza primordial, associado à renovação cíclica e ao renascimento, era uma figura bem apropriada para se associar à imagem da irmã de Larissa.
— Queria parabenizá-la pela atuação. Foi ótima!
— Obrigada, Jorge, mas... vamos conversar em outro lugar?
Voltaram ao auditório, já vazio, e sentaram-se em meio à imensidão de cadeiras.
— Então é você quem está investigando a morte de Felipe? Larissa me falou. Deve ser interessante ser detetive.
— No fundo, sou advogado, muito embora os advogados geralmente atuem como verdadeiros investigadores. Espero ter sucesso.
— Sinto que você tem mais capacidade do que quer transmitir. Faz parte do jogo? Parecer tolo para arrancar mais dos suspeitos? Parecido com o tenente Columbo, da televisão?
Ele se limitou a sorrir. Ela perguntou:
— Tudo que sei, quase nada, já falei para o delegado. Quer saber algo específico?
— Sua opinião sobre Felipe Torres e sua irmã.
— Sinceramente? Uma relação tempestuosa e confusa. Até hoje não sei se realmente se amavam ou se era apenas uma espécie de obsessão da parte dele; e da parte dela uma insatisfação geral com a mesmice de sua vida, uma válvula de escape que lhe apareceu.
— Seu pai sempre foi contra a relação dos dois, pelo que me falou. — Jorge tocara no ponto nevrálgico.
— Verdade, mas é que meu pai é um reacionário, se quer saber, muito mais que um conservador, um legítimo representante do sistema patriarcal machista. Nesse modelo paternalista, em que o homem comanda e a mulher sempre se põe submissa às vontades masculinas, Henrique surgiu como um príncipe encantado, não para Larissa, mas para o 'seu Ivan', que viu nele o genro ideal: pacato, subserviente, religioso e militar, tudo o que ele sempre sonhou para a filha. Aí foi só fazer a cabeça dela. Quanto ao Felipe, ela sempre gostou dele, mas também tinha prazer em fazê-lo de bobo, nisso ela errou, e não foi culpa do meu pai. Aliado a isso, Felipe também era muito imaturo. Enfim, foi uma conjunção de fatores, mas meu pai contribuiu muito para que os dois não ficassem juntos já na juventude. Sempre ouvi ele dizer: "Felipe não é o homem certo para Larissa", e repetia isso tal qual um mantra. — Helena bocejou. — Será que isso que falei pode ajudar em alguma coisa?
— Sempre surge algo, mesmo nas conversas despretensiosas.
— Tomara, só espero não estar botando alguém em uma fria, pois apesar de tudo, os amo a todos. — Helena bocejou novamente, como a convidar que encerrassem a conversa por ali.
III
Na segunda-feira, 23, após o feriado, a bela Carla chegou ao Deic temerosa. Que história era aquela de prestar depoimento? Precavida, resolveu ir acompanhada de um advogado.
— Jorge Fontana? Não acredito! Não vá me dizer que...
— Exatamente, delegado. Carla Moreira também é minha cliente. Estávamos conversando em sua casa, quando ela recebeu a intimação e daí ofereci meus serviços.
Basílio não conseguiu conter o sorriso:
— O mesmo truque de novo?
Jorge limitou-se a um maroto piscar de olho, enquanto Basílio pedia que se sentassem. Carla, mesmo tendo sido avisada para se manter calma, não se controlou:
— O que vocês querem de mim?
Basílio percebeu logo que a moça era de fato temperamental:
— Qual era o seu relacionamento com Felipe?
— Nós fomos namorados.
— Quanto tempo estiveram juntos?
— Até antes da minha viagem, dois meses.
— Quando viajou?
— Uma semana depois de ele ir para Ilhabela.
Perpassou pela mente de Basílio que Felipe não perdia tempo em relação às mulheres, uma vez que seis meses depois da morte de Ângela, ele já estava com a Carla. E depois da Carla, tinha havido Larissa. Mal sabia ele, contudo, sobre Cecília.
— Quando foi que ele terminou com você?
— Logo que voltei da Bahia e tudo por causa daquela vagabunda, como é mesmo o nome dela? A mulher do major.
— Larissa.
— Então, ele me deu o fora quando voltei de Salvador, por causa dessa aí.
Basílio decidiu investir logo:
— Sabemos que você esteve com Felipe algum tempo antes de ele morrer. Encontraram-se no estacionamento da academia "Corpo a Corpo", onde, segundo a dona e gerente do local, Leila Camargo, discutiram. O que você fez depois? Esperou que ele saísse, foi atrás dele e o matou?
Jorge segurou o braço da moça, na intenção de que ela não respondesse à pergunta:
— Não pode fazer essas insinuações, delegado. Sabe disso!
Carla não esperou que o delegado retrucasse:
— Isso é um absurdo! Eu não matei o Felipe!
Basílio prosseguiu:
— Você confirma que esteve com ele e que discutiram no estacionamento da academia "Corpo a Corpo" antes de ele ser morto?
Ela olhou para Jorge, que fez um sinal de positivo.
— Confirmo.
— Quando saiu dali, para onde foi?
— Resolvi esquecer de vez o Felipe e saí, sem rumo. Entrei num ônibus e depois resolvi ir ao Shopping Eldorado, na Rebouças. Cheguei em casa por volta das seis. Sei que não tenho álibi, mas eu juro que não o matei.
Basílio também sabia do entrevero dela com Helena e Larissa, ocorrido no crematório da Vila Alpina, mas resolveu não entrar no assunto, embora aquela já fosse uma reincidência, mostrando que a moça era mesmo explosiva. Liberaram-na, avisando-a que poderia ser intimada a qualquer momento.
Madeira perguntou ao Basílio, quando Carla e Jorge já tinham ido embora:
— Será que foi ela?
— Carla é esbelta e jovem, pularia aquele muro com muita facilidade. Mas e a arma? Onde a teria arrumado? Não consta nenhuma arma registrada em seu nome.
— É muito fácil arrumar uma arma fria, hoje em dia.
— Sem dúvida.
— Basílio, estive pensando... Será que Nilo Romano não tem algo a ver com a história?
Basílio encarou o assistente, surpreso:
— E por que teria?
— E se Felipe o passou para trás em algum negócio, já pensou nisso?
— É uma ideia razoável, e com certeza Nilo não pensaria duas vezes, caso descobrisse uma traição da parte do genro, mas por que então o bicheiro teria contratado Jorge Fontana para investigar? Estou mais propenso a dizer que foi mesmo o Gomes.
Basílio permaneceu algum tempo em silêncio, depois disse:
— Felipe saiu da academia por volta das 16h55, sendo que a academia fica na rua Cunha Gago, muito perto da Joaquim Antunes. De carro, levou uns cinco minutos até o edifício Gaivotas. Vamos supor que o Gomes estivesse à espreita, esperando que Felipe entrasse. Assim, esgueirou-se pela casa vizinha, subiu ao apartamento e o matou, depois aguardou uma oportunidade para fugir, talvez (e o mais provável), com a ajuda do Samuel. Mesmo assim, ainda não há nenhum motivo evidente para que cometesse esse crime, afinal, apesar da guerra na contravenção, não existem indícios de que Nilo ou Felipe tivessem qualquer desentendimento com o Gomes. O desafeto principal do Gomes sempre foi o General, seguido dos Patrocínio.
Madeira lembrou-se de uma pergunta considerada crucial, feita por Basílio logo no primeiro dia de investigação: "A vítima conhecia o assassino"? Poucas pessoas possuíam a chave do apartamento: Larissa, Daniel, o próprio Nilo, mas em qualquer outro caso, Felipe teria que ter aberto a porta e só o faria a um conhecido, ainda mais estando preocupado com ameaças. Não havia evidências, contudo, de que Gomes conhecesse ou tivesse intimidade com Felipe Torres.
IV
Havia quarenta e quatro dias que Felipe fora assassinado e vinte e quatro que Nilo Romano contratara Jorge Fontana. Dedicado que era, incansável na busca da verdade, Jorge encontrava-se em seu escritório meditando sobre o assunto. Por sua mente fervilhavam ideias mirabolantes, nas quais nem ele mesmo acreditava, mas o rumo que seus pensamentos tomavam era essencialmente lógico e embasado nos fatos.
Pensava no telefonema do dia 13 de março, o dia do crime, ocorrido às 16h20: a ligação para o CPOR, realizada de um orelhão a 150 metros do edifício Gaivotas, quando dona Joana chegou ao escritório.
— Olá, dona Joana, tudo bem? Sente-se, por favor. Achei estranha a sua ligação pedindo um horário comigo.
Joana estava afogueada:
— Sabe, seu Jorge, eu não sabia se vinha ou não, mas resolvi vir. Preciso contar uma coisa ao senhor, aliás, preciso da sua orientação.
— Pois não, sou todo ouvidos. Bebe alguma coisa?
Joana, depois de tomar um bom copo d'água, e para surpresa do advogado, revelou o segredo do marido. Jorge imaginou que Ivan, como um militar em 'guerra', consideraria aquele um ato de traição.
— Não tem medo de prejudicar seu marido?
— Tenho, mas acho que esconder vai ser pior. Eu sei que ele não fez nada de errado, acredito nele e gostaria que o senhor convencesse ele a contar tudo para a polícia, o que acha?
Jorge refletiu demoradamente e por fim deu um parecer:
— Se ele é inocente, ele mesmo deveria ter contado, mas é militar e sabe que as coisas não funcionam bem assim. Que tal deixarmos as investigações correrem, talvez não seja nem preciso a polícia saber.
— Será?
— Eu acho que sim.
Joana, dentro de suas possibilidades de entendimento, ponderou que seria lógico acatar a sugestão, uma vez que partia de uma pessoa muito experiente.
— Está bem, seu Jorge... Quanto lhe devo?
— Ora, dona Joana, não me deve nada. Eu a ouvi como amigo e foi um prazer recebê-la aqui.
Ela ficou feliz em saber que já fazia parte do círculo de amizades de alguém tão importante:
— Puxa! Agradeço. Muito obrigado, seu Jorge.
— Por nada.
Jorge, no entanto, entendia como grave aquela revelação. No momento certo, o delegado Basílio precisaria ser informado.
Bruno quebrou o silêncio:
— Estive pensando... Não teria o assassino entrado bem antes no prédio, um ou dois dias antes? — Bruno quase falava sozinho, embora Jorge tivesse escutado a pergunta.
— Acho improvável — disse ele. — Seria muito mais arriscado esperar por horas o momento certo para o bote, e depois, a polícia investigou tudo junto aos demais porteiros e nenhum deles notou qualquer coisa de anormal por aqueles dias, sendo a única exceção o tal 'corretor de imóveis' da história do Samuel, mas o mesmo não permaneceu no prédio e o fato ocorreu um dia antes do crime.
Depois de meditar mais um pouco, Jorge fez uma observação interessante:
— Digamos que o Gomes quisesse conhecer o prédio por dentro, para depois entrar escondido... Nada melhor do que enviar um falso corretor de imóveis, concorda?
— Excelente ideia, Jorge, mas Felipe teria caído nessa? Se Nilo o orientou a ficar na Fortaleza, por que ele se deslocaria ao Gaivotas apenas para atender a um mero corretor? Não deixaria para outro dia?
— Tem razão. Bruno, que tal unirmos esforços com o delegado Basílio? Estive pensando em ligar para ele.
— Será que ele aceitaria?
— Não custa tentar.
Pediu à secretária que ligasse para o delegado.
— Basílio? É Jorge Fontana. Algum progresso no caso Torres? Não? Pensei que poderíamos baixar as armas e erguer a bandeira branca, o que acha? A finalidade? Ajuda mútua
Houve um silêncio relativamente demorado do outro lado da linha, até que o delegado respondeu:
— Está certo. Aguardo você amanhã às nove, aqui no Deic.
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¹Caixa Econômica Federal (CEF).
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