░VACA░
Domingo, 29 de abril de 1990.
I
— Pai! Pai!
Nilo levantou-se e correu até a porta do quarto, abrindo-a com urgência. Sua esposa tentava segui-lo, ainda procurando seu par de chinelos.
— Ela está tendo aqueles pesadelos de novo?
— Sim — respondeu Nilo.
O pai saiu do quarto feito um raio e encontrou a filha parada no corredor, encostada à parede. Nessas ocasiões, Ângela agia como sonâmbula, até despertar e perceber onde estava. Segurava um cobertor nas mãos.
— Pai, eles querem me pegar...
Nilo abraçou-a com força:
— Calma, filha. Ninguém vai te machucar. Eu prometo. É só um pesadelo.
Ângela despertava aos poucos e não raro desabava em lágrimas, lembrando-se vivamente do ano de 1971 e de sua prisão no Dops.
Foi revivendo esses momentos, de triste memória junto à filha, que Nilo entrou no corredor que levava ao salão de festas do edifício Gaivotas, acompanhado de Bruno Pereira de Souza Lobo e Jorge Fontana. Ao tomar conhecimento de que Ivan Mendes estaria na reunião, não houve como não retroceder no tempo e lembrar-se de que o pai de Larissa participara da repressão ao protesto "Abaixo a Ditatura", em 1971, ocorrido na avenida Angélica. Assim, em poucos instantes, ele estaria frente a frente com um dos agressores de Ângela.
No mesmo instante em que Nilo e os sócios da Fontana Lobo adentravam o salão, outro trio desembarcou de um automóvel, defronte ao prédio.
— Já estamos atrasadas — disse Cecília a Helena, que não encontrava o dinheiro para pagar o táxi. — Anda, tia!
— O que será que o tal Jorge tem de tão importante para nos dizer, em pleno domingo à tarde? — indagou Daniel.
— Não sei, mas se quisermos saber é melhor nos apressarmos — emendou Helena, quando finalmente conseguiu pagar a corrida. — Pode ficar com o troco, moço. Hoje estou boazinha.
Logo o salão estava repleto e os convidados em compasso de espera: Larissa e Henrique; Ivan e Joana; Daniel e Cecília; Flávio e Alessandra; Jairo; o delegado Basílio e seu fiel escudeiro, Madeira; e também o intrépido Osvaldo, acompanhado do porteiro Samuel. Carla fora chamada, mas declinara do convite.
— Desculpem-me o atraso.
— Sr. Fontana, já faz quarenta minutos que estamos esperando — reclamou Henrique, referindo-se a ele próprio, ao filho e à esposa, os primeiros a chegarem.
— Sinto muito, tive um contratempo, mas vamos logo ao que nos trouxe aqui. Estão todos aí? — Fez um repasse mental. — Sim, estão. Bem, chamei todos vocês para esclarecer algumas coisas a respeito da morte de Felipe Torres.
O delegado Basílio, sentado próximo à porta de vidro que dava para a varanda, cofiou o espesso bigode:
— Espero que seja uma reunião tão interessante quanto a do caso Arautra.
— Prometo que será, delegado.
— Pretende nos contar quem matou Felipe? — perguntou Larissa.
— Quem sabe...
Houve um silêncio sepulcral, durando infindáveis segundos, quando então Ivan fitou Jorge com profundidade:
— Está querendo insinuar que o assassino é um de nós?
— Talvez...
E Jorge observou bem o generalizado nervosismo, em especial o de Ivan. As pessoas, as situações, o local, até poderiam ser diferentes, mas as reações eram sempre as mesmas e assim parecia estar revendo as expressões dos integrantes da família Arautra, há dois anos, quando os reunirá em condição parecida numa casa no bairro da Penha. Havia um clima tenso no ar, pairando sobre as mentes daqueles entre os quais poderia haver um assassino. Samuel preocupou-se. Osvaldo, no entanto, estava achando tudo fascinante. Ele e o porteiro permaneciam quietos, próximos da copa. Nisso, entrou pela porta, afogueada, a bela Carla:
— Olá, Jorge, desculpe chegar tão tarde. Já começou? — perguntou, observando a sala e fixando-se nas poucas pessoas que conhecia: um aceno a Bruno e aos representantes do Deic; depois, um fulminante e mortal olhar para as irmãs Larissa e Helena.
Jorge perguntou:
— Ora, Carla, você não disse que não vinha? Mesmo assim deixei seu nome com o porteiro.
— Ainda bem, pois mudei de ideia e não podia perder isso por nada nesse mundo.
Ajeitou-se numa cadeira, bem longe das irmãs Oliveira. Jorge, então, iniciou:
— Desde o início cristalizou-se uma ideia: a de que alguém, tendo entrado na casa vizinha e utilizando-se de uma pilha de tijolos, invadiu o edifício Gaivotas para matar Felipe Torres. Tal intruso teria se esgueirado justamente pela varanda deste salão, oculto atrás da mureta guarda-corpo — e apontou para a porta próxima ao delegado —, daí subiu ao apartamento, matou Felipe e saiu, sem ser visto. Outro ponto cristalizado: o motivo! Felipe teria sido vítima de uma vingança realizada pelos rivais de Nilo Romano na prática do jogo do bicho, sendo que a maior suspeita recaiu sobre o bicheiro Gomes, no momento preso pela morte de General (e também por tentativa de homicídio de Patrocínio Filho)...
... No dia treze de março, às 20h30, Larissa Mendes de Oliveira chegou ao edifício Gaivotas indagando ao porteiro se Felipe já tinha chegado. Ele disse que sim e ela então subiu sem ser anunciada. Subiu pelo elevador social (lado ímpar) e quando chegou ao nono andar, abriu a porta do 91 (possuía a chave). Encontrou Felipe Torres estirado no chão da cozinha com um tiro fatal no coração, de arma calibre 22. No apartamento nenhum sinal de luta, nem de latrocínio. Mesmo constatando que Felipe estava morto, médica que é, chamou uma ambulância e depois desceu rapidamente à portaria, onde ela e Samuel comunicaram ao zelador do ocorrido. Assim, seu Osvaldo ligou para a polícia...
... Segundo o depoimento do porteiro Samuel, Felipe chegou ao prédio por volta de 17h00 e daqui não saiu senão morto. Samuel também disse que durante o período de 17h00 a 20h30 ninguém procurou o genro de Nilo e muito menos alguém de fora subiu ao apartamento, não havendo quaisquer indícios de que um morador do prédio pudesse ser o assassino. Dos aqui presentes, pessoa de fora, apenas Helena esteve no edifício e como bem sabemos, veio buscar o carro da irmã a seu pedido. Daqui se dirigiu para o consultório de Larissa e as duas foram ao supermercado, havendo testemunhas de que Helena não subiu a este apartamento. Após as compras, Larissa tomou um táxi e veio ela própria para o Gaivotas, para se encontrar com Felipe. Pois bem: a que conclusões nos levaram todas essas informações?
... Primeira: à teoria que envolve a pilha de tijolos, com um intruso desconhecido entrando sorrateiramente no prédio. Segunda: à teoria de que Samuel mentiu para facilitar a entrada de alguém no edifício, talvez o próprio Gomes, uma vez que os dois são muito próximos (foram criados juntos).
Samuel estava aflito, mas confiava em Jorge, que seguiu:
— Não nos restava muita coisa além dessas duas opções e nelas, o motivo seria o mesmo: guerra entre os banqueiros do jogo do bicho. Esse motivo, porém, nunca convenceu à polícia, tampouco a mim, uma vez que o "modus operandi" dos bicheiros é diferente: abordam na rua, atiram e fogem. Assim, as peculiaridades desse crime sempre nos guindavam a buscar uma via alternativa, fora do metiê da contravenção, e todos já sabem qual foi a via escolhida pela imprensa, a despeito de seu álibi irrefutável: Henrique!
Olhou a todos e como o silêncio ainda reinasse absoluto, seguiu:
— Façamos uma digressão...
... Quando de um enlace matrimonial, quase sempre ouvimos os padres dizerem: "Até que a morte os separe". Declarando isso, pretendem eles que a união dos noivos seja indissolúvel, afinal de contas, de acordo com a crença cristã (e aos olhos de Deus) somente a morte deveria separar um casal. "O que Deus uniu o homem não separe", teria dito Jesus. Contudo, pergunto-me, e aquilo que Deus não uniu, o homem pode (ou deve) separar?
... O adultério, de acordo com o Cristianismo, não caracteriza uma união abençoada por Deus, portanto, há de se concluir que seja passível de imediata dissolução em favor do real matrimônio...
... Que permaneçam casados, Henrique e Larissa, até que a morte — a morte natural ou acidental, os separe, mas...
... Que não permaneçam juntos, Felipe e Larissa, e que a morte — a morte violenta, os separe!
... Seria esse o real motivo desse crime, quero dizer, separar Felipe de Larissa?
Ivan olhou para Jorge intrigado com o cunho religioso daquela divagação, embora, em tese, não discordasse dela. O delegado Basílio, por sua vez, pensou: "Esse Jorge Fontana é mesmo uma figura rara, dramático como ele só".
O advogado prosseguiu:
— Esse seria o motivo de Henrique, de Ivan, de Joana, de Cecília, de Jairo e, quem sabe, até mesmo o de Helena, ou seja, por interesses diversos, embora próximos, o motivo do crime poderia ser o de afastar de uma vez por todas Felipe de Larissa, tirando-o do caminho dela para que ela pudesse, enfim, seguir sua vida junto ao marido e aos filhos. Qualquer um dos citados poderia ter empreendido a ação pensando justamente nisso: "Que a morte os separe". Todavia, esse também não poderia ser o motivo de Larissa? — Havia em sua voz uma nítida entonação de acusação.
— Eu?
— Sim, você!
— Ela? — espantou-se Carla, e sorriu, de canto de boca.
Larissa também riu:
— Até a barraqueira concorda comigo.
Carla fez menção de se levantar, mas Madeira conseguiu contê-la — estrategicamente, já que se postara de pé atrás dela. Ela olhou para trás e sorriu, não se sentindo nem um pouco incomodada com a mão máscula em seu ombro.
— É um tiro n'água essa sua linha de raciocínio — seguiu Larissa —, até porque, tal qual meu marido, eu tenho um álibi indiscutível: estava no meu consultório, terminando minha dissertação.
Jorge balançou a cabeça como quem dissesse: "Será"?
— Isso é o que você diz, mas será que foi o que realmente aconteceu? O álibi de Henrique podemos considerar indiscutível: uma turma inteira de mergulho sob sua instrução, mas e o seu? É realmente inquestionável?
Larissa indignou-se:
— Claro que é! Susana estava na recepção o tempo todo. Ou quer insinuar que ela é minha cúmplice?
— Não, mas vamos pensar um pouco... Você, trancada no consultório, a secretária na recepção... é muito pouco para um álibi, não acha?
Henrique não se conteve:
— Jorge, você só pode estar brincando. Se ela tivesse saído, a secretária a teria visto.
Ele prosseguiu, aparentemente sem dar atenção à colocação do major, contudo, claramente respondendo:
— Foi Susana quem me chamou a atenção para a possibilidade. Enquanto eu aguardava Larissa na recepção da clínica, noutro dia, a secretária comentou sobre um ladrão que entrou pelo corredor lateral, indo até os fundos e arrombando a janela do consultório (que não possui grades). Imaginemos então a cena...
... Supostamente debruçada sobre sua dissertação, Larissa precisa terminar o texto final para que a própria Susana o datilografe na manhã seguinte. Daí vejamos... A secretária, entretida com seu trabalho; os clientes, dispensados; a chefe, trancada no consultório; recomendações expressas de que não quer ser incomodada e muito menos atender a telefonemas. Atitude justificável, afinal, tem que se concentrar no texto que precisa ser entregue ao orientador na tarde seguinte. Conveniente, não? Conveniente também o fato de seu carro estar guardado na garagem do edifício Gaivotas, vaga de número 92.
Diante do exposto, as faces de Ivan começavam a ruborizar-se — e de raiva:
— Cuidado, meu jovem, veja lá o que vai dizer. Está indo por um caminho muito perigoso...
Larissa interveio, corajosamente:
— Não, pai, deixa! Quero ver até onde ele vai com tudo isso.
Jorge olhou firmemente para Larissa:
— Você chegou à clínica às 14h45, mas a ação se iniciou às 16h00: trancou a porta da sala, colocou um tênis e saiu pela janela. Da recepção não é possível ver o corredor externo, nem a frente da casa, assim, Susana não a viu sair. Já na rua, desceu a pé até a academia "Corpo a Corpo" (são trinta minutos a pé, da Cardeal Arcoverde até a Cunha Gago). Felipe lá estava, como de hábito, às terças-feiras. Como ele te disse que só estaria de volta a São Paulo na terça de manhã, você supôs que ele seguiria sua rotina habitual, no que estava certa. Aguardando uma oportunidade, subiu ao estacionamento pela rampa (que não possui manobrista ou vigia e tem acesso direto da rua) e utilizando-se de uma chave micha, obtida na chavearia de seu pai, abriu a tampa traseira do Camaro, entrou no porta-malas e fechou-se no interior. É apertado, mas você é magra e de estatura mediana, conseguiu entrar (e não o trancou, apenas o segurou por dentro). Algum tempo depois, perto das cinco horas, Felipe sai da academia e dirige-se ao edifício Gaivotas, num percurso rápido, pouco mais de um quilômetro, sem desconfiar da passageira clandestina que leva consigo. Logo ele deixa o carro na garagem e sobe para o nono andar. Você espera alguns instantes e enfim sai do porta-malas...
... O prédio possui poucos moradores, a maioria está trabalhando e ninguém te vê na garagem. A arma de Felipe ainda está no Camaro. Você então coloca no tambor as balas retiradas da cartucheira supostamente perdida do seu Ivan e sobe pela escadaria, pois não quer se arriscar a ir de elevador, muito embora no lado ímpar do prédio há três apartamentos vazios e o elevador é pouquíssimo usado durante o dia. Nesse horário, as chances de se encontrar alguém são pequenas, mas você prefere a escada, e a caminhada na rua já serviu de aquecimento para encarar nove andares, sendo que toda a 'escalada', da garagem até o hall de serviço do 91/92, não deve ter durado mais do que cinco minutos...
... Você entra no apartamento pela lavanderia (tem a chave) e sabe lidar com armas (o marido ou o pai a deve ter ensinado). Felipe está na cozinha e você então, da porta da lavanderia, atira nele, atingindo em cheio seu coração (e a essa altura deve ser aproximadamente 17h05 ou 17h10). Ele recua um passo e cai próximo da geladeira, morto.
— Já chega! — Henrique levantou-se da cadeira, mas Ivan o segurou.
— Calma, não suje suas mãos — disse o sogro. E olhou de forma fulminante para o advogado: — Termine logo essa sandice, é uma ordem.
— Sandice? Vamos ao fim, então. Surge na história um cúmplice: Helena, que vai buscar o carro na garagem do prédio. Larissa já havia descido à garagem novamente, pela escadaria, e ali abre seu próprio carro (com uma chave reserva), deitando-se no banco traseiro. Helena então pega o carro (às 17h50) e, em quinze minutos, o estaciona em frente à clínica. Enquanto Helena entra e conversa com a secretária, Larissa sai do carro, esgueira-se pelo corredor lateral e entra pela janela dos fundos. Helena finge impaciência, pois a irmã não responde (é o tempo de calçar novamente os sapatos), mas logo Larissa abre a porta. A aventura completa durou perto de duas horas, desde o instante em que Larissa saiu da clínica, até estar de volta. Sem dúvida, as horas mais difíceis da sua vida, não é mesmo Larissa?
... O crime foi digno de um mestre, pois enquanto o tiro era disparado na Joaquim Antunes, supostamente você estava em sua clínica, na Cardeal Arcoverde, debruçada sobre os livros e com uma secretária que poderia jurar que você não saíra de sua sala até sua irmã chegar, às seis da tarde. Um álibi perfeito!
Larissa soltou uma gargalhada, entremeada a um toque de desespero. Ivan, irado, pretendeu agora sim partir para o ataque físico, mas o genro lhe retribuiu o favor, contendo-o.
Ivan gritou:
— O que há, rapaz? Você ficou doido? Como ousa acusar minhas duas filhas de assassinato? Está ferrado, moço, isso sim!
Henrique engrossou a voz:
— Se está! Vai ter o Exército todo em cima, pode escrever isso!
Jorge prosseguiu:
— E o senhor, seu Ivan, onde foi naquela tarde? Fiquei sabendo que mentiu à polícia, dizendo que estava caminhando próximo de sua casa, mas na verdade esteve no edifício Gaivotas e perto da hora do crime.
— Prove! — gritou Ivan. — Aliás, prove tudo o que está dizendo.
Jorge voltou-se para Joana:
— Dona Joana, a senhora sabe, não é?
Joana começou a tremer e suar frio. Acabou se entregando:
— Seu Jorge, eu não devia ter contado ao senhor. Só queria uma opinião para ajudar o Ivan e não para complicar a vida dele.
Ivan sentiu-se traído, mas não podia dar uma bronca em Joana na frente de todos, sem levantar suspeitas. Preferiu ordenar:
— Fique quieta, Joana.
Jorge, percebendo que Ivan 'acusara o golpe', continuou:
— Seu Ivan, o senhor esteve em Pinheiros e encontrou-se com Larissa, entregando-lhe a chave micha e as balas da sua cartucheira, não foi? E isso ocorreu pouco antes de ela chegar na academia "Corpo a Corpo", estou certo? Depois, às 16h20 e de um telefone público na rua dos Pinheiros, o senhor ligou para o ramal direto na sala do seu genro, no CPOR. A ligação foi atendida pelo Capitão Macedo e assim que Henrique pegou o fone, fechando-se em sua sala, vocês conversaram por dois minutos. Qual o motivo dessa ligação? Foi para informar como ia o andamento da 'operação Pinheiros', dando conta de que o senhor e suas filhas já se encontravam muito próximo da barricada inimiga, com tudo 'positivo e operante' e para atingir o alvo?
Nilo estava perplexo:
— Jorge, mas o que significa isso? Toda a família envolvida no crime?
— É o que parece — respondeu convicto.
Havia um grande alvoroço, mas nenhum dos presentes conseguia articular uma palavra conexa que fosse, tamanha era a estupefação. Carla ria interiormente e ficava imaginando como é que Felipe fora capaz de se meter com aquela gente. Já pela mente de Cecília passava a cena do dia em que fora bem próximo ao edifício Gaivotas, no dia do crime, quando estivera decidida a tirar satisfações com Felipe pelo o que ele lhe fizera na tarde anterior, mas depois concluindo que seu ato seria de um total disparate, afinal, Felipe estivera certo ao se recusar transar com ela, pagando em seguida um táxi para que ela voltasse para casa. Seu avô sempre dizia: "Esteja atenta aos avisos de Deus". Algo, em algum momento, a alertara: "Não vá"! E assim, ela desistiu. Jairo, por sua vez, também tinha nos pensamentos a providencial recusa à estapafúrdia ideia de entrar disfarçado no prédio de Felipe, como encanador ou eletricista, a fim de tirar satisfações secretamente com ele. Ambos os irmãos, calados e atônitos, pensaram quase que ao mesmo tempo: "Que bom que desisti". Por fim, Helena, essa sim envolvida diretamente com o suposto cenário de assassinato — e ainda assim conseguindo ter a altivez de lançar um terno olhar aos 'paralisados' sobrinhos, numa total demonstração de autocontrole, declarou:
— Jorge, você está louco ou o quê? Nada disso é verdade, jamais combinei qualquer coisa com Larissa no intuito de matar Felipe. E meu pai, apesar de todas as diferenças que tenho com ele, não o vejo fazendo nada disso, ele é um homem de bem.
Ivan surpreendeu-se com as palavras da filha. Sentindo um arrepio de emoção, lágrimas surgiram em seus olhos, imaginando-se injusto com ela por ser tão duro a vida toda, mas logo seus pensamentos foram interrompidos por um grito de Larissa:
— Chega! Não aguento mais! Não aguento o peso do que fiz. Sim, é verdade, eu estive no apartamento às 17h15 daquele dia, mas encontrei Felipe morto!
Todos a olharam espantados. Ivan disse:
— Larissa, que é isso?
— Pai, ele quer incriminar todo mundo e vai conseguir.
— Mas não tem provas. Não diga mais nada!
Jorge proferiu solene:
— Engano seu, Ivan, tenho provas sim!
Houve um silêncio repentino, com ele aproveitando o ensejo:
— Acha, Larissa, que eu esperaria uma confissão sua? Pensa que não tenho como provar? Engana-se. Todo criminoso, por mais meticuloso que seja, sempre comete um erro. E você o cometeu, quando precisou ligar para o seu Osvaldo, avisando que Helena vinha buscar o carro, a única forma de você sair daqui sem ser vista. Você se esqueceu de ligar para ele, não foi, antes de sair da clínica? Daí não teve escolha, a não ser ligar do próprio local do crime. A que horas ela te ligou, seu Osvaldo?
— Pouco antes das cinco e meia da tarde.
Jorge levantou uma lista, sacudindo-a ao alto:
— Exatamente!, às 17h20. Bastou que checássemos junto à companhia telefônica para verificar que o telefonema que seu Osvaldo recebeu de Larissa partiu do apartamento 91, do edifício Gaivotas. E que do consultório, como ela afirmava, nenhuma chamada foi realizada!
Estavam todos boquiabertos, exceto o delegado Basílio, que assistia a tudo impassível. Larissa tentou salvar a irmã, bem como o pai — quiçá, o próprio marido:
— Helena nada tem a ver com isso — gritou. — Nem meu pai ou Henrique. Eles não sabiam de nada do que eu pretendia fazer. A micha estava na minha bolsa (meu pai a esqueceu um dia lá em casa). Eu sabia como usar, pois ele me explicou, um dia. E as balas eu levei as minhas mesmo.
Ivan estava desesperado:
— Larissa, pare! É isso que ele quer, que você confesse.
Ela estava resoluta:
— Chega, pai! Não tenho mais como esconder, pois ele descobriu tudo, mas não posso permitir que incrimine mais alguém.
Ivan raciocinava de forma estratégica, tentando evitar que a filha se complicasse ainda mais, porém, tinha sido pego de surpresa, sem a possibilidade de articular uma defesa — ou mesmo de planejar uma ação. Quanto a ele, de fato ligara para o CPOR na tarde do crime, avisando a Henrique que pretendia falar com Felipe na Joaquim Antunes, quando então o major disse: "Seu Ivan, pelo amor de Deus, esquece isso, não vá falar com ele, é o inimigo te atraindo, isso não vai dar certo, desista".
Jorge era muito astuto, jogara a corda para que Larissa a enroscasse no pescoço ela própria. Insuflando nela o medo de ver incriminados os familiares, forçou-a a confessar. O advogado, porém, queria saber detalhes de como ela se escondera no próprio carro:
— Se Helena não é cúmplice, como você fez? Utilizou-se do mesmo expediente do Camaro para voltar?
— Não! — reiniciou ela —, o meu carro possui três portas e tem uma parte do banco traseiro que é retrátil, para acesso ao porta-malas. Dessa forma, entrei e saí do porta-malas pelo interior do veículo.
... Quando Helena chegou na clínica, é verdade, eu saí do carro e passei pelo corredor, entrando pela janela, mas ela não sabia de nada. Deu-me uma carona totalmente inocente da minha presença...
Nilo aplaudiu:
— Uma assassina confessa.
Ivan pensou em dar-lhe um murro:
— Cale a sua boca, seu bandido miserável!
Nilo levantou-se e sua voz poderosa preencheu o ambiente:
— Vocês não valem nada! Nem pai, nem filha, nem ninguém. Você, Ivan Mendes — disse, apontando-lhe o dedo —, que posa de legítimo guardião da moral e dos bons costumes, pensa que não sei que em 1971 você e mais um bando de covardes prenderam vários estudantes, entre eles minha filha, quando protestavam contra a ditadura do governo Federal? E que depois os levaram para o Dops e os torturaram?
A contundente revelação fez Helena tomar um choque:
— Pai, é verdade isso?
— Sim, filha, é verdade.
Nilo esbravejou:
— Pois é, Helena, e você disse que ele é um homem de bem. Vinte presos e dois mortos!
Ivan tentou defender-se:
— Mas não houve nenhuma tortura física e os dois rapazes que morreram, vieram a óbito devido ao confronto com a polícia, eu não tive culpa. E só muito tempo depois que soube que sua filha estava no bolo, mas ela ficou presa só uma semana e depois foi liberada, não sofreu tortura.
Nilo emocionou-se ao lembrar de Ângela, ainda enfurecido:
— Seu miserável, acha que só tortura física é que conta? E a tortura psicológica, a humilhação, o medo de morrer? E os amigos, que ela viu serem torturados? E os gritos que vinham dos porões? Ângela tinha pesadelos constantes e você não sabe o que é ver uma filha sofrer daquele jeito... — emocionou-se, buscando respirar. — Fiz de tudo, em 86, para que você e outros policiais fossem expulsos da corporação, porém, sem sucesso.
O delegado Basílio, que até então estivera em silêncio, pediu a palavra:
— Senhores, por favor! Um minuto da sua atenção, peço calma a todos. Não é hora de lavarmos roupa suja, até porque, Nilo, você bem sabe, ditadura e contravenção sempre estiveram de mãos dadas, principalmente no Rio de Janeiro, assim, não cabe agora instauramos aqui um inquérito sobre a questão, senão serei obrigado a lembrar de um ditado que minha mãe sempre usa: "É o rasgado falando do furado"...
... Vamos manter o foco. Larissa acabou de confessar que esteve no prédio, no dia do crime e confessou também como fez para entrar e sair sem ser vista. Isso posto, devo lembrar algo que ela também disse: "Encontrei Felipe morto". Portanto, cumpre responder a duas perguntas: a) Ela realmente pretendeu matar Felipe, entrando aqui clandestinamente? b) Se não matou Felipe, quem o fez?
Nilo buscou acalmar-se, mas manteve a postura firme:
— Delegado, se ela fez tudo isso que diz ter feito, é claro que ela é a assassina.
— Não! — bradou Larissa. — Ele já estava morto quando cheguei!
Basílio pediu novamente a atenção, dado ao burburinho e ânimos exaltados:
— Calma, por favor, calma. Afinal, o que você veio fazer aqui, Larissa?
Helena, que ainda buscava manter o equilíbrio emocional, diante de tantas revelações — e tendo já socorrido Joana, que quase desmaiara, pegou para Larissa um copo d'água.
— Pegue, querida, tome devagar e depois respire fundo.
Basílio aguardou um pouco e logo ela prosseguiu:
— Eu vim para matá-lo, delegado e tudo o que fiz foi com a intenção de ter um álibi. Não sei se eu teria mesmo a coragem, na hora 'h', de atirar, mas foi o que vim fazer, confesso. Porém, quando cheguei no apartamento ele já estava morto, eu juro!
... Mas eu não podia revelar isso naquela hora e assim liguei para o seu Osvaldo, pois de fato havia esquecido de avisar sobre Helena, e ela vir buscar o carro seria a única forma de eu sair escondida. Mas também, eu não podia deixar de avisar sobre a morte de Felipe e por isso voltei e fingi que o encontrei.
Osvaldo pensou: "A velha história do criminoso que volta à cena do crime".
Jorge indagou:
— E a arma do Felipe? Onde está?
— A arma dele não sei, pois trouxe a minha, e por isso mesmo não precisaria da cartucheira do meu pai.
Cecília então perguntou:
— Mas por quê, mãe? Por que você fez tudo isso?
Naquele instante, Jorge pediu que Flávio contasse o que sabia:
— Flávio, por favor, pode ajudar a responder a essa pergunta?
— Sim, seu Jorge.
Todos estavam atentos e curiosos. O que Flávio sabia de tão importante? Tímido, demorou um pouco a começar, mas incentivado por Alessandra, desembuchou:
— No dia 12 à tarde, segunda-feira, eu liguei para dona Larissa, sabe? Alessandra me convenceu que eu devia falar para ela sobre o dossiê.
— Que dossiê? — indagou Ivan.
— Um dossiê, encomendado pelo seu Felipe. Foi por causa do dossiê, inclusive, que dona Ângela morreu.
Estavam todos aturdidos.
— E o que continha o dossiê? — incentivou Jorge.
— Tudo sobe a vida de dona Larissa, onde ela morava, quantos filhos tinha, quem era o marido, se os pais estavam vivos, onde residiam e tudo o mais, local de trabalho, rotina, essas coisas.
— E Felipe lhe revelou alguma vez o motivo desse dossiê?
— Sim, revelou. Ele era obcecado por dona Larissa — e olhou para ela, visivelmente abalada e cabisbaixa —, mas o dossiê foi só o levantamento inicial, pois depois ele continuou investigando e descobriu que dona Larissa e a família iam para São Sebastião nas férias de janeiro. Daí bolou um plano, envolvendo o seu Maurício, o jardineiro...
— Isso é loucura, seu Felipe.
— Que nada, Flávio. O Maurício vai aguçar a curiosidade dela sobre mim, daí chego lá com o helicóptero, você vai ver, ela virá doidinha até aqui. Larissa será minha, você vai ver, e ainda vai rastejar aos meus pés. Vou também mostrar para aquele pai dela que eu é quem devia ter me casado com ela.
— Então o encontro dos dois em São Sebastião não foi por acaso? — perquiriu Basílio.
— Não, foi tudo planejado. E depois ele também contou várias mentiras, falando que era um concertista famoso...
A partir dessa declaração, Jorge pediu a Nilo um aparte:
— O que nos diz sobre isso, Nilo?
— Concertista, que nada, o máximo que Felipe conseguiu lá fora foi um emprego de pianista numa boate, nada mais. Se não fosse eu, ele não teria nem os dois apartamentos nesse prédio, aliás, herança da Ângela.
— Continue, Flávio — pediu Jorge. — O que mais?
— Depois ele ainda pediu ao Maurício para tentar encontrar o seu Henrique, lá em São Sebastião, para encher a cabeça dele de suspeitas.
E Henrique lembrava-se desse dia, com Maurício conseguindo seu intento. Não resistindo, ele próprio perguntou:
— Mas você disse que Ângela morreu por causa do dossiê... Por quê?
— Porque quando ela descobriu tudo e brigou com seu Felipe, pegou o carro muito nervosa e saiu debaixo do temporal. Foi quando derrapou na estrada e caiu no abismo.
— E onde está o dossiê?
— Está aqui! — Entregou-o a Jorge.
— Alguém mais soube disso?
Flávio olhou para Alessandra, hesitando, mas depois respondeu:
— Não, ninguém, só eu e Alessandra, ninguém mais. E claro, a dona Larissa, quando liguei para ela e contei tudo.
— No dia doze, na tarde anterior ao crime... — reiterou Jorge.
— Isso mesmo — concluiu Flávio, aliviado.
Larissa já não via e nem ouvia mais nada, o mundo lhe escapava aos sentidos. Não vira quando Joana fora novamente amparada por Helena e conduzida a uma poltrona. Não vira o pai lançar um olhar de desespero para o genro, que, por sua vez, tentava acalmar Cecília. Não vira Jairo baixar a cabeça, envergonhado por cruzar o caminho dos duros olhos de Daniel; tampouco Carla virar-se para Madeira e dizer: "Bem feito para aquele mulherengo". Seu foco dirigiu-se à filha e, por alguns instantes, os olhares delas se cruzaram, fazendo com que Cecília logo entendesse: a mãe sabia de tudo, sobre ela e Felipe. E aquele era o real motivo do crime.
Tudo havia sido muito casual, coisa do destino. Larissa não tivera clientes naquela tarde, dia doze de março, quando recebeu a ligação de Flávio. Aturdida, em um primeiro momento não acreditou, mas Flávio estava numa papelaria e de lá conseguiu enviar a ela por fax uma cópia do dossiê. Revoltada, sabia que Felipe só voltaria na terça-feira, mesmo assim, ligou para a escola e foi quando lhe disseram que ele já estava em São Paulo. Então ele mentira, mais uma vez?
Resolveu ir à escola e tirar satisfações. Com o dossiê em mãos, pegou um táxi na Cardeal Arcoverde e desceu até a Praça Panamericana. Foi então que viu: Cecília beijando Felipe! Fez o táxi encostar imediatamente e na dúvida se ia até eles ou não, viu quando entraram num Monza prata, um carro que até então ela desconhecia. "Desgraçado", pensou. "Disse que estaria em Ilhabela, somente para se encontrar com a minha própria filha"? Larissa então pediu ao taxista que os seguisse e logo percebeu que a surpresa ainda não estava completa: Felipe entrara com Cecília num motel.
Saiu dali desorientada. E ela que um dia pensara que Felipe tudo faria para não perder o amor de sua vida. "Canalha!". Quando se deu conta, estava na rua, andando sem destino. Pensou em voltar e pegar seu carro na garagem do Gaivotas, mas não se sentia em condições de dirigir. Tomou novo táxi e foi para casa, enfim. Helena ainda não havia voltado do teatro e assim ela se deitou na cama e chorou.
Felipe era um monstro. Destruíra sua realidade, destruíra seus sonhos e foi então que sentiu uma força maligna impulsionando-a. Naquela noite Helena acabou não voltando para casa, portanto, sozinha, deu guarida a pensamentos funestos. Dormiu e sonhou com o pai, que dizia:
— Não deixe o inimigo acabar com você, Larissa, acabe com ele primeiro. Não deixe por menos. Não deixe!
Foi então que tudo lhe ocorreu, todo aquele plano mirabolante e arriscado, mas tinha resolvido: iria dar um fim naquilo tudo, assassinando Felipe.
II
Jorge observou Daniel, saindo desolado para a sacada do salão de festas. Larissa fora levada pelo delegado Basílio e Henrique a acompanhara. Helena levara os pais e os sobrinhos para casa e Samuel precisava pegar no batente, feliz por finalmente estar livre de acusações e mais feliz ainda por ter acertado na centena do primeiro prêmio, tendo jogado na vaca — mas a bolada não ia ser lá grande coisa, pois havia mais de cinco os acertadores. Carla saíra quase no fim, acompanhada de Madeira e Osvaldo, por sua vez, esfuziante, deu um jeito de ficar mais um pouco.
Nilo estava confuso:
— Acredita nela, Jorge?
— Claro que não. Ela matou Felipe e agora está querendo dizer que não. Ficou revoltada com toda a história que Flávio lhe contou, por telefone, esse foi o motivo.
Bruno fez um adendo:
— Exato! E se não foi ela, quem foi? Já foi difícil colocar uma pessoa na cena do crime, que dirá duas.
Jorge concordou:
— Sim. E digo mais: ela matou Felipe e usou a arma dele, porque a dela está guardada intocada, no cofre do consultório, eu mesmo a vi. Também não acreditei na história de que não furtou a cartucheira do pai, o deve ter feito na segunda-feira à noite. Falando na arma, é exatamente isso que nos falta para fecharmos o caso com chave de ouro: temos que encontrar esse revólver!
Bruno estava esperançoso quanto àquela possibilidade:
— Amanhã bem cedo o delegado Basílio já deve ter em mãos um mandado para a polícia vasculhar a clínica e demais casas da família. Vamos encontrar! Tenho fé!
Nilo levantou-se do sofá, com dificuldade. Estava exausto:
— Meus parabéns, rapaz. — Entregou-lhe um envelope pardo: — Há um cheque bem gordo, aí.
— Obrigado, Nilo.
Ele chamou o neto, que permanecia na sacada. Daniel olhava para o horizonte, perdido em pensamentos e demorou um pouco a escutar o chamado do avô. Quando retornou à sala, cabisbaixo, perguntou:
— Jorge, como vai ser agora?
— Você e Cecília?
— É. Como vou namorar a filha da assassina do meu pai?
— Se vocês se amam de verdade, nada os vai separar, nem a morte. Dê tempo ao tempo, tudo se ajeita.
— Espero que sim.
Jorge dirigiu-se ao zelador:
— E o senhor, seu Osvaldo, não vai perguntar nada? Ficou quase o tempo todo quieto.
— Quieto, mas atento! É que não queria perder nenhum lance. Caramba, rapaz! Eu me senti um verdadeiro personagem da Agatha Christie.
— Mas... Não quer saber nada mesmo?
Osvaldo já parecia ter a pergunta na ponta da língua:
— E a tal da dissertação, ela acabou entregando?
Jorge espantou-se com a perspicácia do zelador. Era uma pergunta pertinente, sem dúvida:
— Entregou sim. O texto final, que supostamente ela escreveu das 16h00 às 18h00 do dia treze de março, foi escrito antes, em outro dia e horário. Ela fingiu escrever naquele dia, mas já o tinha pronto de antemão.
Retiraram-se dali pouco depois, deixando o edifício em que mais uma história de amor tivera um desfecho trágico.
Na noite do mesmo dia...
A figura esgueirou-se pelo corredor lateral da clínica, indo até os fundos. Forçando a veneziana com uma chave, conseguiu abrir a janela. Adentrou o recinto e procurou um local para esconder a arma. Fez-se a luz!
— Alto lá!
O delegado Basílio erguera a mão, solicitando ao intruso que parasse. Atrás dele, dois policiais:
— Alto lá, Nilo Romano. Você está preso pelo assassinato de Felipe Torres.
Nilo estava sem ação. De uma de suas mãos enluvadas escorregou a arma calibre 22, que colidiu contra o chão:
— Delegado Basílio, o que significa isso?
Enquanto um policial recolhia a arma de sobre o piso, Basílio devolveu-lhe a pergunta:
— Ora, sou eu quem quer saber: o que você faz aqui na clínica da Larissa, furtivamente à noite e com essa arma na mão?
Nilo, escaldado que era, extremamente inteligente e calmo, silenciou, apenas exigindo a presença de seu advogado. Basílio prosseguiu:
— Sente-se, pois ainda que você não queira dizer nada, um direito que tem, já eu tenho muito a lhe falar. Por favor...
Nilo sentou-se numa poltrona de vime, revestida em couro, próxima da porta. Basílio buscou a mesa de Larissa e tomou-lhe assento:
— Vamos começar... Parecia impossível que outra pessoa tivesse estado naquele apartamento, naquele dia e como disse Bruno: "Já foi difícil colocar um na cena do crime, imagine-se dois". Entretanto, deixe-me tentar...
... A sua primeira providência foi inventar a história de que precisava 'sumir' por uns tempos, convencendo Felipe Torres a ajudá-lo nesse plano. Uma vez realizado esse passo, vocês dois partem para Ilhabela num domingo de manhã, dia onze de março, com um detalhe: pedem aos caseiros que troquem o dia de serviço, a segunda-feira pelo domingo. Dessa maneira os caseiros só voltarão à mansão na quarta-feira (e há um motivo para isso, que Felipe não sabe: afastar os caseiros da casa na segunda-feira). Você deve ter dito a Felipe que precisavam de um apoio ao chegarem no domingo e assim ele ligou para o Flávio, solicitando a troca...
... Passam o domingo na casa de praia. Para Alessandra e Flavio, você só vai passar uns dias ali, isolado. Para nós, você disse que pretendia um plano de fuga que não dependia de Felipe, liberando-o para voltar sozinho a São Paulo. Para Felipe, no entanto, você diz que o tal 'plano secreto' o incluirá. Ele então espera os caseiros irem embora e dá continuidade ao combinado. Pega a lancha e parte na direção de São Sebastião, levando consigo alguém oculto: você!
... Para Felipe, o plano secreto inclui essa ação, mas não somente essa. Felipe deixa a lancha na casa de Toque-Toque Pequeno e lá pega o Monza. No carona, uma figura ilustre: Nilo Romano! Chegando a São Paulo, você se hospeda num hotel qualquer, evidentemente com nome falso (e ainda não descobrimos onde, mas é questão de tempo). Já Felipe pernoita na Fortaleza, e no dia seguinte segue para o Gaivotas no carro conversível...
... É então que o plano secreto de fuga tem prosseguimento. Disfarçado de corretor de imóveis, você entra no prédio sem ser reconhecido, mas, quando vai embora, na verdade não é você quem sai e sim Felipe. Vocês regulam na altura e igualmente disfarçado, com boné, óculos escuros e barba, a mesma roupa (e muito provavelmente um enchimento abdominal, a fim de simular a barriga já protuberante), ele sai do prédio e você fica. Felipe então dorme num hotel (também não sabemos qual, mas descobriremos)...
... No dia seguinte Felipe volta ao Gaivotas, mas como saiu a pé, precisa voltar a pé. O faz durante a troca de turno, assim Júlio pensará que ele saiu mais cedo para caminhar, durante o horário de Geovânio, e agora está voltando. O plano, daí por diante, deveria ser o de levar você oculto no carro para outro lugar. Para Felipe, uma forma brilhante de dar um nó em possíveis perseguidores teus, mas isso é o que você o fez acreditar...
... Tudo isso me ocorreu quando Bruno, em reunião que tivemos eu, ele, Jorge e Madeira, sugeriu: "E se o assassino tivesse entrado no prédio um ou dois dias antes"? A ideia parecia tola, mas acabou levando luz ao caso. Quando Felipe volta para casa, às 17h00 do dia treze, você ainda está no apartamento e o mata, usando da própria arma dele (e talvez até soubesse onde estavam guardadas as balas, as quais utilizou). Disparado o tiro, Felipe está morto, você permanece no apartamento e precisa se preparar para se evadir do local, mas algo lhe surpreende...
... Você escuta alguém abrindo a porta da lavanderia (alguém está entrando pelo hall de serviço). Você corre para a despensa e fica na espreita e vê quando Larissa entra. Até então, nada de excepcional, ela frequenta o apartamento e tem as chaves (e cabe salientar, Felipe realmente se descuidava das travas internas e Larissa sabia), mas com você perambulando entre os dois apartamentos desde domingo à noite, talvez esse o motivo das travas estarem liberadas, afinal, Larissa conseguiu abrir as duas portas naquele dia, social e de serviço, apenas com a chave, uma em cada um dos horários que lá esteve...
... Felipe está no chão, baleado. Ela então verifica seu pulso e gasta algum tempo, pensando no que fazer, o que o deixa ansioso, pois você pode ser descoberto a qualquer instante. É aí que ela liga para seu Osvaldo, ali da cozinha mesmo e finalmente vai embora, para seu alívio. Com o decorrer da investigação, você vislumbra a oportunidade de incriminá-la, quem sabe. Contrata Jorge Fontana e vai tomando as rédeas da investigação, culminando com a apresentação das chamadas telefônicas, que fornecem uma excelente prova da presença de Larissa no apartamento, no dia e na hora do crime. Bingo!
... Você não sabe exatamente como ela entrou, embora imagine como saiu, porém, tem plena certeza de que Jorge Fontana vai conseguir descobrir tudo, será questão de tempo. E culpar Larissa acaba sendo um presente que lhe caiu no colo, afinal, é a grande oportunidade de se vingar de Ivan, em face do que ele fez à tua filha. Já o Fontana trabalhou bem, não tinha em mãos nenhuma prova cabal, mas conduziu Larissa a confessar, só que tem um detalhe: ele cumpriu a primeira etapa e eu, agora, terminarei a segunda...
... Fica, contudo, ainda uma questão: como é que você saiu do edifício sem ser visto? Essa foi difícil de descobrir, embora tão à mostra (e foi uma tacada de mestre). Naquele dia eu estranhei que houvesse tanta gente da impressa no Gaivotas. Aquilo estava um tumulto. Ora: "Pau que dá em Chico, dá em Francisco", já diria meu pai. Assim, tomei para mim a ideia de consultar as chamadas telefônicas, não do apartamento 91, mas do 92, que possui linha telefônica ativa e onde você provavelmente ficou escondido boa parte do tempo (aliás, isso explica porque a geladeira foi aberta depois do tiro: você pegou algo para comer e isso fez com que os gases do disparo ficassem retidos dentro dela)...
... Bem, do 92, por volta de 20h00, partiram várias ligações para vários jornais da cidade. Utilizando-se de um aparelho emprestado do 91, você ligou para as redações, principalmente as mais sensacionalistas, dando conta de um crime, o possível assassinato de Nilo Romano. Você ainda teve sorte: Larissa voltou ao prédio e fingiu encontrar Felipe, meia hora depois, o que fez a polícia chegar rápido ao local. Assim, quando a rua estava apinhada de gente, você saiu do prédio sem ser notado (naturalmente com outro disfarce)...
... Ah, um detalhe interessante: investigando as ligações para o apartamento de Felipe, onde consta do inquérito ter ele recebido uma ameaça por telefone, não há nenhuma ligação de número que lhe fosse desconhecido. Suspeito que você mesmo ligou para ele, ameaçando-o, para incutir na mente do genro a possibilidade de um risco real (e assim convencê-lo da necessidade do plano de fuga)...
... Na sequência, você empreende uma viagem cansativa de volta a Ilhabela: de táxi até a rodoviária do Tietê; e depois de ônibus até São Sebastião, passando a madrugada deitado num canto qualquer, aguardando o ferry-boat iniciar suas operações. Assim, você entra na balsa e faz a travessia até a ilha, iniciando uma caminhada em direção à praia da Feiticeira. Digno de tirar o chapéu, e eis aí o motivo de trocar o dia de serviço dos caseiros de segunda para o domingo, pois isso lhe forneceu o tempo necessário para ir e voltar a São Paulo sem que eles soubessem que você saiu (uma vez que estariam ausentes na segunda-feira e só voltariam na quarta). Viram você no domingo e só o veriam de novo na quarta. E, na quarta, como você sabia que Flávio passaria na estrada em direção ao trabalho, seria não só sua carona de volta à metrópole, mas a confirmação de seu álibi, de que você estivera em Ilhabela o tempo todo. Fingiu estar fazendo uma tranquila caminhada, e mal sabia Flávio da aventura toda (mas quem iria desconfiar que você não estivera o tempo todo na casa de praia, ainda mais em se tratando de Nilo Romano)?
... Mas, por quê? Por que você o matou? Foi Flávio quem nos deu a chave. Ele relutou em procurar a polícia, mas mudou de ideia, e declarou que tinha contado a você um segredo sobre Felipe, e que isso poderia ter motivado você a matá-lo. Madeira chegou a pensar que seu genro te trapaceara nos negócios, mas não, não foi isso. O teu calcanhar de Aquiles sempre se chamou Ângela Romano...
... Nós orientamos o Flávio a não revelar, durante a reunião, que você sabia sobre o dossiê, isso para lhe dar a falsa sensação de segurança. Ele titubeou, quase 'entornou o caldo', mas conseguiu sustentar. Flávio também nos informou que Felipe ocultou de você o real motivo de Ângela sair naquela tempestade, mas que ele, Flávio, te contou depois, entregando o dossiê (esquecido por Felipe num canto qualquer em Ilhabela)...
... Felipe, além de ser o responsável pela morte de sua filha, embora em crime culposo, ainda buscava se envolver com a filha de Ivan Mendes, um dos torturadores de Ângela. Para piorar, Larissa, o alvo do dossiê (e filha do torturador), poderia vir a se casar com ele, desfrutando do seu dinheiro. Foi a gota d'água, e tudo isso o levou a 'despachá-lo' dessa para 'melhor'.
Nilo estava quieto e tranquilo.
— Tem algo a dizer, Nilo?
— Não!
— Bem, caso pergunte sobre as provas... Essa arma que você trazia, posso apostar, é a arma do crime. É a arma sumida do Felipe. Sua intenção, ao vir aqui, foi a de fornecer mais uma prova contra Larissa, mas saiba, eu e Jorge combinamos tudo. Ele lançou a isca e você mordeu. Sabíamos que você não iria resistir à ideia de plantar a arma aqui, ainda mais ele tendo dito que o mandado de busca e apreensão só sairia amanhã...
... Naturalmente que não me iludo, pois haverá um grande embate nos tribunais e como você é muito influente, talvez até escape ileso. E a defesa ainda tentará jogar a culpa em Larissa. Sabe, Nilo, esse é o meu primeiro caso como titular da divisão de homicídios, uma verdadeira batata quente que o Secretário de Segurança Pública, teu amigo, inclusive, jogou nas minhas mãos. Com certeza ele não imaginou esse desfecho, senão teria deixado tudo por conta do Amaral. Daqui por diante, porém, não é mais comigo, é com a Justiça.
Basílio entregou-lhe um cheque:
— Jorge pediu para lhe devolver.
Nilo riu:
— Delegado, devolva o cheque a ele. O combinado era eu pagar os honorários quando ele desvendasse o crime, e ele o desvendou, certo? Larissa matou Felipe!
Nilo levantou-se, sendo logo circundado pelos policiais, que tencionaram algemá-lo, mas Basílio fez um sinal de que não era necessário. O bicheiro disse:
— Obrigado pela gentileza. E dentro do meu direito de permanecer calado, isento-me de qualquer outro comentário.
III
Dois meses depois...
No escritório da Fontana Lobo, Jorge lia os jornais. A repercussão havia sido grande. Nilo responderia ao processo em liberdade, aguardando julgamento pelo júri popular, uma vez não tendo conseguido explicar o que fazia no consultório da médica, com a arma que matara Felipe nas mãos, após ter invadido o local à noite. Mas constituíra excelentes advogados de defesa: Jorge Fontana e Bruno Pereira de Souza Lobo, da Fontana Lobo Advogados Associados. Já Larissa sofreria processo por tentativa de homicídio, com atenuantes, uma vez que se dispusera a colaborar com a Justiça, cumprindo sua pena em regime domiciliar.
Falando em Larissa, internou-se numa casa de repouso, depois de se divorciar de Henrique, que ingressou na Eceme em busca do tão sonhado posto de coronel. Jairo ficou morando com ele. Já Cecília mudou-se em definitivo para a casa de Helena e engatou namoro firme com Daniel, mesmo a contragosto dos avós (de ambos os lados). Ivan e Joana continuaram a levar a vidinha de sempre, procurando ajudar a filha no que fosse possível, esperançosos de que ela se recuperasse e voltasse à sua vida normal. Ivan acabaria por encontrar a cartucheira, perdida dentro de um armário, sem qualquer bala falante.
E Carla Moreira? Engataria um apaixonado namoro com o investigador Madeira, havendo até planos de casamento. O duro é que ela era boa de briga, ele que se cuidasse.
Nilo conseguira, enfim, desembarcar nos Estados Unidos, dando "bananas" para os americanos. O fizera na maior cara de pau, subornando aqui e ali, mas agora era considerado foragido pela polícia brasileira, tendo em seu encalço também a Interpol. O jornalista Felipe de Albuquerque, promovido pela Folha a correspondente na América do Norte, dizia que depois do evento "EUA", Nilo fora morar em alguma ilha do Pacífico, comandando os negócios de fora do país, mas havia quem dissesse que tinha conseguido retornar ao Brasil e estaria escondido em uma nova Fortaleza. A verdade é que ninguém sabia ao certo o paradeiro dele.
Num exemplo de total ousadia, quando de sua passagem pelos Estados Unidos, no cassino Mirage, em Las Vegas, Nilo e Gastão Resende, o maior banqueiro do bicho no Rio de Janeiro — e do Brasil, firmaram um acordo de não invasão de territórios. No acordo, Nilo teria sugerido a Gastão "proteção mútua" e através dela seriam evitadas associações como as da dupla GG (General e Geraldinho). Uma divisão de territórios a serem explorados pelos banqueiros teria sido promulgada num mapa e, dessa forma, São Paulo iria poder estender seus negócios para os estados do Sul do país; e o Rio, para os do Nordeste. Assim, a paz entre os banqueiros do bicho finalmente reinou — até nova contenda.
No entanto, a vida de Nilo Romano não continuaria tão 'tranquila': anos depois, o juiz da 14ª Vara Criminal determinaria o sequestro de seus bens, baseado na apreensão de sua contabilidade, a pedido da corregedoria da Polícia Civil, medida judicial em que estaria impedida a venda ou transferência de seu patrimônio enquanto se investigasse sua origem. Se confirmada a aquisição por meios ilícitos, os bens de Nilo seriam confiscados, porém, como em todos os outros processos envolvendo bicheiros paulistas, esse seria mais um que não daria em nada.
IV
— Felipe, me ame mais uma vez, eu te peço!
Felipe pegou-a nos braços e carregou-a até a suíte nupcial. A gravata o sufocava e enquanto Larissa a retirava, delicada e suavemente, ele abraçava sua cintura, deslizando as mãos atrevidas por seu corpo, nunca antes tão desejado quanto naquele instante. Finalmente os dois estavam casados, depois de tantos percalços.
— Aceita Larissa Mendes como sua legítima esposa, até que a morte os separe?
— Sim.
Ela entrara no apartamento, naquele dia, disposta a matá-lo:
— Por que, Felipe? Por que você fez isso comigo?
— Do que você está falando?
— Da Cecília! Por que transou com ela?
— Eu não transei com ela, Larissa.
— Mas eu vi, com meus próprios olhos, vocês dois entrando no motel.
— É verdade, isso aconteceu, flertamos por alguns dias, nos beijamos algumas vezes, mas na hora eu desisti, pergunte a ela. Não tivemos nada mais íntimo, eu juro. Eu paguei um táxi e ela voltou para casa, sozinha.
— Isso é verdade?
— Claro que é! É só a você que eu amo, mais ninguém. Tive certeza disso naquela hora.
— E o dossiê?
Larissa ainda continuava com a arma apontada para ele.
— Quem lhe falou sobre isso?
— O Flávio, ele me ligou ontem e contou toda a sua armação, envolvendo até o pobre do seu Maurício... Por que, Felipe? Por que tudo isso?
— O dossiê foi um erro, eu sei, mas ao menos trouxe você para mim. Abaixe essa arma, por favor. Vamos passar uma borracha em tudo isso e recomeçar. Nada mais nos impede.
Larissa, então, depositando a arma sobre a mesa, correu para seus braços e eles se amaram como nunca. Tudo, enfim, estava superado, todos os jogos, todas as humilhações, todos os sentimentos de raiva e rancor, todas as mentiras, toda aquela idiotice de se mostrar vencedor na vida. Que importava tudo aquilo? Dinheiro, fama, prestígio, sem o verdadeiro amor ao lado? Agora, porém, nada mais poderia impedir a felicidade dos dois. Bastavam-se um ao outro, às favas o mundo com suas imposições medíocres e hipócritas...
O fato de ter pensado em cometer um crime era algo que necessitava de acompanhamento médico. A psicóloga da casa de repouso indagou:
— E você ainda tem sonhado noites seguidas com ele? Acredita realmente que ele ainda estaria vivo, se não fosse a interferência do sogro dele?
— Sim, e em alguns desses sonhos acabamos os dois mortos, e mesmo nessa versão mais trágica, eu acabo ficando para sempre nos braços dele...
... Mas prefiro acreditar no final em que ficamos juntos e nos casamos. É o que teria acontecido se não houvesse entre nós a bala fatal disparada. Não fosse aquele tiro, o desfecho teria sido outro, um final certamente feliz, até que a morte viesse a nos separar!
FIM
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