░TOURO░
Segunda-feira, 09 de abril.
I
Decorridos vinte dias do outono, já começava a esfriar. Jorge e Daniel procuravam a arma no carro conversível, estacionado na garagem do Gaivotas. Ventava, e o ar gelado era canalizado por uma passagem normalmente aberta do estacionamento. O Camaro azul, testemunha de grandes turbulências entre Larissa e Felipe, e também de um perigoso flerte entre o músico e Cecília, ainda estava parado na vaga do apartamento 91.
— A arma sumiu! — exclamou Daniel.
— Vamos dar uma olhada por baixo dos bancos.
Nada! Olharam também no porta-malas, sem sucesso. A bolsa onde Felipe guardara a arma em Ilhabela ainda estava ali, mas vazia.
— É, Jorge, a arma sumiu mesmo. Será que está no apartamento?
— Duvido, eu mesmo o revistei por inteiro na quinta passada e não vi arma alguma. A própria polícia o fez e não encontrou nada.
Informado sobre o fato, Nilo declarou:
— A arma desapareceu e é um 22, o mesmo calibre que matou Felipe. Para mim o major tem a ver com o peixe: sabia onde estava a arma, além de ter motivos.
— Outras pessoas também sabiam — ponderou Jorge.
Daniel perguntou ao avô:
— Mas como ele a teria pego?
— Muito simples e elementar. — Nilo estampou no semblante um ar de superioridade. — Depois que entrou no prédio, desceu até a garagem, pegou a arma e subiu ao apartamento.
Jorge não estava muito convencido. Ponderou novamente:
— Qualquer outro poderia ter feito a mesma coisa.
— Poderia, mas além de saber da existência da arma e onde podia estar — prosseguiu Nilo —, teria que recarregar a arma. Quais dos suspeitos ali teria essa facilidade?
Jorge, como um toureiro de capa e espada a driblar habilmente as investidas do touro, ponderou mais uma vez:
— Para Ivan também seria fácil conseguir balas. No entanto, lembremos que Felipe colocou a arma na mala do carro e não no porta-luvas, dificultando a ação.
Nilo sorriu:
— Jorge, meu caro, será que contratei um ingênuo? — riu. — Abrir a mala daquele carro é a coisa mais fácil do mundo, basta uma chave micha. — E nisso inevitavelmente pensou-se em Henrique, mais uma vez.
Jorge fez uma derradeira consideração:
— Ingenuidades à parte, nem sabemos se a arma utilizada no crime é a que pertencia ao Felipe. O fato de ela ter sumido é suspeito, mas não podemos adotar isso como premissa, isto é, que tenha sido utilizada contra o próprio dono. Vamos com calma.
Nilo bateu a mão direita no ombro dele:
— O 'ingênuo' foi só uma brincadeira, está bem?
Jorge concluiu, mostrando-se vacinado contra qualquer pilhéria:
— E não se esqueça de que Henrique tem um álibi irrefutável. Como resolver essa questão na sua teoria?
— Para isso o contratei — encerrou Nilo.
II
Jorge Fontana já pretendia sair, quando Nilo o interpelou, dizendo que queria lhe falar em particular:
— Vamos até a piscina, o dia está quente e lá fora é bem arejado.
Sentaram-se confortavelmente, protegidos do sol sob a copa de duas árvores. Nilo pediu duas bebidas leves.
— Jorge, eu tenho muitos amigos, seja na polícia, na promotoria, no governo e até no planalto central, mas também os tenho na companhia telefônica. Pedi ao pessoal da Telesp que fizesse um levantamento para mim.
— Nada como um bom tráfico de influências...
— É para poucos, mas, o que fiz exatamente? Passei a eles os números de telefone de todos os possíveis envolvidos. Eis o resultado.
Jorge estava impressionado. Nilo conseguia as coisas mais rápido que qualquer mandado judicial, e obviamente, tudo à margem da lei. Pegou a lista de ligações das mãos do cliente, cuja capa exibia números e nomes. O banqueiro foi direto ao ponto:
— Há uma ligação muito estranha aí, que indiquei com uma seta amarela.
Jorge procurou a indicação, analisando-a. Logo em seguida comentou:
— A ligação parte do apartamento de Felipe, às 17h20 do dia 13 de março?
— Exato. E veja só para onde foi...
Jorge estava perplexo:
— Para o apartamento do seu Osvaldo!
Nilo prosseguiu:
— E, segundo a polícia, às 17h20 Felipe já devia estar morto...
Jorge mostrou-se reticente:
— Nilo, você bem sabe que os horários definidos por peritos não possuem essa pontualidade britânica...
— Sim, eu sei, mas se não foi o próprio Felipe quem ligou, quem foi, se ele estava morto?
— O assassino!
— Bingo! — exclamou Nilo.
III
Roberto recebeu a intimação sem muita surpresa. Já não era a primeira vez que isso acontecia.
— Detetive Roberto? Sente-se, por favor. Sou o delegado Basílio e esse é o investigador Madeira.
— É um prazer.
— Henrique de Oliveira contratou seus serviços, não foi?
— Contratou. Queria que eu seguisse a mulher dele.
Sem esperar perguntas e até para adiantar o expediente, Roberto contou tudo o que sabia. Disse apenas que se limitou a tirar algumas fotos e a grampear o telefone da clínica. E que não fora preciso mais do que isso para caracterizar a traição.
— Sabe que grampear telefones sem ordem judicial é contra a lei, não sabe? Eu poderia detê-lo, se quisesse, uma vez que você está prestando um depoimento.
Roberto não se abalou:
— Melhor não constar esse detalhe da minha declaração, não é, delegado? Quem sabe se eu lhe entregasse uma cópia da fita, talvez isso ajudasse a atenuar minha falta, o que acha?
Basílio sentiu-se chantageado, mas era evidente que faria vistas grossas e que aquele jogo entre os dois não passava de uma mise-en-scène¹.
— Está bem. Onde está o material?
— Não tenho cópia das fotos, pois entreguei os negativos ao major.
— Isso ele já nos passou, só preciso da fita, mas... ele sabe que você ficou com uma cópia da fita?
— Na verdade, não fiquei com uma cópia. É que as conversas do caso dele estão gravadas junto a outras, numa fita de rolo, por isso ainda é possível tirar uma cópia. Oportunamente eu apagarei tudo. Expliquei isso ao major e ele entendeu perfeitamente. Sou sempre honesto com meus clientes, deixo-os a par de tudo.
— Literalmente! — exclamou Basílio. — E quando pode me trazer a cópia?
Roberto tirou um pacote do bolso:
— Aqui está, já previa o rumo da nossa conversa.
— Ótimo.
Basílio sentou-se e pegou um cigarro no maço. Roberto pensou que já estaria liberado, porém, o delegado pediu que esperasse:
— Onde você estava no dia treze de março, entre 16h00 e 18h00?
Roberto tomou um susto e logo compreendeu aonde o titular da homicídios queria chegar:
— O que há, delegado? Acha que matei o infeliz?
— Pode responder à pergunta ou não? Temos um trato aqui, sobre eu não incluir no depoimento o grampo do telefone da clínica, mas sabe como é, posso mudar de ideia...
— Delegado... — falou quase cantando —, eu só sigo mulheres casadas, não sou assassino de aluguel.
Basílio bateu o cigarro três vezes na mesa, antes de acendê-lo:
— Se é assim, não se importará em responder.
— Bem, não tenho álibi para a hora do crime, se é o que deseja saber. Estava trabalhando.
— E não há nada que possa comprovar sua localização, naquele dia e horário?
— Não que me lembre. Aliás, se eu tivesse feito o que insinua que fiz, primeiro eu teria arranjado um belo álibi, não acha?
Basílio acendeu o cigarro e o tragou profundamente, expelindo pausadamente a fumaça:
— Ou então essa seria uma tática, arriscada é claro: fingir-se de inocente, a ponto de até conseguir controlar as reações e manter-se calmo, como se um álibi fosse dispensável no teu caso.
Roberto riu:
— Eu teria que ser um grande ator, se pretendesse isso. Não, se estou calmo é porque de fato sou inocente, mas como nada disso foi premeditado, irei relembrar de todos os meus passos naquele dia e depois te comunico.
— Está bem, ficarei no aguardo.
Assim que Roberto saiu, Basílio comentou:
— Sujeito eficiente, esse. Lembrou-me você, Madeira.
— A diferença é que faço tudo dentro da lei, quando não, ordenado pelo senhor.
Basílio gargalhou e pensou: "Já começa a colocar as 'manguinhas' de fora".
— Mas ele não parece tão esperto assim — continuou Madeira. — Deveria ter previsto que poderia se enrascar e já ter vindo com um álibi pronto.
— Sem dúvida, mas talvez isso realmente indique que é inocente, quem sabe?
IV
Jorge Fontana estacionou seu carro numa rua de pouco movimento, há alguns quarteirões da academia "Corpo a Corpo", onde certamente não conseguiria vaga, e só depois soube que ela possuía estacionamento. De qualquer modo, caminhar até lá já teria sido um bom ensejo para que ele buscasse uma vida menos sedentária.
— Bom dia, em que posso ajudá-lo? — Tratava-se de linda garota, corpo escultural e metida numa calça de lycra preta.
— Eu queria falar com o dono.
— Está diante dele — respondeu. — Melhor, dela. Sou a dona.
Jorge estendeu-lhe a mão:
— Meu nome é Jorge Fontana.
— Leila, a seu dispor. Muito prazer.
— Posso te fazer uma pergunta?
— Depende...
— Você conhecia Felipe Torres?
— Felipe? Claro, conhecia e muito. Ele vinha aqui todas as terças e quintas, sem falta e só falhava quando ia para o litoral. Estou muito triste com sua morte.
— Em que horário ele fazia ginástica?
— Você é da polícia?
— Não.
— É que a polícia já esteve aqui e já falei tudo que sabia para eles... E você, seria quem?
— Estou investigando o crime a pedido do sogro do Felipe, Nilo Romano. É uma investigação particular e aqui está meu cartão...
Ela o pegou:
— Fontana Lobo Advogados Associados... Hum...
— Sabe de alguma coisa que possa me ajudar?
Ela o convidou para irem até a sala da administração, fechando a porta atrás de si:
— Você me perguntou do horário. Bem, ele sempre vinha por volta de três da tarde e malhava umas duas horas.
— No dia do crime ele saiu daqui pouco antes das cinco, não foi?
— Sim.
— Observou se estava diferente? Nervoso, ou coisa parecida?
— Não, estava como sempre. Porém, ocorreu um fato que vai lhe interessar (e que já relatei à polícia): naquele dia, quando ele vinha chegando, apareceu uma moça e os dois quebraram o maior pau no estacionamento (acho que era uma namoradinha dele, que ele dispensou por causa da tal Larissa). Fui eu quem separou a briga.
— Sabe o nome dela?
— Não, mas a polícia me perguntou se ela não se chamava Carla Moreira. Ela é morena, alta, bem magra, muito bonita.
— Já ouvi falar dessa Carla e não seria a primeira confusão em que ela se meteu. Brigou até com a Larissa, no dia do velório.
A fofoca era uma forma de incentivar Leila a prosseguir:
— É mesmo? Barraqueira então?
— E como! E você observou em qual carro Felipe veio?
— Ah, sim, um lindo carro antigo, nunca o tinha visto.
— Um Camaro 1967?
— Não faço ideia, mas era bem antigo e muito conservado, azul.
— E Carla entrou na academia tão fácil assim?
— Sim, pois nosso estacionamento não possui vigilante ou manobrista e tem acesso direto da rua. Ela entrou e ninguém viu. Precisamos mudar isso, já ficou comprovado.
— Com certeza, é bom providenciar um vigia.
— Tem algo mais em que possa te ajudar?
— Acredito que não. Qualquer coisa, volto a te procurar, tudo bem?
— Tudo bem, mas não gostaria de conhecer a academia? A gente reconhece uma pessoa sedentária só de bater o olho.
— Estou tão gordo assim?
— Não, você está até bem, mas vi como chegou um pouco ofegante.
— É, você tem toda razão, preciso mesmo de exercícios.
— Veio ao lugar certo. Vamos?
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¹Mise-en-scène: encenação, em francês.
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