░LEÃO░
Quarta-feira, 14 de março.
I
Às vésperas da posse do então eleito presidente da República, Fernando Collor de Mello, a notícia da morte de Felipe Torres tomaria conta das manchetes dos principais jornais paulistanos. Em primeira página, o jornal mais tradicional da cidade, a "Folha de São Paulo", deixaria em segundo plano a posse do futuro mandatário mor do país, para dar espaço aos banqueiros do jogo do bicho. Decorrente de ligações anônimas, ocorridas na noite do dia treze, vários periódicos da cidade seriam colocados a par do acontecido e a notícia espalhar-se-ia feito rastilho de pólvora. A capital paulista amanheceria em fragorosa agitação, com mais um assassinato no mundo da contravenção.
No dia seguinte, quinze de março, Fernando Collor de Mello seria empossado presidente da República, prometendo caça aos marajás e modernização do país. Para Larissa, porém, isso pouco importava. Estava arrasada. Helena queria consolá-la, mas nem ela própria podia acreditar no que tinha acontecido, nem ela possuía forças para reanimar a irmã naquela manhã.
— Meu Deus! Quem terá feito isso, Larissa?
— Alguém da turma do General, certeza.
— Quem?
— General. É um banqueiro do bicho que foi assassinado mês passado. Felipe e Nilo também receberam ameaças.
— Ameaças?
— Sim...
Helena estava horrorizada:
— Mas o que é isso, hem? Estamos no Brasil ou na Itália? Isto está mais parecendo coisa de mafiosos.
— E o que você acha que esses banqueiros do jogo do bicho são? Contraventores, pessoas acima da lei, que manipulam a polícia. Mafiosos, em outras palavras!
Helena não podia aceitar que aquele fosse o desfecho reservado pelo destino para Lissa e Lipe, depois de todo o trabalho que ele próprio tivera para os juntar. Hardy teria dito ao leão Lipe: "Oh, céus! Oh, vida! Oh, azar"!¹
— Larissa, você não está com fome? Quer um café? — Afinal, a vida precisava continuar.
— Não, não quero.
— Mas você precisa comer alguma coisa, está desde ontem à tarde sem nada no estômago. Por que não tenta só um pouquinho?
— Não quero, talvez mais tarde. Acho que vou voltar para a cama.
— Tudo bem, então, mas procure descansar. Estarei na sala se precisar de mim.
Helena deixou o quarto, permitindo à irmã que ficasse tão somente na companhia dos próprios pensamentos. O tempo estaria sozinho agora e só ele poderia cicatrizar as feridas.
Na televisão não se falava em outra coisa: a posse do novo presidente. Todos aguardavam que Collor construísse seu governo de forma prática e sólida, mas havia o medo de que seu discurso ruísse ao primeiro vendaval. O que ninguém esperava, entretanto, é que ele próprio fosse criar as tempestades.
II
Ivan fora à padaria comprar pão e leite e na ida, ao passar pela banca de jornal do seu Gusmão, não pode acreditar nas manchetes daquela manhã.
"Morre mais um na Contravenção. Agora foi a vez
de Nilo Romano."
— Gusmão, me vê o Notícias do Povo e a Folha de São Paulo.
A manchete do Notícias do Povo dava conta da morte de Felipe, mas a da Folha 'jogava' com as palavras. Num primeiro relance parecia insinuar que Nilo Romano é quem fora assassinado, e só depois Ivan compreendeu. "Agora é a vez de Nilo Romano" referia-se a: "Agora é a vez de Nilo Romano (sofrer a dor de uma perda)".
— Joana?
— Oi, querido.
— Você não vai acreditar. Sabe quem morreu?
— Não.
— O Felipe.
Joana levou um tremendo susto:
— Quem?
— Felipe Torres.
— Mas como? Quem lhe contou?
— Está em todos os jornais. Veja!
Entregou-lhe o exemplar. Ela sentou-se para ler sem acreditar, pois apesar de tudo gostava dele, achava-o inteligente e bonito, tinha-o como a um filho distante. Enquanto segurava o jornal nas mãos sem saber o que dizer, pensando no sofrimento que a filha devia estar passando, Ivan colocou o leite para ferver e o pão sobre a mesa, pegando o jornal das mãos dela. Após alguns instantes, seus olhos pousaram sobre algo que não foi do seu agrado. Leu, quase gritando:
— Escuta, Joana! Ouça isso: "Larissa Mendes de Oliveira, médica, 38, foi quem encontrou o genro do bicheiro em seu apartamento. Segundo a polícia, ela era amante da vítima. Casada com o major Henrique de Oliveira, do CPOR, suspeita-se de crime passional, embora tudo possa não passar de guerra no mundo da contravenção". Que absurdo! O nome de nossa filha e o do Henrique na lama, isso vai acabar com a carreira deles. Está vendo o que a Larissa foi arrumar? Por que tinha que se envolver com esse marginal?
— Ivan!, é só nisso que você pensa? Larissa deve estar precisando de nós e você aí preocupado com carreira?
Ivan levantou-se de forma abrupta, atirando o jornal contra a cadeira:
— Eu não entendo você, parece até que estava de acordo com o adultério.
— Claro que não! Mas acho que a Larissa tinha o direito de escolher. Francamente? Sempre negamos isso a ela.
— Tudo o que fizemos sempre foi para o bem dela, já falamos sobre isso.
— Sim, mas nunca deixamos que ela decidisse nada sozinha.
— Pois é: nunca!, mas quando decidiu, fez bobagem. Se era para tomar alguma atitude, que o fizesse quando solteira, sem compromissos, não agora, com tanta coisa em jogo.
Joana calou-se. Percebeu que não iria chegar a lugar algum com aquela discussão — e talvez ele tivesse razão. Na verdade, ele sempre tinha razão. O mais curioso é que um sentimento de alívio a invadia, que Deus a perdoasse, pois com a morte de Felipe Larissa poderia voltar para o Henrique. Escondida, porém, foi ao quarto e ligou para a filha. Precisava saber como ela estava.
Já Ivan, apesar do escândalo, sabia que tudo aquilo acabaria caindo no esquecimento — e era com isso que ele contava. Em contrapartida, pensava: "As coisas no Exército costumam ser implacáveis", mas de qualquer modo, ao menos podia nutrir a esperança de ver Larissa e Henrique juntos novamente, afinal, agora não havia mais Felipe Torres para atrapalhar.
III
— Eu disse! Eu disse a ele, malditos!
Daniel estava distante e desolado, nem ouvia os brados do avô. Já havia perdido a mãe em circunstâncias dolorosas, morta no acidente de carro, e agora aquilo, o pai assassinado.
— O que foi, vô?
— Eu disse a ele, Daniel. Por que não ouviu meus conselhos? Não custava nada um guarda-costas, apenas um! Teria evitado isso. E o que foi fazer no apartamento, se o combinado era ele ficar na Fortaleza?
— Do que é que o senhor está falando?
— Nada não, deixa para lá, depois eu te explico.
— O senhor não se esqueceu do desejo do meu pai, não é? De ser cremado.
— Claro que não, até já acertei tudo com o crematório da Vila Alpina, é só a polícia liberar o corpo.
— Vô... O senhor sabe quem foi?
Nilo colocou a mão no ombro do neto:
— Não, não sei, mas vou fazer tudo para descobrir.
IV
Larissa deu-se conta de que precisava amparar Cecília. Ainda era cedo e a filha nem devia ter acordado, afinal, só ia à escola no período vespertino. Levantou-se da cama e arrumou-se rapidamente.
— Aonde vai, Larissa? — perguntou Helena, enquanto fazia o desjejum. — Pensei que fosse tirar o dia de folga.
— Preciso ir em casa. Quero estar lá quando Cecília receber a notícia sobre Felipe.
— É mesmo, coitadinha, vai ter um baque e tanto. Mas tome seu café primeiro.
Antes de sair, Larissa abraçou a irmã:
— Lena, não sei o que seria de mim sem você. Nem sei como te agradecer tudo o que você tem feito.
— Nem gaste seu tempo agradecendo, você já fez muito por mim. Eu é que agradeço a Deus a oportunidade de poder retribuir.
Larissa chorou no ombro da irmã, que não sabia o que dizer.
— Quer que eu vá com você?
— Não, por favor, preciso ser forte.
— Vá, então. Tome cuidado.
Quando Larissa chegou ao apartamento na Bela Cintra, encontrou Cecília desnorteada. Um jornal matutino televisivo já se encarregara da trágica notícia.
— Mãe... O Felipe...
— Eu sei.
Ela correu para os braços de Larissa:
— Por quê? Por que fizeram isso com ele?
— Não sei, minha filha, mas vamos confiar em Deus, Ele sabe o que faz!
— Parem, vocês duas!
Mãe e filha voltaram-se para a porta do quarto, onde Jairo, rosto ainda inchado, as observava. Um brilho surgiu em seu olhar:
— Parem com essa choradeira, temos que comemorar. Finalmente nos livramos desse cara.
— Jairo!
— É isso mesmo, mãe! Você devia dar graças a Deus, a melhor coisa que podia ter acontecido. — E sumiu no corredor.
— O Jairo está insuportável, mãe! Onde já se viu dizer uma coisa dessas?
— Deixa para lá, filha, ele não sabe o que está dizendo. Ignore.
— E agora, como vai ser?
— Não sei... — Afagou o cabelo da filha, reiterando: — Realmente, não sei.
Longe dali, na zona Norte de São Paulo, Henrique chegava ao quartel e já havia comentários sobre o assunto. O capitão Macedo não se conformava:
— Esse "Notícias do Povo" é um jornaleco sensacionalista mesmo! Onde já se viu dizer uma coisa dessas do senhor, major?
— Dizer de mim? O quê?
— O senhor não leu?
— E eu lá compro esse jornal?
Macedo mostrou a Henrique a matéria que citava seu nome.
— Mas isso é uma calúnia!
— Senhor, desculpe-me a pergunta, mas é verdade que sua esposa e esse Felipe...
Os olhos do major chispavam fogo. Ele ainda estava digerindo toda aquela história, desde o instante em que ouvira a notícia pelo rádio do carro, a caminho do CPOR, mas tão somente botara os pés no serviço, já era suspeito do crime? Sem necessitar, assim mesmo buscou explicar, ainda que mentindo:
— Esse Felipe era amigo da Larissa e ela tinha negócios com ele.
— Negócios com um bicheiro?
Henrique ia perdendo o controle da situação:
— Não, nada disso. Larissa ia comprar um imóvel dele para montar outra clínica. Capitão Macedo, o que é isso? Não lhe devo satisfações.
Macedo calou-se, uma vez que no Exército antiguidade é posto, manda quem pode e obedece quem tem juízo (ruim, mas necessário, por uma razão muito simples — e decisiva até: toda formação militar é voltada para a prática da guerra, e na guerra, como no amor, qualquer descuido pode ser fatal).
— Desculpe-me, senhor.
— É tudo mentira o que esse jornal publicou.
— Se é assim, permite-me uma sugestão?
— Fale!
— O major devia processá-los.
— É o que vou fazer.
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¹ Frase do desenho animado "Lippy & Hardy", produzido em 1962 pela Hanna-Barbera. A frase é dita pelo personagem Hardy, uma hiena pessimista, sempre quando Lippy, o leão otimista, propõe um plano mirabolante para os dois."
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