░GATO░
Terça-feira, 13 de março de 1990.
I
Os dias de fevereiro terminaram rápido e as águas de março chegaram lépidas, sob um céu paulistano ainda carrancudo e ameaçador. No carnaval carioca, consagrou-se campeã a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, cujo patrono era ninguém menos que o lendário Castor de Andrade, maioral do bicho no estado fluminense. Em São Paulo, todavia, não havia a mesma ligação aberta e apaixonada entre os banqueiros do jogo e as agremiações do samba. Nilo Romano, por exemplo, era avesso a esse tipo de festa, dizendo-se muito 'religioso', a ponto de não querer patrocinar desfiles.
Avançando no tempo, em treze de março vamos reencontrar Larissa ainda morando com Helena e, a essa altura, Henrique já terá contado aos filhos o que de fato vinha acontecendo entre ela e Felipe. Diante do fato, a raiva de Jairo por Felipe se intensificará, enquanto Cecília, que a princípio apoiava, ansiará agora que a relação entre os dois desande, algo, aliás, que já vinha acontecendo há pelo menos quinze dias, período em que os amantes praticamente não se falaram.
— Cecília? É o Felipe, tudo bem?
— Nem um pouco.
— Ainda chateada comigo?
— Bastante, mas você não devia estar ligando aqui em casa.
— Não tinha outro jeito de falar contigo. Acho que precisamos conversar.
— Não temos mais nada que conversar, Felipe. Esquece que eu existo, por favor.
— Então você me desculpa?
— Nunca.
— Falou algo para tua mãe?
— Jamais teria coragem de dizer o que aconteceu a ela.
Enquanto Cecília conversava com Felipe, Jairo entrou na sala, surpreendendo-a em telefonema que julgou muito estranho:
— Com quem você está falando?
Cecília tampou o transmissor:
— Não é da sua conta!
— É com o Felipe, não é? Me dá isso aqui! — Tomou o aparelho das mãos da irmã. — Escuta aqui, seu safado, você vai pagar caro o que está fazendo com a minha família.
E desligou. Felipe ficou sem entender, mas sabia exatamente quem havia dito aquelas palavras: Jairo! Mais uma ameaça? Estava virando rotina.
Cecília estava indignada:
— Você não tem mesmo um pingo de educação. Que coisa ridícula! Nem sabe se era o Felipe.
— Claro que era. Vou contar tudo para o nosso pai.
— Vai lá, corre contar ao 'papaizinho'. Estou pouco me lixando para você, seu sem educação.
Jairo ameaçou partir para cima dela:
— Te quebro a cara!
— Vem, se for homem!
Ouvindo os filhos em altercação, Henrique saiu rapidamente do quarto:
— Ei, o que está acontecendo aqui?
— É ele pai, que não tem a mínima educação. Tomou o telefone da minha mão feito um brutamontes.
Jairo revidou:
— Pai, sabe com quem ela estava falando? Com o Felipe.
— Estava sim, e daí?
— Vamos parar já com essa briga? Não quero saber, os dois já para o quarto.
Mesmo contrariados, obedeceram. Henrique estava preocupado, pois nunca vira uma discussão tão feia entre os filhos e pior, nunca precisara falar tão áspero com eles. Será que Ivan tinha razão? Seria a ação do demônio, causando tudo aquilo? Precisava fazer alguma coisa. E com urgência.
II
Ivan também estava preocupado. Tudo o que ele levara a vida construindo parecia desmoronar. Felipe era a causa, porém, julgava que o pianista não agia por vontade própria, e sim sob a influência do diabo, que insuflava e induzia seus passos. Gratuitamente? Não!, uma vez que o bicheiro dava guarida a ideias e pensamentos que eram um atrativo para o inimigo, em especial o ateísmo.
Felipe era como um gato preto que chegasse na escuridão, traiçoeiro e sem que ninguém percebesse o caminhar sorrateiro, com olhos que brilhavam e enfeitiçavam suas filhas — e agora sua neta. Ivan, no entanto, julgava-se pronto para enfrentá-lo e faria o que fosse necessário para salvaguardar a família de suas garras.
Procurou na lista o telefone da escola de música, disposto a enfrentar o 'demônio'. Como era mesmo o nome? Cecília havia comentado, mas ele tinha esquecido...
III
E falando em Cecília, ela andava feito barata tonta pelo bairro de Pinheiros, procurando a rua Joaquim Antunes. Caminhava pensando na frustrante noite do dia anterior, quando finalmente estivera nos braços de Felipe...
— Me bejia, Felipe. — Sedenta de prazer, quase lhe arrancava os lábios, beijando-o com toda a força. Ele a mordiscava, enquanto suas línguas se misturavam, ora numa boca, ora noutra. Era uma sensação descomunal, que ali tomava conta de todo seu ser.
— Isso é loucura, Cecília.
— Sabe que nunca estive num motel? Hoje vou realizar dois sonhos, um deles é transar com você.
— Não devemos...
— Cale a boca e me beije.
Perdida em meio a pensamentos, literalmente perdeu-se pelas vias do bairro. Um transeunte perguntou-lhe:
— Moça, tem horas?
Cecília olhou seu relógio:
— São nove horas.
— Ah, obrigado. Outra coisa: que dia é hoje mesmo?
"Jesus!, pensou, "esse aí está mais perdido do que eu, será que sabe em que planeta está?"
— Treze de março. O ano o senhor sabe, não?
— Sei sim, 1990.
— Aproveitando, já que ambos estamos perdidos, sabe onde fica a rua Joaquim Antunes?
O sujeito pensou um pouco, embora sua resposta fosse mais do que previsível:
— Moça, não faço a mínima ideia, mas obrigado pelas informações — e saiu, com destino a algum lugar que com certeza ele também não sabia onde ficava.
Sem saber para onde ir, Cecília avistou uma imobiliária.
— Ah, vou perguntar ali. — Entrou e procurou falar com um corretor, afinal, não haveria ninguém mais apropriado a informar do que um profissional do ramo. Obtida a localização, dali partiu para o rumo certo, mas ainda avoada...
— Você é virgem, Cecília?
Ela riu:
— Claro que não, seu besta, já transei uma vez.
— Seu pai sabe disso?
— Se soubesse, já tinha me matado. Mas deixe de conversa fiada. — Cecília despiu-se, ficando apenas de calcinha e sutiã: — O que está esperando? Venha!
Seu pensamento retornou a Pinheiros:
— Eu te mato, Felipe!
Enquanto isso, não muito longe dali, no apartamento da família, outro que não conseguia concatenar os pensamentos era Jairo. Também pensativo, discutia interiormente se deveria ou não tirar satisfações com Felipe: "Sei lá, de repente ele cai na real. Só que não posso me expor... E se eu me disfarçasse? Posso fingir ser um encanador ou eletricista, mas será que consigo entrar no prédio dele"?
Não sabia quando, nem como, mas queria enquadrar Felipe. Precisava fazer alguma coisa para ajudar seu pai.
IV
Helena estava contente por estar ajudando a irmã. A energia que vinha transmitindo a Larissa eram verdadeiras injeções de ânimo. Poderia agora retribuir, enfim, a força que ela lhe dera um dia, quando resolvera sair de casa, mas durante o café da manhã daquele dia, preocupou-se, pois a achou muito abatida e agitada.
— Aconteceu alguma coisa?
— Nada não.
— E o Felipe? A relação esfriou mesmo?
— Muito, e desde sábado que não falo com ele. Foi para Ilhabela no domingo e vou encontrá-lo hoje à noite, para ver como é que fica o nosso caso. — Larissa parecia ter algo entalado na garganta, esforçando-se de forma hercúlea para segurar.
Não ignorando, mas tencionando falar de outro assunto, Helena disse:
— Sabe aquela história de concertista?
— Sim, claro.
— Então, eu conheço o maestro Eleazar de Carvalho e consegui falar com ele. Por sorte, o maestro Diogo Pacheco estava junto. Ambos foram unânimes: nunca ouviram falar de Felipe Torres, enquanto pianista. E garantiram que se Felipe tivesse tocado com grandes sinfônicas na Europa, eles saberiam. É um meio muito restrito.
— Ah é? — Larissa praticamente ignorou a informação, deixando Helena ainda mais preocupada. — Já vou... — disse, pegando a bolsa de cima da cadeira. — Até mais tarde, Helena. Ah, não esquece de ir buscar o carro lá no prédio do Felipe, está bem? Lá pelas 17h30. E depois passa na clínica e me pega, tá certo?
— Combinado, mana.
Ela já ia saindo, quando Helena a chamou:
— Larissa...
Ela girou nos calcanhares no umbral da porta:
— Fala.
— Há algo que queira me contar? Eu te conheço.
— Nada, não. Impressão tua. Deixa eu ir, pois vou ter um dia difícil, tenho de terminar minha dissertação. Nos vemos à noite.
Larissa saiu, apressada, com Helena cada vez mais preocupada:
— O que será que aconteceu entre ela e Felipe?
Bem mais tarde, às 20h30, Larissa estacionou seu carro na rua Joaquim Antunes, em Pinheiros, defronte ao edifício Gaivotas. O porteiro Samuel já a conhecia e abriu o portão acionando um interruptor de dentro da guarita.
— Boa noite, dona Larissa.
— Boa noite, Samuel. O Felipe já chegou?
— Já, faz tempo.
— Vou subir.
— Quer que eu avise?
— Não precisa. Ele está me esperando.
Havia passado pouco tempo e Samuel assustou-se ao ver Larissa de volta, saindo do elevador. Ela correu na direção da porta principal, abrindo-a e falando ao mesmo tempo:
— Seu Samuel, chama o seu Osvaldo. É urgente!
Osvaldo era o zelador. Samuel saiu da guarita e correu na direção dela:
— O que foi, aconteceu alguma coisa?
Larissa, o rosto lívido, informou:
— Precisamos chamar a polícia!
— Mas o que aconteceu?
— Um assassinato!
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