░CABRA░
I
Henrique era um homem forte e de rosto viril, cabelo bem curto. Desceu do carro acompanhado de uma moça, que fez Felipe se lembrar da irmã de Larissa, Helena, aos seus dezesseis anos. Aliás, era a última imagem que ele tinha guardada na mente da tão extrovertida Helena. Do banco traseiro, saltaram um jovem magro de nariz comprido e um casal, que Felipe logo reconheceu serem os pais de Larissa, seu Ivan e dona Joana. Os cinco ficaram ali, sem saber o que dizer, olhando ora para Larissa, ora para Felipe. Foi ela quem quebrou o constrangimento:
— Mamãe... Papai... Não esperava que viessem.
— Henrique nos convidou. Quis fazer uma surpresa.
Joana olhou para Ivan, que logo ironizou a situação:
— É, Joana, mas quem está surpreso agora sou eu.
Larissa abriu o portão:
— Mas vocês não vão ficar aí parados, vão?
Aproximou-se de Henrique e deu-lhe um beijo:
— Oi, querido. Como foi a viagem?
— Ótima. Mas confesso, também estou surpreso.
Larissa voltou-se para Felipe, ainda sem jeito com a inesperada situação:
— Vocês não estão reconhecendo o Felipe?
Ivan adiantou-se:
— Claro que estou. Mas o que o Felipe está fazendo aqui?
Joana cutucou-o:
— Ivan...
Larissa apressou-se em explicar, ainda sob olhares de suspeição:
— Ele tem uma casa aqui em Ilhabela. Nós nos encontramos no supermercado e ele me deu uma carona.
Felipe também procurou tornar tudo muito natural:
— É um prazer revê-los — saudou-os, estendendo depois a mão ao major. — Como vai, Henrique? Soube que é major do Exército.
Os dois cumprimentaram-se e Felipe voltou-se para os pais de Larissa:
— E o senhor, seu Ivan... Dona Joana... Há quanto tempo! Estava com saudades de vocês. E esses são os seus filhos, Larissa?
Cecília estendeu-lhe a mão, esbanjando jovialidade:
— Cecília de Oliveira. Um prazer.
— Você é muito bonita, Cecília. Lembra muito sua tia Helena.
— Obrigada!
Em seguida, Felipe lançou um olhar amigável ao jovem rapaz, filho de Larissa:
— E você? É o...
— Jairo. Muito prazer — respondeu, mas em pensamento já destilando uma antipatia imediata e gratuita: "O prazer é todo seu".
Felipe, tentando findar logo com aquela situação embaraçosa, declarou:
— Bem, fiquem à vontade. Eu já estava mesmo de saída.
Larissa, ainda preocupada em despistar, indagou:
— Não vai entrar e tomar um café?
— Agradeço, mas agora não posso. Noutra hora.
Apressou-se e entrou no carro. Antes de partir, porém, fez um convite:
— Vocês são meus convidados. Terei o maior prazer de recebê-los na minha casa. Passem por lá, em Ilhabela. Até logo.
E saiu, rapidamente. Cecília estava impressionada:
— Puxa! Que carrão!
Ivan concordou:
— É mesmo. Um carro antigo, mas caro. E muito bem conservado, de colecionador. Ele parece bem de vida. Pelo menos financeiramente — asseverou, lançando um olhar para Larissa.
— Ele é um concertista famoso, papai.
— Mas de que adianta tudo isso, se não tiver Deus no coração?
Larissa desviou o olhar para o marido, assustada. Haveria naquela declaração algo mais do que uma simples admoestação religiosa? Ou teria ele percebido algo? Jairo mostrou-se curioso:
— Por que diz isso, pai?
— Por nada, Jairo.
Jairo insistiu:
— Por um acaso esse Felipe é ateu?
— Acho que sim — respondeu Henrique. — Mas eu não me referia a ele, em específico. É apenas para lembrar a vocês que em primeiro lugar sempre vem Deus.
— São coisas do demônio o que ele tem no coração, isso sim.
Dessa feita
fora Ivan, a atrair a atenção.
— Ora, por que o espanto? O que mais pode haver no coração de um materialista?
— Papai, por favor, o senhor sabe muito bem que devemos respeitar a posição de cada um, certo? E vamos parar com essa conversa e entrar?
Acataram a ordem. Cecília, ainda confusa, os seguia mais atrás, pensativa: "Mas quem é esse Felipe? Amigo da minha mãe? Ela nunca falou dele..."
II
Larissa preparou um belo café para todos:
— Seu exame não era hoje, Cecília?
— Era, mas a professora resolveu dar a prova ontem. Foi uma boa ideia, assim pudemos vir hoje.
"Eu mato essa professora", pensou Larissa.
— E você foi bem?
— Fui sim, estou livre da matéria.
Jairo comia afobado:
— Estou louco para dar um mergulho, mas as praias daqui não são muito boas.
— Sabem que eu ainda nem entrei no mar? Dizem mesmo que as praias perto do centro não são boas, por causa do porto... Em compensação, as de Ilhabela...
Henrique franziu a testa:
— Você esteve lá?
— Não, não. Foi o Felipe quem disse.
Henrique ficou cismado. A forma como ela falara deu a impressão de que não só ouvira, mas também vira, e que soubesse, Larissa nunca tinha estado em Ilhabela. Aquela era a segunda vez que a esposa vinha a São Sebastião, a primeira tinha sido quando compraram a casa. Na oportunidade, ela até comentara que não conhecia a ilha.
"Cuidado", arguiu Henrique em pensamento. "A simples presença de Felipe não pode ser motivo para que você se porte igual a um adolescente ciumento".
No entanto, seu coração agia mais rápido do que a mente: "Simples presença? Simples presença, que nada! Há quanto tempo Larissa não vê esse cara? Deve estar radiante. Ah, é claro que está! E que forma carinhosa é essa, com a qual pronunciou o nome dele"?
Naquele dia no aeroporto, há vinte anos, ele tinha quase certeza e apostaria: o miserável pediu para que ela o largasse e ficasse com ele. E naquela discussão interior, entre emoção e razão, esta dizia-lhe para ser mais brando: "Felipe era apenas um jovem. Jovem e inconsequente. Esqueça isso. Não deixe o inimigo fazer morada no seu coração". Mas o 'ente do mal' insuflava-lhe: "Você era um tolo. Se voltar a acontecer, não deixe barato, não".
Ivan o cutucou:
— Ei, está no mundo da lua?
— Só pensando... Foi um bom negócio ter comprado esta casa.
— Você vai gostar muito do litoral norte. Eu já andei muito por aqui. Conheço quase tudo.
O pensamento de Henrique viajava, pouco se importando com praias: "Mas eu tenho que entender que eles eram muito amigos, eram como irmãos. Felipe a amava, eu sei, mas para ela, ele representava um irmão de sangue, tenho que ser razoável", e após uma pausa: "Mas eu mato esse cara se ele tentar alguma coisa".
— Henrique... — Ele não ouvira Larissa chamar. — Henrique! O que há com você?
— Hã? Ah, nada não, Larissa.
— Você está distante, o que foi?
— Apenas um pouco cansado.
— Então vá descansar — sugeriu Joana.
— Boa ideia. Vou mesmo.
— Pô, pai! A gente não vai dar uma volta, não?
— Vamos sim, Jairo. Daqui a meia hora, tudo bem? Vou dar um cochilo.
Meio inconformado, Jairo concordou. Larissa percebeu, no entanto, que não se tratava de cansaço. Conhecia Henrique muito bem. Sabia que ele estava preocupado e sabia por quê. O pior é que nem podiam conversar. Ela não iria chegar para ele e dizer: "Não, querido, não é nada disso que você está pensando. Felipe não tentou nada não. Eu juro". Mesmo que fosse cínica o suficiente para mentir, sua consciência não o permitiria. E havia um martelo em sua cabeça: "Há poucas horas você transou com outro homem"! Sim, essa era a frase!, definitivamente forte: "Você transou com outro homem"!
E agora ali, tendo de encarar Henrique, medindo as palavras para não dizer algo que pudesse desmascará-la, imaginando a todo instante que talvez ele pudesse perceber algo em seu olhar, sendo assim, como poderia então estabelecer com ele qualquer conversa que fosse?
III
Joana, mãe atenta que era, percebeu logo a filha em aflição. Aproveitando que o marido saíra com os netos, perguntou:
— E você, minha filha? Algo errado?
— Não, mãe.
— Eu te conheço, Larissa. Não tente me enganar. Aposto como tem a ver com o Felipe.
Larissa baixou a cabeça. Joana juntou as mãos:
— Acertei, não foi?
— Ficou chato, não é? O Henrique me pegar aqui, com o Felipe.
— O que importa é a sua consciência. Vocês faziam algo de errado?
— Não! Claro que não!
Joana estranhou a rispidez e mesmo resolvendo não colocar caraminholas na própria cabeça, não havia como.
— Vocês apenas conversavam? Como nos velhos tempos, no portão de casa? Foi só isso?
— Foi sim, mãe.
Joana não sentira firmeza, mas resolveu dar um crédito:
— Henrique é adulto e não pode haver nada de mais nisso. E ele sabe muito bem: Felipe sempre foi como um irmão mais velho pra você.
— Sem dúvida.
— Foi, não é? Foi sempre um irmão mais velho...
— Mãe, o que é isso agora? Está duvidando de mim?
— Não, só perguntando, mas se é como diz, para que essa aflição? É lógico que o Henrique levou um choque, todos levaram, mas não dê motivos pra que ele fique pensando bobagens.
Larissa abraçou a mãe:
— Você é um anjo, mãe.
Joana guardou os frios na geladeira:
— Mas me conta: o Felipe falou da vida dele, nesse tempo todo?
Larissa não conseguiu evitar que seus olhos brilhassem:
— Contou, contou sim! Ele é um pianista muito famoso. E rico!
Deu todos os detalhes.
— Puxa vida! Quem diria, hem? E ele deve muito disso a nós.
— A nós?
— É. A união da nossa família sempre foi um exemplo pra ele. Mais que um exemplo: um apoio. Lembra como ele era revoltado? Depois que começou a frequentar nossa casa, mudou da água para o vinho. Encontrou em nós um lar que não tinha.
— Eu nunca vi por esse lado. Sempre o achei um rapaz com muita força de vontade, isso sim.
— Certo, mas nós contribuímos bastante. A família dele nunca foi lá muito ajustada. O pai bebia muito e a mãe largou o pai, que acabou morrendo jovem. Sabe, eu sempre tive um pouco de pena dele, por não ter o seu amor correspondido, e espero que continue assim, não é, meu bem?
Larissa preferiu o silêncio.
IV
Ivan e os netos entraram serelepes na casa.
— A cidade é bonita, mas eu quero mesmo é conhecer Ilhabela... Podemos ir na casa do Felipe, amanhã?
— Vê se fica quieta, Cecília.
— Não enche, Jairo.
Larissa advertiu-os:
— Os dois!, vamos parar com essa discussão? O Henrique está descansando. Por que não tomam um banho? Daqui a pouco podemos tomar um sorvete todos juntos, que tal?
— Mãe, você é um doce.
— Tá bom, Cecília, mas antes me ajuda a arrumar a cozinha.
Cecília torceu o nariz:
— Retiro o que eu disse.
Jairo parecia pouco satisfeito. Achava uma chatice ficar ali, sem fazer nada. Viajar com os pais era a pior coisa do mundo. Sentia-se uma criancinha. Tomar um 'sorvetinho', dar uma volta na praça, subir e descer do coreto, bater umas fotos e depois voltar para casa e dormir. Já pensou se pintasse uma gata e ele acompanhado dos pais e dos avós? Preferia morrer, a ter vindo nessas condições.
— Ao menos meu pai podia me emprestar o carro para eu dar umas bandas. Droga, não vejo a hora de fazer dezoito — murmurou.
Já Cecília era uma preocupação a mais para Larissa. Ao caminhar pela rua, viu num terreno baldio uma cabra rodeada de dois cabritinhos, pensando em como era bom enquanto os filhos se mantinham sob a tutela da mãe.
— É, dona cabra, eles vão crescer, se prepare...
Cecília completara dezoito, já era uma mulher e Larissa percebera em seu olhar um brilho diferente, parecendo muito interessada em Felipe. Estaria ela com ciúmes da própria filha? E por causa de um homem, seria isso?
— Vão crescer e competir com você!
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