Capítulo 1
Não existe nada mais animado e mais hipócrita que o carnaval de Salto Belo. Sério. Todos os riquinhos mimados e extremamente homofóbicos pagando de progressistas é o fim da picada. Eu não me importaria de perder esse evento tradicional da distinta sociedade Salto Belense, não fosse pelos meus amigos.
Olho para o lado e não consigo segurar um sorriso ao ver Lavínia e Emílio dançando de forma totalmente desengonçada o axé baiano que toca. Tá, tudo bem, talvez eu goste da música e dessa falsa sensação de liberdade que o carnaval traz. Ou talvez estar ao lado dos meus amigos faça com que tudo pareça melhor.
— Por que não está dançando, mocinho? — Lavínia diz, me puxando para o canto da pista onde ela e Emílio estão. — Não vou pagar esse mico sozinha.
Faço uma cara para ela, mas na verdade estou meio encantado com o fato de Lavínia estar se soltando hoje. Lavínia, a garota que no ano passado ficou horas chorando escondida no banheiro porque algumas meninas a chamaram de baleia e nunca mais quis usar aquele vestido de saia godê que lhe caía tão bem. O carnaval tem esse efeito nas pessoas.
— Eu estava esperando um convite do senhor gostosão aqui — eu digo, empurrando Emílio com o ombro, fazendo graça. — Por que você não me chamou, Emílio?
— Para você dar em cima de mim pela milésima vez?
Emílio sorri, descontraído, os olhos cor de chocolate brilhando tanto quanto a pele negra suada contra as luzes coloridas do salão.
— Que absurdo! — eu me faço de indignado. — Quando foi a última vez que dei em cima de você?
Emílio para, fingindo fazer uma conta elaborada de cabeça.
— Na semana passada.
Lavínia ri com vontade, divertindo-se com a nossa conversa, e eu o empurro de novo, cruzando os braços em uma expressão de falsa revolta.
— Pois saiba que sou um gay muito discreto e muito respeitoso! Quando eu resolver dar em cima de você de verdade, querido, você nem vai perceber.
Nós três caímos na gargalhada, porque nós três sabemos que eu não sou nada discreto e nada respeitoso. Mas a verdade é que, por baixo de todo esse clima de brincadeira e descontração que rola entre nós, eu morro de medo que Emílio saiba que nada disso é uma brincadeira para mim. Somos amigos desde a infância e tenho um crush em Emílio desde que me descobri, o que é uma merda, porque a última coisa que quero é me tornar o clichê do garoto gay que se apaixona pelo melhor amigo hétero.
Nós ficamos um tempo no nosso canto, tentando acompanhar a música com passos cada vez mais esquisitos, até que Lavínia me cutuca, indicando com a cabeça o grupo de riquinhos do colégio Pádua que domina o meio da pista de dança. Eu conheço a maioria deles e odeio cada um, porque são um bando de babacas privilegiados que te olham de cima, como se eles fossem os donos da cidade e você não passasse de lixo. Mais um motivo para eu querer me mandar dessa cidade de merda.
Mas Lavínia aponta para um cara que está meio afastado, balançando os braços como um ganso desengonçado tentando se enturmar com o bando de cisnes esnobes.
— Eu não conheço aquele ali.
— É o Jonas! — Emílio explica, parando de dançar para secar o suor da testa com as costas da mão. — Conheci ele hoje de manhã quando fui acertar minha matrícula no colégio. Vai ser da nossa sala esse ano e parece ser gente boa.
— É sério que parece gente boa? — eu digo, revirando os olhos. — Eu quero é saber se ele é gay!
— Você quer que todo mundo seja gay — aponta Lavínia.
— Pois o mundo seria um lugar muito melhor se todo mundo fosse gay. E esse Jonas é bonitinho demais para não ser gay.
Enquanto retruco Lavínia, Emílio ri, balançando a cabeça, então faz um gesto com a mão, chamando a atenção de Jonas. Ele se aproxima de nós, o rosto corado pela dança. Está vestindo uma regata listrada de marinheiro colada ao corpo, deixando os músculos à mostra. Nada mau.
— Jonas, quero te apresentar meus amigos, Lavínia e Téo — Emílio diz, apontando para a gente.
Ele sorri, um pouco tímido, nós o cumprimentamos e ficamos naquele primeiro impasse em que você não sabe o que fazer quando acaba de conhecer uma pessoa.
— Então, Jonas, está gostando da festa? — eu acabo dizendo, porque sou sempre eu que tenho que dar o primeiro passo. — Espero que o grupinho de lá não tenha contaminado você ainda.
Jonas olha para o outro grupo de estudantes com uma expressão confusa. Eles passam de um para outro uma latinha muito suspeita e eu tenho certeza que o que tem ali não é refrigerante.
— Como assim?
— O que o Téo quer dizer é que eles não costumam se misturar com quem não seja do mesmo nível social deles — Emílio diz, daquele jeito meio sem graça e apaziguador que é sua marca pessoal. — Ele só está preocupado com o tipo de recepção que você recebeu.
Jonas o encara, sério, e por um instante eu tenho medo de ter estragado uma possível nova amizade logo na primeira frase. Com o meu histórico de amizades fracassadas, isso não seria nenhuma novidade. Mas então Jonas ri pra mim e eu relaxo.
— Minha família não tem nenhum mar de riqueza, mas eu não ligo pra esse tipo de coisa. Na verdade, eu estava era de olho na loirinha de regata rosa.
Nesse momento a decepção deve estar bem visível na minha cara, mas eu a disfarço com uma careta de desgosto.
— Em Bianca? Você não vai querer investir, vai por mim. Além de ser uma patricinha de marca maior, adora ter os garotos rastejando aos seus pés.
— Na verdade, dizem que o pai não deixa que ela namore enquanto o irmão mais velho não arranje uma namorada. — informa Lavínia, estragando todo o meu esforço em desmerecer Bianca.
— Ela tem um irmão? — eu pergunto, fazendo uma careta para ela.
— Fala sério, Téo! Cristiano Batista, ele é da nossa sala.
Quando ela fala, me vem à mente a imagem de um sujeito sisudo com cara de pitbull e andar rígido que eu procuro sempre evitar porque prezo pela minha integridade física. Além do mais, se o que Lavínia diz for mesmo verdade, o pai de Bianca é um grande sacana, porque não tem a menor chance desse cara arranjar uma namorada.
— Me desculpe, eu não costumo prestar atenção em caras esquisitões e antissociais que se sentam na primeira fileira. — então me viro para Jonas. — Mas mesmo assim, ainda acho que Bianca é furada.
— E em quem eu deveria investir então, na sua opinião?
Dou uma piscadinha pra ele, fazendo charme.
— Está olhando pra ele.
— Pelo amor de Deus, Téo!
Lavínia revira os olhos, indignada, mas Jonas cai na gargalhada, o que acho muito bom, porque não quero nenhum homofóbico no meu círculo de amizades.
— Você é uma figura...
— Olha só, falando em Cristiano Batista... — diz Emílio, mudando abruptamente de assunto enquanto aponta com o queixo em direção ao banheiro masculino. — Já é a quinta vez que ele sai do banheiro. Acham que está com diarreia ou se escondendo de alguém?
Olho para trás e o vejo ainda no portal do banheiro, com o olhar perdido. Diferente da irmã, Cristiano tem cabelos e olhos negros, porte de jogador de basquete e umas sobrancelhas grossas que parecem ter mais personalidade que todo o resto junto. Ele anda com os ombros rígidos, como se tivesse medo de se esbarrar em alguém e sujar sua camisa cinza extremamente sem graça (fala sério, quem vai para o carnaval vestindo uma camisa cinza?), e fica parado ao lado de Bianca como um cão de guarda zeloso. Ridículo.
— Pra mim tanto faz — eu dou de ombros.
— Eu voto na diarreia — opina Lavínia e nós quatro caímos na gargalhada.
Começa a tocar uma seleção de marchinhas, como qualquer carnaval de salão interiorano que se preze, e a pista se enche de serpentinas e confetes atirados de todos os lados. Uma fila de trenzinho passa por nós e eu puxo Lavínia comigo para endossar o cordão.
Quando tudo acaba, voltamos para Emílio e Jonas e ficamos apenas rindo e balançando os ombros, e eu me esqueço porque deveria detestar essa festa.
— Olha só, vou dar uma circulada no salão. A gente se vê depois — diz Emílio em certo momento, nos deixando em seguida.
Sei que não devia me incomodar com isso, mas é meio que inevitável.
— Pra onde ele foi? — pergunta Jonas, porque com a música alta, não ouviu o que Emílio disse.
— A pergunta certa é com quem — eu respondo, de mau humor.
Porque é óbvio que ele foi ficar com alguma garota. Porque ele sempre arranja uma garota para se agarrar e deixa a gente na mão. Porque é isso que garotos héteros fazem: saem pra ficar com alguma garota sem se importar com os amigos. Porque eu me incomodo como amigo, e não porque tenho uma paixonite levemente aguda por ele desde o segundo ano.
Mas Lavínia não se incomoda. Eu também não devia me incomodar. Enfim...
— O Vicente não veio — murmura Lavínia muito baixo enquanto nos sentamos ao chão para recuperar o fôlego.
E eu não acredito que ela esteja pensando naquele merdinha em uma hora dessas.
— Ele é um nerd, Lavínia. Nerds não vão a carnavais, eles aproveitam o feriado para fazer maratona de algum jogo violento estúpido, se masturbar na frente do espelho, esse tipo de coisa.
Lavínia abaixa a cabeça, talvez arrependida por ter tocado no nome de Vicente. Mas então se ergue de novo e me encara meio enraivecida.
— Eu não gosto quando você fala assim do Vicente, Téo. Não é legal.
Entre nós, Jonas remexe em sua regata, fazendo um esforço para não se intrometer na nossa conversa, mas visivelmente desconfortável com ela. Acontece que não existe defesa para um sujeito como Vicente, e não vou deixar que Lavínia passe uma ideia errada sobre ele para Jonas.
— Sabe o que também não é legal? Termos chamado ele para se sentar com a gente no primeiro ano e ele falar que não se sentava com viado e preto fedido. Não tente defendê-lo, Lavínia, porque você vai perder. Se Emílio estivesse aqui, concordaria comigo.
Jonas me encara de olhos arregalados. Ele não é exatamente branco. E Lavínia fica muito vermelha, mas não diz mais nada. No fundo, sabe que tenho razão. Eu nunca entendi direito o que Lavínia viu em Vicente. Talvez ela pense que ninguém vai querer ficar com uma gorda como ela além de um nerd virgem escroto. Ela tem esses complexos com o corpo, mas eu não vou deixar minha melhor amiga se envolver com um cara como Vicente. Ela merece mais do que isso.
Todos os jovens do salão gritam quando começa a tocar funk e tenho que encolher as pernas para não ser atropelado pelo bonde da alegria. Mas nós três permanecemos sentados, ainda digerindo a discussão sobre Vicente. Assim como nós, Jonas também não parece do tipo que curte funk.
— Ainda não nos falou nada sobre você — diz Lavínia, lendo meus pensamentos, enquanto inclina-se para Jonas. — Por que sua família veio para cá? Estão gostando da cidade?
— Meu pai era sócio em um escritório de engenharia em Ribeirão Preto, mas o outro sócio passou uma rasteira nele e o escritório teve que ser fechado — ele responde com um sorriso simpático, como se o episódio não fosse um trauma para sua família. — Então ele resolveu nos mudar pra cá e reabrir um escritório menor.
— Eu sinto muito — Lavínia continua. — Deve ser difícil pra vocês virem para uma cidade pequena.
— Nem tanto...
— Você fala isso porque ainda não conheceu Salto Belo de verdade. Assim que descobrir o buraco em que se meteu, vai querer sair correndo daqui.
— Téo quer ir pra São Paulo — explica Lavínia. — Fazer faculdade de Audiovisual.
O rosto de Jonas se ilumina e ele começa a falar de seus planos para o futuro. Eu fico meio que ouvindo de escanteio, mas começo a reparar nos dois juntos. Os sorrisos simpáticos, a conversa que flui fácil. Lavínia e Jonas. Até que eles combinam.
E, neste momento, neste exato momento, tenho uma ideia brilhante: vou aproximar esses dois. Se Emílio diz que Jonas é gente boa, eu confio em seu julgamento. Talvez Jonas seja a chave para Lavínia esquecer Vicente e superar o trauma com o próprio corpo. E ninguém mais que Lavínia merece um cara gente boa como Jonas.
— Escuta, eu tô morrendo de sede — eu digo, me levantando do chão e batendo as mãos para tirar os confetes grudados. — Vou comprar um refri pra gente.
Mas Lavínia se levanta também, exasperada com a possibilidade de ser deixada sozinha com um garoto que mal conhece.
— Eu vou com você.
— De jeito nenhum, vocês dois ficam aqui. Eu volto logo — toco no ombro dela e encaro Jonas, que também se levantou. — Aproveitem o carnaval, crianças.
Dou uma piscadinha, rodando pelo salão enquanto me afasto deles.
O bar está lotado e tenho que esperar uma eternidade para ser atendido. Tem um casal se agarrando na ponta do balcão e involuntariamente me pergunto onde está Emílio. Seria muito constrangedor esbarrar com ele se agarrando com alguma garota aleatória. Emílio é muito discreto em relação às suas ficantes, embora não esconda quando está interessado em alguém. Dessa vez, no entanto, não faço ideia de quem seja a escolhida.
Peço uma sprite para mim e uma coca-cola para Lavínia dividir com Jonas (foi mal, Lavínia, mas terá que passar por mais esse constrangimento). Abro a latinha no balcão mesmo e saio bebendo minha sprite, com a coca na outra mão. Quando estou passando pelo canto do salão, resolvo dar um tempo por ali para que Lavínia e Jonas tenham um tempo a mais. Dou mais um gole na minha sprite. Próximo da entrada do banheiro, tem um grupo de garotas fazendo uma dança esquisita, mexendo com as pernas e os quadris de uma maneira bem sugestiva. Resolvo chamar aquilo de dança do acasalamento e por um momento me distraio, rindo das garotas. Então me viro para continuar meu caminho, ainda rindo, quando trombo com um armário cinza, derramando toda a sprite naquele monumento incrivelmente sem graça.
— Ops...
Por um instante, me sinto em uma comédia romântica ruim dos anos 90. Mas só por um instante. Quando olho para cima, me deparo com o olhar mortal de Cristiano Batista, prestes a me trucidar com seu porte físico de goleiro e suas sobrancelhas de vilão de desenho animado.
— Você não olha por onde anda? — ele acusa, irritadíssimo, e eu me encolho inconscientemente.
— Me desculpe, eu não tinha te visto.
— Como não me viu? Estamos praticamente na entrada do banheiro masculino, é impossível não ter me visto. Ou você é cego ou fez de propósito para se atirar em mim.
Mas é claro. É claro que tinha que ser isso! Mais um riquinho homofóbico que se acha o dono do mundo. Sinto o sangue subir pelas minhas veias e nem me importo que esteja juntando gente ao redor. Esse idiota não vai se dar bem para cima de mim, não mesmo.
— E por que eu me atiraria em algo tão sem graça e sem cor quanto você? Da próxima vez que for para um carnaval, experimente usar uma camisa um pouco mais colorida, aí sim, talvez você seja notado.
Observo o rosto dele passar de vermelho para roxo. Ele fecha os punhos e trinca os dentes, a sprite derramada formando uma enorme mancha cinza escura em sua camiseta, mas não move um centímetro contra mim. Parece travar uma intensa batalha interna.
— Fique longe de mim, antes que eu perca a paciência.
Eu penso em retrucar com alguma resposta espertinha, mas prefiro dar o assunto por encerrado. Por mais babaca que seja, não quero me meter em uma briga na última semana antes do começo das aulas, principalmente com um cara que terei que conviver até o fim do ano.
— Com o maior prazer, querido! — eu digo, reunindo o máximo de desprezo na última palavra, jogando o cabelo na cara dele antes de fazer uma saída dramática e deixá-lo ainda mais irritado.
Pelo visto, teremos um terceiro ano bem interessante.
Oi amores, como vocês estão?
O que acharam desse primeiro capítulo? Quem concorda com o Téo de que esse ano dará o que falar? hehehe
Essa é a primeira história que eu escrevo em primeira pessoa e no presente, então pode ser que fique meio estranho no começo. Por favor, tenham paciência comigo.
Se gostou, deixe seu voto e seu comentário, o engajamento de vocês é muito importante para a visibilidade da história.
Nos vemos no próximo capítulo ;)
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