REVELAÇÃO
— Meu garoto. Esta festinha tá o aço. Cheio de piranha dando mole e eu sem o meu parceiro de crime.
Max riu enquanto caminhava e falava ao telefone com o amigo:
— Jesus. Me escuta. Eu vou rápido no CCS pra ajudar a Fernanda porque ela se enrolou. Em 1 horinha eu estarei contigo na festa e juro que serei o seu fiel escudeiro. 1 hora. Não bebe sem mim.
— Caraca. Tão te esfolando nesse laboratório meu brother. Tá deixando seu amigo de lado. Pior, tá deixando as piranhas de lado. Elas estão todas deprimidas... — ouviu-se um barulho de estrondo e mexidas — foi mal. Deixei até o celular cair por causa dessa delicia que passou aqui... — Seguiu-se o silêncio...
— Jesus... O safado desligou — Max já se aproximava da entrada. — Fala tricolor. 3 a 1 é sacanagem. Carioca é obrigação. — cumprimentou o porteiro José como sempre fazia. Não prestou muita atenção na resposta, algo sobre escalação e técnico novo, e desceu as escadas para o subsolo. Queria acabar logo com aquilo, pois a festa parecia estar realmente boa. Fernanda já poderia ter aprendido a revelar um blot. Sexta a noite e eu vindo salvar marmanjo. Max estava chateado com a situação, mas não demonstrou ao encontrar a moça sentada em sua bancada.
— Ai desculpa. Ainda fico insegura na hora de revelar. — A voz masculinizada não tinha nada a ver com seu rosto angelical. Isso era intrigante.
— Vamos lá. Você vai fazendo enquanto eu vejo se tem algo errado.
Fernanda Riu:
— Parece que eu sou a aluna de iniciação.
Parece mesmo. Max pensou, mas seu rosto apenas sorriu dissimuladamente.
A técnica era relativamente simples e Max já havia explicado centenas de vezes: Correr a amostra previamente preparada na cuba de eletroforese para distribuir as proteínas bacterianas ao longo da malha do gel de acordo com seu peso; Tratar o gel com anticorpos específicos para a proteína que está procurando e, estes anticorpos, grudarão apenas nela; tratar o gel novamente com um anticorpo fluorescente específico para o primeiro anticorpo. Uma espécie de anti-anticorpo. Até aí a Garota fazia bem, o problema sempre era a última etapa do processo: A revelação, ou seja, o ato de aplicar uma substância reagente que faz o segundo anticorpo brilhar e queimar o filme fotográfico, formando o padrão conhecido como Western blotting. A questão é que essa etapa deve ser feita numa câmara escura, como se estivesse revelando uma fotografia, e Fernanda não gostava muito de ir sozinha.
Após 40 minutos de tentativas frustradas sob a luz vermelha, o rapaz tomou as rédeas e finalmente terminou a etapa para a mestranda. Geralmente tinha mais paciência, mas já estava quase se esgotando o tempo que pedira que o amigo esperasse e o sorriso no rosto de Fernanda revelava que ele havia feito exatamente o que ela queria quando o chamou.
Já na bancada, enquanto Max se preparava para sair, Fernanda se sentou bem próximo a ele, a aponto da parte interna da coxa da menina encostar na coxa dele
— Prometo que agora entendi — pegou na mão dele e sorria docemente. Estava realmente agradecida, mas não era apenas isso. Max podia sentir uma certa tensão no ar.
— Você pode me chamar sempre que quiser... que precisar né.
— E se eu apenas quiser? Não posso te chamar? — sua boca permaneceu entreaberta e o olhar constante mirava os lábios do rapaz.
Definitivamente estava rolando um clima naquele lugar e Max, apesar de ter quase certeza de que ela era lésbica, não deixaria escapar essa oportunidade.
— E o que você quer agora? — agora o rapaz investiu seu tronco pra perto da menina, deixando-a com a opção lógica de beijá-lo.
Com um riso esperto de quem conseguiu o que queria, a mulher se levantou, afastando-se friamente de Max e de sua investida:
— Eu não sei se você sabe, mas eu sou médica num hospital em Belford Roxo. Somos dois Médicos no plantão noturno de sexta e costumamos contratar um aluno de medicina para nos cobrir de meia-noite as 7, enquanto dormimos. O cara que costuma fazer isso pra gente furou na semana passada e, como já não era muito inteligente mesmo, resolvemos mandá-lo embora.
Max sabia daquilo tudo, mas estava muito excitado e tentando entender a situação que os levou aquele assunto:
— O que você está querendo dizer?
— Estamos precisando de um acadêmico pra hoje. Você é bem esperto e eu confio totalmente nas tuas condutas. Se quiser, pagaremos 500 reais ao final do plantão. Nunca chega nada de madrugada. No máximo um ou outro bêbado e alguns cortes pra costurar. Tô saindo daqui direto pra lá, já te dou uma carona. O que você acha?
A oferta era tentadora e o rapaz, além de precisar da grana, tinha confiança em seu conhecimento para encarar um plantão noturno. Não devia ser tão difícil e ela disse que quase não aparecia ninguém. O que ele não soubesse poderia consultar no Blackbook. No entanto, o fantasma da consciência resolver bater naquela hora. Isso é plantão ilegal. Se eu for pego, perco o direito ao diploma e ainda sou preso. Não estava preparado para esta consequência.
— Muito obrigado Fernanda, mas acho que vou recusar. Tô só no segundo ano e tenho medo de ser preso... você sabe né? — respondeu triste. Sua voz fraquejou um pouco.
— Tem certeza? Todo mundo faz isso. É só não dar mole. Sei que esse dinheiro te ajudaria. To mentindo? — perguntou como quem afirmava. O clima romântico já havia se dissipado daquele lugar e deu lugar a uma angustia. Max se sentia usado. Não havia nenhuma tensão sexual ali. Ela só me deu mole pra poder me amaciar. Que filha da puta.
— Tô na boa. — Pegou a sua mochila com o rosto sério e se dirigiu a porta. — Boa noite.
Já eram 18:56 quando Max chegou na Festa. A rua de asfalto irregular passava em frente ao prédio da Geografia, uma estrutura imponente e com arquitetura antiga bem preservada. Não era o caminho mais curto, mas Max gostava de caminhar por ali. Levou menos de 10 minutos pra chegar andando. O espaço usualmente escolhido era no próprio campus, num largo gramado colado numa pequena lagoa, afastado dos olhares da direção. Os veteranos do Centro acadêmico costumavam fazer esses eventos para arrecadar dinheiro com a venda de cerveja e para, segundo eles diziam, promover a união acadêmica. — Promover uma putaria acadêmica né.— Foi o que Jesus comentou quando ouviu esse argumento pela primeira vez. O lugar estava bem cheio, devia haver umas mil pessoas ali. DJ e música eletrônica animavam o lugar, que era iluminado basicamente por tochas artificiais e estroboscópios. Havia Estudantes da UFRJ e de outras faculdades, alguns professores mais novos que gostavam de interagir com as alunas mais assanhadas e também médicos residentes do hospital universitário. Era um grande evento com entrada gratuita e Max não perdia essas oportunidades. Com 20 reais no bolso dava pra tomar umas cervejas e, se desse sorte, ainda transaria com alguma caloura bêbada em seu quartinho de empregada no Covil. Era um paraíso.
— Isso aqui é o Paraíso — disse Jesus ao abraçar o amigo por trás o assustando. Notou que o rapaz estava bêbado e provavelmente drogado.
— Te deixo sozinho por uma hora e você fica bêbado sem mim?
— Não bebi nenhuma gota de álcool — Beijou os dois dedos indicadores cruzados pra dar credibilidade. Max acreditou. Estava apenas chapado. — Vamos começar os trabalhos. A primeira rodada é minha. — Mostrou um bolo com umas 20 fichas para comprar bebidas e abraçou o amigo pelo ombro, conduzindo-o para a barraca de cerveja mais próxima.
Duas horas se passaram e as fichas ainda estavam na metade, quando o DJ começou a tocar forró. Era o momento de tirar alguém pra dançar. A hora que separava os caras que transavam dos caras que vomitavam, sempre dizia Jesus. Max não gostava muito de dançar, mas tinha que admitir que era muito eficaz com as garotas. Assim que foi morar no Covil e começou a frequentar regularmente aquele tipo de festas, o colega fez questão de lhe ensinar alguns passos básicos em sessões, constrangedoras, com os dois dançando colados no terraço. Dois pra lá, dois pra cá... abriu... girou... trocou de mão... girou... puxou pra perto com rosto colado... dois pra lá, dois pra cá... Max repassou de olhos fechados criando imagens mentais. Quando abriu os olhos, Jesus já havia sumido de seu campo de visão. Provavelmente havia se atracado com uma garota em que estava de olho desde o início da festa.
— Viado — Estou sozinho. Geralmente Max dançava com a amiga da vítima do amigo, ou vice e versa, mas naquele momento estava por conta própria. Esticou o pescoço e deu mais uma checada em vão. O lugar era escuro e não adiantaria sair em busca dele. A música estava quase na metade e geralmente aquele DJ tocava apenas 1 ou 2 danças. Concentrou-se e tirou pra dançar a primeira garota que passou sozinha na sua frente. Max se arrependeu de cara da péssima escolha que fez. A menina bem-vestida, de olhos castanhos arregalados e espantados, talvez por causa do puxão que recebera em vez de um convite formal para dançar, era nada menos que Camila Conteu, patricinha mais caricata da turma de Max. Uma versão nacional daqueles arquétipos americanos. Para se ter uma ideia, ela dirigia uma BMW conversível que o rapaz nem sabia que existia. Era filha do deputado federal Ricardo Conteu, figura cotada para ser o próximo governador do estado do rio de Janeiro. Camila nunca havia direcionado um olhar sequer para Max ou pra qualquer um fora da sua bolha social. O rapaz também não ligava muito. No entanto, naquela noite, naquele momento, estavam dançando juntos. Estranhou o fato dela o acompanhar mesmo que em silêncio. O olhar assustado daquele rosto que parecia esculpido de tão bonito deu lugar ao que rapaz deduziu ser curiosidade. Dançaram calados por uns 30 segundos. Havia uma barreira gigante e invisível entre os dois que ele não seria capaz de quebrar. Ela resolveu fazer:
— Eu te conheço de algum lugar? Era a pergunta mais constrangedora que poderia ser feita naquele momento. Estudavam juntos ha mais de um ano e ela sequer sabia disso. Max tirava as melhores notas da turma e mesmo que ela não desse muita bola pra ele, achava que ao menos a sua existência deveria ser notada. Tomou coragem, manteve um rosto de paisagem, respirou fundo e respondeu sem medo:
— Não.— girou a moça como havia ensaiado com jesus, e a puxou pra bem perto do seu rosto sem perder o ritmo. Ela soltou um gritinho e deixou escapar um sorriso breve — Sou do segundo ano de medicina. Você estuda aqui?
A garota permaneceu séria. — Então somos da mesma turma. Sabia que te conhecia.— O sorriso deu lugar a um ar de seriedade — Não fica animadinho não, hein. Sou noiva e não vamos ficar de jeito nenhum.
Max sabia disso também. Seu noivo, Dr Gustavo, era residente de Neurocirurgia no hospital Universitário. Além de muito rico, ele era herdeiro de um famoso empresário da noite carioca. Cansou de aparecer em entrevistas e reportagens de revistas. Certamente seria um casamento comentado por anos, cheio de repórteres na porta e convidados importantes.
— Na verdade, eu te puxei pra ver se você não poderia me apresentar alguma amiga, mas pelo que eu estou vendo você está interessada demais para me fazer esse favor.
— Que besteira é essa que você está falando. Acabei de dizer que tenho noivo. — deu 2 tapas leves no peito de Max.
— Eu ouvi sim, mas vi também que você desviou o olhar quando falou dele. Vi que você usou a palavra não umas três vezes, além de fazer negativa com a cabeça. Está tentando me convencer ou se convencer de alguma mentira. Como não me conhece, imagino que esse esforço seja para você mesma. Se valesse alguma coisa eu apostaria que esse noivado não é exatamente o que você quer. Apostaria também que essa dança é a primeira coisa real e espontânea que você fez hoje. — O rapaz gostou do que tinha acabado de falar. Valeu a pena traduzir para o pessoal de psicologia. A garota ficou séria, como se digerisse o que acabara de ouvir. Max retirou uma mexa de cabelo do rosto perfeito da colega de classe que o encarava pensativa. — Acho que vou fazer mais uma aposta. — Beijou-a abruptamente e ela correspondeu por 5 segundos, que pareceram dias para Max. Seu coração saltava e nunca havia sentido algo parecido antes. Tudo era perfeito até uma dor alucinante tomar a lateral do seu rosto o jogando no chão.
Seguiram-se vários chutes e Max só conseguia proteger o rosto. Não foi capaz de enxergar quem o agredia, mas já havia passado por aquela situação antes. Foi criado num bairro perigoso e estudou em escolas piores que qualquer prisão. Frequentou as rodas de capoeira do mestre Henrique a sua vida toda. Esperou calmamente o espaço para poder rolar para trás, em um movimento majestoso, e se por de pé rapidamente para encarar o seu oponente. Sorriu ao perceber que se tratava do noivo enfurecido. Seus olhos emanavam raiva e seus dentes estavam trincados como os de um animal feroz. Por trás de sua cabeça era possível ver Camila chorando e sendo consolada por uma amiga. Acho que perdi a aposta.
— Vou tirar esse sorrisinho do teu rosto, seu favelado. Você vai aprender a não mexer com a mulher de um homem. — gritou Gustavo com o dedo indicador apontado para Max. Uma roda se abriu para que os dois se enfrentassem.
— Tomara que você tenha uma arma. — começou a se aproximar lentamente do residente, limpando o sangue no canto da boca — porque é a única forma de você sair vitorioso daqui. — Seu sorriso era de quem estava gostando da situação — Vou devolver cada golpe que você me deu. — Desviou habilidosamente de um soco e deu um chute perfeito na boca do estômago de Gustavo, deixando-o de joelhos — E foram 9. — Desferiu um bico por entre as pernas que levou o público a urrar junto com o médico.
Um amigo de Gustavo se aproximou pelas costas de Max, que só teve tempo de se virar para ver, como em câmera lenta, uma lata de cerveja ser amassada no rosto do brutamonte, nocauteando-o. Era Jesus com a sua mira providencial, acertando um arremesso a 30 metros de distância. Max agradeceu com um aceno e caminhou em direção ao corpo em posição fetal no centro da roda. O silêncio tomou o lugar. Todos queriam saber qual seria o próximo passo. A briga havia acabado antes do que Max previra.
— 2 golpes — levantou o rosto de Gustavo pelos cabelos espetados ainda molhados com gel. Seu olhar era de súplica e derrota — Você é idiota? Não pode entrar em brigas que não tem condições de vencer.
O silêncio e a roda foram quebrados com o som da sirene. Alguém havia chamado a polícia do campus e em menos de 10 segundos já havia 3 armas de choque apontadas para Max. Também não era a primeira vez que isso acontecia. Colocou as mão para o alto e se deixou ser levado. Ao menos ganhei a briga. — pensou — e um beijo — sorriu.
Foi levado diretamente para a delegacia da ilha do governador. O delegado interrompeu Max no meio do relato:
— Você se meteu com o genro do Conteu. Sabe o tamanho da merda que fez? Se ele quiser você fica preso por dois anos. — O delegado levantou e ofereceu uma bala para o rapaz. — Já enviei uma mensagem para o teu pai e ele já está vindo aí.
— Cara, não precisa. A culpa foi do playboy...
— Max — interrompeu o policial — você se meteu com a família mais perigosa do rio de janeiro. Estão envolvidos em tudo. É claro que eu ia avisar pro teu pai. Servimos juntos. Te vi nascer.
— Eu sei Matheus — levantou as mãos em sinal de rendição — você e meu pai são amigos e eu agradeço a sua preocupação, mas nós dois brigamos e eu não queria encontrar com ele nessa situação. Quebra essa vai.
O delegado, homem gordo com olho esquerdo estrábico e cabelos raspados, balançou a cabeça em negativa:
— Porra Max, teu pai tá fudido sem você lá. Perdeu sua mãe e agora não tem o filho. Pelo menos conversa com o cara.
O rapaz olhou fixamente para o policial e uma lágrima caiu de seu olho:
— Ele me bateu todos os dias depois que minha mãe foi embora. Me fala, você bate no teu filho? — Fungou o nariz, segurando o choro — O teu amigo é um bêbado e não merece ninguém na vida dele. Por favor, não me faça reviver esse terror.
Os olhos do delegado já brilhavam. Foi liberado sem ter que ver o pai.
No táxi, no meio da estrada do galeão, que dava acesso à saída da ilha do governador, Max olhou a hora no celular e viu que já eram 23:50. Sua cabeça latejava de dor, mas o que mais doía era lembrar de ter sido chamado de favelado. Aquilo nunca mais iria se repetir. Viu uma motocicleta ultrapassando o veículo a toda velocidade e traçou imediatamente o seu plano.
— Motorista, quanto tempo até Belford Roxo?
— 30 minutinhos.
Pegou o celular, discou um número da agenda e esperou chamar:
— Alô — a voz feminina, meio masculinizada, atendeu após dois toques.
— Fernanda. Ainda precisa de um bom acadêmico?
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