Mudança de Regras
— Mil reais — Fernanda sorriu ao entregar o bolo de notas de 50 para Max assim que ele chegou ao plantão — o Rubens já depositou a outra metade na tua conta. Ele está bem contente com o seu trabalho. Recebeu agradecimentos na ouvidoria por conta do infarto que você diagnosticou na semana retrasada. — se aproximou e deu um beijo bem perto da orelha do rapaz. — não vai gastar tudo com pornô. — sussurrou com uma voz sensual. Max já estava acostumado com aquelas piadas e brincadeiras sempre que recebia seu salário no começo de cada mês.
— Tem algum paciente pra me passar? — desconversou rapidamente. Não tinha mais paciência para os joguinhos de Fernanda.
Ela o encarou seriamente como se não tivesse gostado da falta de esportividade do colega:
— Dona Irene está internada na sala amarela. Falta de ar novamente.
— Não tomou os remédios da pressão de novo?
— Exatamente. Disse que estava sem dinheiro pra comprar. Chegou em franca dispneia. O coração já está insuficiente. Está estável, mas bem fraca.
— Vou lá dar uma olhada mais tarde. — olhou para a janela suja que mostrava um céu sem estrelas e tornou a encarar a colega — parece que vai chover. Talvez o plantão seja mais tranquilo.
— Boa sorte. — sorriu — se não aparecer ninguém pode vir dormir no quarto — deu uma leve piscada, mas Max não caia mais na conversa dela.
Em silêncio, foi para o consultório 1, onde costumava atender e onde o sinal do celular lhe permitia acessar a internet caso precisasse. Já havia 3 fichas de pacientes na sala de espera. Atendeu todos com paciência e cuidado. A menina de 14 anos que achava que estava grávida, a criança com o nariz escorrendo há 2 dias e o motorista de ônibus que só queria um atestado médico para não precisar trabalhar. Nada de novo naquela madrugada de sexta para sábado no hospital Municipal de Belford Roxo. Fazia 6 meses que trabalhava ali, mas parecia uma eternidade. Será que é isso mesmo que eu quero?
Lia seus textos após as 2 da manhã, horário em que os atendimentos bobos costumavam encerrar. Até tirava alguns cochilos no quarto dos médicos em dias frios ou de chuva. Tinha esperança daquele ser um destes dias. Não interagia muito com os outros funcionários, para não se expor mais ainda. Contudo, de certa forma, tinha certeza de que todos sabiam que era um falso médico.
Uma cabeça apareceu na porta entreaberta do consultório minúsculo de paredes encardidas. Uma moça jovem, de uns 20 anos, no máximo, olhos negros e pele escura. Bonita, mas não linda. Cabelos bem presos em um coque quase militar:
— O doutor aceita um cafezinho? Acabei de passar — a mulher sorriu e mordeu os lábios de uma forma atrevida.
— Oi Carla. — Max respondeu sério — Hoje não. Vou ver se a chuva me deixa dormir um pouco. — mas muito obrigado.
— de nada. — a moça entrou e fechou a porta atrás de si. — você vai continuar me tratando assim? — sussurrou — eu fiz alguma coisa errada?
Max não falaria, mas assim que começou no plantão ele se envolvera com aquela jovem técnica de enfermagem, mãe solteira e carente que conheceu ali. Tiveram encontros íntimos nos quartos e salas vazios durante uns 2 meses. Contudo, ela pareceu ter a mente instável quando começou a cobrar sua presença em eventos e a contestar suas atividades fora do hospital. Enviava mensagens 3 vezes ao dia. Achou melhor se afastar, mas ela insistia em querer explicações.
— Claro que não. — Fechou o livro que tinha em mãos — eu que estou com a cabeça cheia de coisas. A faculdade está me apertando. Não tô conseguindo conciliar o laboratório e os plantões. — fez uma pausa e meneou a cabeça em negação – Acho muita sacanagem te envolver nessa porcaria toda. Você merece alguém melhor e que te dê a atenção que merece.
— Eu entendo você — ela se aproximou perigosamente se sentando na mesa — Não precisa me dar muita atenção. Só quero que nós dois fiquemos juntos. — se aproximou mais na tentativa de encontrar os lábios do rapaz.
— Sim — Max desviou — e tem a questão do trabalho também — levantou-se rapidamente — pessoal já está comentando e eu não posso perder o emprego.
— Então nos encontramos em outro lugar — atirou-se rapidamente e agarrou a cintura do rapaz com as duas mãos — estou com saudades — desferiu um beijo molhado no canto da boca de Max, fazendo-o se excitar imediatamente.
— Acho melhor nos encontrarmos lá fora mesmo — se afastou tentando esconder o volume nas calças — vamos combinar direitinho — abriu a porta e deu uma leve vasculhada na sala de espera antes de sair do consultório. — Preciso beber água — se desculpou antes de deixar Carla sozinha e sorrindo vitoriosa em sua sala.
Aproveitou para ir se deitar. A rua do hospital sempre alagava quando chovia e naquela noite estava caindo um aguaceiro. Ninguém se aventuraria naquela lama. Já quase sonhava quando sentiu uma mão tocando a sua perna.
— Doutor — reconheceu a voz de Carla sussurrando — chegou um paciente.
Max se levantou com cuidado para não acordar Fernanda e Rubens, que dormiam nas camas no fundo do quarto pequeno com 4 beliches de madeira amontoadas.
— é algo grave? — perguntou olhando o relógio de pulso que mostrava 2:37 da madrugada.
— Família está muito preocupada — respondeu seriamente antes de fechar a porta.
Podia-se ouvir um falatório na sala de espera, devia haver muitas pessoas. Max confirmou suas suspeitas ao contar sete indivíduos. Três mulheres de meia idade com aqueles que pareciam ser seus maridos ou irmãos e um adolescente vestido de preto e com fones de ouvido. Passou por todos distribuindo sorrisos breves e a conversa sessou imediatamente.
Na sala, sentada na maca que ficava na parede esquerda, estava uma senhora idosa, que aparentava uns 70 anos, vestindo um pijama branco com flores rosas. Cabelos brancos lisos com um arco dourado prendendo. Olhos verdes tão claros e belos que destoavam da pele enrugada e manchada. Max notou um breve sorriso mantido no lado direito da boca. Sobrancelha um pouco caída no lado esquerdo.
— Dona Joana — leu em voz alta o nome da paciente ao pegar a ficha sobre a mesa — o que aconteceu com essa moça?
A velha ensaiou uma expressão feliz, mas o lado esquerdo do rosto não se moveu. Já havia feito aquele diagnóstico antes.
— Boa noite, doutor? — falou a mulher alta e loira, com cara de sapo, maquiada e com cabelos longos bem escovados.
— Rubens — reproduziu o nome que a mulher veria em seu carimbo. — qual a emergência da Dona Joana?
— Doutor Rubens, ela começou a sentir uma dormência no rosto por volta de meia-noite, pensamos que fosse a pressão dela e demos um captopril em baixo da língua, mas só está piorando. Agora ela está dormente no corpo todo.
— Nos dois lados? — desta vez se virou para a paciente.
— Só desse lado, meu filho — apontou para o lado esquerdo com a outra mão.
— E a senhora já toma algum remédio pra alguma doença?
— Ela teve um infarto no ano passado, mas é teimosa e não toma os remédios da arritmia e nem o da pressão.
Era toda a informação que precisava. Max se pôs a examinar a senhorinha. Teste de reflexos e nervos cranianos. Tudo bem rápido e preciso. Quem o via fazendo aquilo jamais imaginaria que não se tratava de um médico formado e sim um estudante. Dois minutos depois, foi dado o veredito:
— Sua mãe está tendo um acidente vascular cerebral. Pelo exame físico parece que a artéria cerebral média direita está abstruída. Ela precisa de uma tomografia pra descartar uma lesão hemorrágica, mas eu tenho quase certeza, pela história dela, que se trata de um evento isquêmico. — os familiares se entreolharam confusos e Max percebeu o erro que cometera — Um derrame. Falta de sangue no cérebro.
— Meu Deus. Minha mãe morreu disso. — A idosa se pôs a chorar.
— Ai doutor — a mulher alta começou a implorar — salva a minha mãe, pelo amor de Deus.
O jovem sentiu um pesar e concluiu que deveria ter sido mais cuidadoso em suas palavras:
— Mas tem menos de 3 horas do início do quadro. Podemos tentar um tratamento com trombolíticos se vocês permitirem. Os resultados são bons e as sequelas são mínimas. É arriscado sem a tomografia, mas perderemos a janela de tratamento se tentarmos esse exame agora. As ruas estão alagadas e a tomografia é feita em outro hospital. Geralmente demoram algumas horas pra conseguir vaga. Vocês devem decidir agora. Seguiu-se um silêncio constrangedor por alguns segundos.
A mulher com cara de sapo se aproximou de Max:
— dá tempo de ligar para a minha sobrinha. Ela é médica também. O senhor pode explicar o caso pra ela?
— Posso explicar pra quem estiver aqui no hospital. Não vou falar com ninguém por telefone. — respondeu secamente. Aquilo estava prestes a tomar proporções maiores. — vou ajeitar a papelada da tomografia então. Talvez consigamos pra segunda feira — pressionou.
— Pode fazer. Trata a minha mãe doutor — confirmou com a cabeça para os familiares que olhavam com um ar de esperança.
Max sorriu, mas logo veio a preocupação. Nunca havia trombolisado alguém antes. Era uma técnica delicada que exigia monitorização e atenção máximas. Qualquer erro resultaria em sequelas piores.
Todos os técnicos foram acordados pra tal feito. O tratamento durava cerca de 4 horas e os danos neurológicos desapareceriam assim que o sangue voltasse a circular na região do cérebro afetada. No entanto, se passasse do ponto, o paciente teria uma hemorragia cerebral e seu quadro poderia piorar. Alguém tinha de vigiar o tempo todo. Vai dar certo. Tem que dar certo.
Duas horas após o início do tratamento, a perna esquerda de Dona Joana começou a formigar. Era uma ótima notícia, pois a sensibilidade estava retornando. Precisava dar aquela boa nova aos familiares. Bebeu o café que Carla lhe tinha oferecido e quase o vomitou ao retornar a sala de espera. Camila estava lá. Ela parece ter tido a mesma reação, pois seus olhos estavam esbugalhados de espanto.
— Doutor Rubens — A filha com cara de sapo se aproximou — essa é a minha sobrinha. O senhor pode explicar tudo pra ela. — Max arregalou os olhos ao ver a garota de calças molhadas até os joelhos a sua frente.
— Oi doutor Rubens. — a garota estendeu a mão direita — prazer te conhecer — fez uma pequena pausa — doutor Rubens? — um olhar de raiva e curiosidade rasgava o ar.
— Prazer — Max apertou a mão da colega de classe torcendo que ela continuasse dissimulando — a senhora pode me acompanhar a sala vermelha pra eu te explicar tudo o que foi feito? — colocou a mão esquerda nas costas da moça e a conduziu, quase que a força, para fora dali.
— você tá maluco? — sussurrou enquanto dava tapas fortes no braço de Max assim que entraram na sala vermelha. — Vai matar a minha avó. Vou te denunciar cara. Você vai preso pro resto da vida.
Max segurou Camila pelos ombros:
— Espera um pouco — se aproximou do leito onde dona Joana repousava e fez um carinho em sua cabeça — olha quem está aqui — a senhora se virou para olhar a neta e abriu um largo, lindo e simétrico sorriso.
— Minha netinha — levantou a mão esquerda, abrindo e fechando a mão que antes não se mexia — o doutor me deixou boa.
Uma lágrima correu do olho da garota:
— Que maravilha vozinha — virou-se pra Max — como isso é possível?
— Ela teve um AVE da cerebral média direita. Diagnostiquei e optei por arriscar a trombólise em vez de seguir o protocolo. A espera por uma tomografia faria ela piorar cada vez mais. Ela vai ficar bem. Ainda precisará fazer a tomografia e outros exames, mas com os medicamentos certos ela não terá nenhuma sequela e evitaremos novos eventos.
Camila abraçou Max com toda a sua força:
— Obrigada — soluçou em pranto — você salvou a melhor parte de mim — se afastou e encarou o rapaz — e eu conheci a melhor parte de você.
Max e Camila observaram juntos a ambulância que levava Dona Joana para o hospital Particular pago com o dinheiro dos Conteu.
— Ainda não entendi direito — Camila indagou — Você trabalha aqui podendo perder o seu diploma. Não tem medo?
— Morro de medo todos os dias da minha vida, mas não tenho tanta grana quanto você — tomou um gole do café em sua mão — Isso é temporário. Só quero comprar a minha moto e largo isso aqui.
— Deixa eu te emprestar esse dinheiro? Me paga quando se formar. Está se arriscando muito.
— Você nem me conhece garota. — desviou o olhar para encará-la — quem te disse que quero seu dinheiro?
A garota segurou a mão livre de Max:
— desculpa. Você tem razão. Eu não te conheço. Mas eu sei o que eu vejo tá. Fez uma prova de Neurocirurgia em 10 minutos. Trombolizou um paciente com derrame e ainda está no terceiro ano da faculdade. Quem sabe o que mais você consegue fazer. Você precisa se formar. Você ainda pode ajudar muita gente. Eu tenho medo de algo acontecer contigo.
— Não vai acontecer nada. E eu espero que você não comente o que aconteceu hoje com ninguém.
— Claro que não. Eu que estou te devendo.
Max sorriu e beijou a mão da garota.
— Estamos quites então. O episódio da festa foi meio ridículo, né?
— Foi. Eu nem dormi naquela noite.
— Sério? — O rapaz coçou a própria cabeça como quem fez uma travessura — o beijo foi tão ruim assim?
Camila deu uns tapas de brincadeira no braço de Max. Ela parecia gostar de bater nas pessoas.
— não garoto. O beijo até que foi bom. — suas bochechas coraram — Mas você falou que eu era superficial e que vivia uma mentira.
— Desculpa eu não devia....
— Não.— interrompeu Camila — Você estava certo. Vivo nessa bolha que meu pai fez pra mim. Minha avó não tomava nenhum dos remédios da pressão e eu nem sabia.
— isso é uma coisa que eu queria perguntar: Você tem família em Belford Roxo?
— por parte de mãe. Depois que ela morreu meu pai fez questão de me afastar deles. Pior é que eu deixei.
O sol já havia raiado naquela hora. Max viu que já eram quase 7 horas e seu plantão estava acabando. Lembrou que tinha mil reais no bolso e que a garota mais linda que já conheceu estava ali na sua frente.
— Você quer ir a praia? — perguntou se aproximando da garota — deu um solzinho na previsão do tempo e eu odeio ir sozinho.
Camila riu o sorriso mais bonito e autêntico que podia. Ela tinha os traços da avó. Mordeu o lábio inferior e respondeu:
— Meu pai tem uma casa em Angra. Podemos chamar um pessoal, sei lá.
— Ou podemos ir agora, pra qualquer praia que quisermos, sem que ninguém saiba — se aproximou mais um pouco e a beijou lentamente. Desta vez foi mais demorado.
Carla observava aquela cena da janela. Seus olhos brilhavam e estava prestes a chorar.
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