A Prova
— Caralho. Tô fudido — vociferou para si mesmo em tom de raiva. Culpou-se por ter dormido demais, após atender o último paciente da madrugada. Não tinha o costume de trabalhar nas madrugadas de domingo, mas Doutor Rubens, médico e dono do carimbo, lhe pagaria muito bem pelo serviço. Tinha certeza de que conseguiria acordar ao som do despertador, mas não contou com o cansaço extremo. Também havia trabalhado na sexta. Além disso, passou o tempo livre do fim de semana traduzindo artigos de revisão para alguns colegas de faculdade. Era de onde saía a graninha do chopp.
Pegou seu velho celular. - Preciso de um novo – e digitou rapidamente o número que sabia de cor:
— Jesus. Não deixa ninguém sair de sala — quase ordenou, enquanto terminava de pegar sua carteira e mochila em cima da cama de ferro ainda desarrumada. — consigo chegar em uma hora mais ou menos. Não deixa ninguém sair da sala, senão fico direto na recuperação.
Antes que o amigo pudesse responder algo, Max já estava pegando o táxi em frente ao hospital geral de Belford Roxo. Seu destino? A prova de Neurocirurgia que definiria a sua entrada no internato de medicina. A distância entre o hospital e faculdade era de 25 km. De carro, aquela hora, segundo seus cálculos e experiência, poderia chegar em 90 minutos, se tivesse alguma sorte. Só que a prova começaria as 9 hs, logo, se tudo desse certo e ele chegasse, teria cerca de 10 minutos para concluir o teste. Isto se nenhum aluno terminasse antes e saísse de sala. O que anularia seus esforços de chegar a tempo.
Após 5 minutos, ainda estava preso em um engarrafamento nada promissor e não havia chegado sequer na Avenida Brasil, via expressa que ligava a baixada ao centro da cidade. O motorista, mesmo sem o jovem prestar muita atenção, explanava a sua opinião, um tanto preconceituosa, sobre um atentado terrorista que acontecera em Angola naquela semana, quando Max teve um estalo. Isso pode dar certo. O jovem percebeu uma horda de motos cortando os corredores que se formavam entre os carros. Pagou 10 reais ao taxista e saiu do veículo amarelo, em meio ao trânsito, num calor sobrenatural, fazendo gestos desesperados para que algum motociclista o visse.
— Ei. Ei. Me ajuda — gritava enquanto seus braços acenavam aos céus.
— tá maluco? Vai morrer assim — falou o homem numa Harley vermelha que desacelerou.
— 100 reais pra me levar ao fundão. O mais rápido possível. Sou estudante de medicina e tenho uma prova daqui a pouco.
O senhor negro, de barba branca, tinha cara de ter uns 50 anos de idade. Meneou a cabeça em negação, olhando bem pro rosto do rapaz. Fez um gesto de aceitação, como quem dissesse um "Foda-se":
— é um zé bunda mesmo. Sobe logo — entregou um capacete amarelo ao rapaz, que subiu na garupa da moto, agradecendo o gesto do bom homem, que arrancou depressa.
O trajeto melhorou muito. Todo o percurso foi feito em menos de 50 minutos. Max contou ao menos 5 infrações graves durante a viajem. Mas não era hora de moralismo. Ignorou o medo. Saltou o mais rápido que pôde quando o piloto parou em frente a passarela vermelha que dava acesso à universidade. Correu o mais rápido que conseguia para não ter de pagar o oferecido.
— Ei. Garoto — o homem gritou com uma cara de poucos amigos.
— tô atrasado — gritou de volta, soltando um sorriso vitorioso, enquanto sumia no meio dos estudantes. A verdade era que Max tinha apenas 20 reais no bolso e ensaiava dar o mesmo calote no motorista do táxi. Seu plano foi perfeito. Até sentia alguma culpa, mas, no fundo, gostava mesmo era da adrenalina.
Dei sorte desta vez. Pensou consigo ao virar o corredor da neurocirurgia as 9:16. Parou em frente a Porta preta do auditório. Suspirou e ensaiou uma boa desculpa. Alguma coisa que envolvesse gente morta ou um resgate suicida. O auditório onde acontecia a prova era grande. Tinha um aspecto teatral com cadeiras vermelhas e uma espécie de palanque amadeirado. Viu um grupo de sete alunos aglomerados ao lado do professor assim que entrou na sala. Jesus, de blusa vermelha e calça amarela, com seus 1,82 de altura e cabelos cacheados loiros em um coque samurai estranho, bloqueava a porta, tal como um goleiro ensaiando para um pênalti.
— Porra lek. Já iam me bater— sussurrou aliviado enquanto abraçava o amigo recém-chegado.
— o senhor tem 13 minutos para fazer a prova. Acho melhor ir direto para a recuperação. — ironizou a professora. Uma senhora branca de 60 anos com cabelos longos e crespos pintados de um ruivo inexistente na natureza. Usava uma maquiagem pesada, com a base muito clara um batom vermelho chamativo que, juntos, lhe conferiam um ar quase circense.
— mas só termina as 10. Uma hora de prova, né? — retrucou com autoridade.
— começou as 8:30. O senhor deveria saber — um leve sorriso saiu de seus lábios pintados — Talvez não esteja mesmo preparado para o internato — finalizou de um jeito perverso.
Percebia-se o olhar afirmativo dos colegas. Camila, uma patricinha irritante, meneava a cabeça em negação. É isso mesmo. A de Neurologia que foi às 9. Imediatamente, Max pegou a folha de questões da mão daquela mulher feia.
— Eu preciso de 5 minutos — sussurrou alto o suficiente para que ela ouvisse.
Vamos. É agora. Não me deixa na mão. Era uma prova com 5 questões. Respondeu mentalmente as duas primeiras. Muito fácil. Eu estava na aula neste dia. Escreveu a terceira e a quarta questões sem rascunhar. Tinha uma boa noção sobre aspectos da ressonância magnética da Coluna lombar. A última questão era sobre Craniossinostose, um fechamento precoce das suturas cranianas do recém-nascido. Não lembrava bem os tratamentos, então decidiu enrolar pra ver o que ganhava.
Max escrevia rápido e ininterruptamente. Completou o questionário com confiança e entregou à professora, que recebeu o papel com certa perplexidade e expressão de raiva.
— tem que melhorar essa letra hein — escutou assim que virou de costas. Ele sabia que havia feito boa prova.
— A senhora quer que eu passe a limpo? – olhou o relógio de pulso – Tem mais 4 minutinhos — O resto da turma, os que ainda concluíam a prova, riu baixo. Max saiu de sala aliviado, torcendo para que a velha professora entendesse tudo naqueles garranchos horrorosos.
— E aí? — Jesus o abordou, com seus olhos verdes esbugalhados, logo que saiu de sala.
— E aí o que? Só uma prova. Tranquilo. E obrigado — quase esqueceu de agradecer.
— Comeu a enfermeira ontem? — Max gargalhou na hora. Lembrou o que conversaram por mensagem na noite anterior. Uma enfermeira casada o tinha chamado para conversar durante a madrugada, no plantão. Só jesus pra me fazer rir depois dessa maratona. O celular perdeu a área antes que pudesse terminar de explicar.
— Ela só queria um atestado para a filha. Sem história de sexo hoje — respondeu ironicamente enquanto saíram conversando.
— nem mostrou o peitinho? – lamentou seriamente – Esse mundo tá acabado.
O corredor da Neurocirurgia era grande e largo, chão amarelo de vinil e paredes brancas com as portas pretas onde ficavam as enfermarias e o auditório. Dava pra uma escada no final a direita, que levava ao térreo do hospital.
— Você ainda vai se fuder por causa desses plantões. Vi no Facebook que pegaram um falso médico em Campo Grande. Moleque no sexto ano brother. Foi preso e não vai mais poder se formar.
— De boa, Jesus. Compro a minha moto, tiro a minha carteira e paro de fazer esses plantões. Por enquanto é o que está pagando o aluguel e a comida. — piscou para o amigo, que sorriu de volta.
Antes que pudessem chegar nas escadas Max sentiu uma pressão na lateral do ombro, puxando-o para trás.
— Grande Garoto. Já estava pensando em te procurar no IML — provocou Lipe, veterano do quinto ano, com quase 2 metros de músculos e camisa amarela, bem apertada, de algum time de futebol europeu. O homem de pele morena o abraçava com força desproporcional enquanto caminhavam. Outros dois Rapazes, Biscoito e Thiago, cercaram Jesus, que ficou parado, encarando ambos com sua melhor expressão furiosa (e louca).
— Fez a parada? — Perguntou o líder, agora num tom um pouco mais educado e baixo.
Max manteve a calma e tirou 3 envelopes de papel pardo da mochila bege de lona — 3 artigos traduzidos. 50 reais cada — driblou o abraço mortal e protegeu os papéis da investida do fortão.
Lipe sorriu com seus dentes enormes e brancos
— Toma. 100 reais para parar de chorar.— tirou algum dinheiro do bolso e jogou uma nota ao ar, como quem desdenhasse.
— Ops. Perdeu — O comparsa gordo e baixo, Biscoito, arrancou os envelopes de sua mão, jogando Max para um encontrão com Lipe, que o empurrou no chão. Os três saíram correndo pelas escadas antes que algo pudesse ser feito.
Jesus, após se libertar de Thiago, o alto e magro, levantou o amigo, entregando a nota de 100 reais que conseguira resgatar.
— Nada mal. Saiu a 33 cada – Franziu a testa, com um ar de dúvida – Pensei que você fosse dar um Esporte Sangrento neles. – gesticulou uns golpes aéreos.
— 33 e mais uns quebrados — Max sorriu ao mostrar o relógio dourado que surrupiou ao esbarrar com Lipe. – Esse palhaço não merece o esforço.
— Ah, meu garoto. — Meneou a cabeça positivamente — Cineminha hoje?
— Eu pago — os dois riram alto.
Foram caminhando para casa, há 2 quadras dali.
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