● DOIS || HUGO
Suas palavras pairam no ar entre nós. Pisco algumas vezes um pouco incrédulo, talvez achando que deve estar imaginando coisas ou que não ouvi direito. Minha amiga não pode ter feito isso! Não sem me preparar para o baque. De repente sinto a necessidade de me abanar, pelo calor inesperado que sinto. Quase uma mistura de alegria e desespero. O ar condicionado não deve estar fazendo o seu trabalho. Respiro profundamente e olho novamente para seu rosto, que carrega toda a ansiedade que possa caber dentro de seu magro e minúsculo corpo. Mari sempre foi assim, compacta. Mas engana - se quem acha que ela não tenha um bom punho para se defender.
- Você fez o que? - recupero minha voz em um grito estridente.
Quase que imediatamente cabeças se erguem com olhares muito interessados. Podem ser todos homens que trabalham aqui mas conseguem ser mais fofoqueiros que minha vizinha. Me recrimino mentalmente sentindo minhas bochechas arderem.
Dou um tchauzinho e vendo que eu os observo, todos voltam para seus afazeres.
- Isso mesmo que você ouviu, pois surdo sei que não é! - responde de forma petulante.
Lhe jogo um lápis, do qual desvia habilmente rindo histericamente de mim.
- Ridícula!
- Sou mesmo! - Joga os dreads coloridos para o lado.
Junto minhas mãos rente ao meu rosto e tento pensar.
- Por que fez isso? - Estou a ponto de começar a puxar meus cabelos. Minha boca está seca.
- Por ser uma amiga muito legal. - entoa orgulhosamente. Reviro meus olhos.
- Mas não é mesmo!
- Claro que sou! - Estala os lábios. - Seja ao menos grato pelo favor que te fiz. - bufo olhando para o lado.
Vendo que está sendo ignorada, joga uma bolinha de papel em mim. Não me movo, ela grunhe e pelo canto do meu olho, vejo - a se inclinar sobre a mesa. Nem dá tempo de desviar. Apertando a ponta do meu nariz, bato em sua mão para me livrar do aperto. A danada ri.
- Me solta! E eu não te pedi nada ok? - digo entre os dentes. Na minha mente cheia de incerteza eu só consigo ver Ruan na minha frente, eu fazendo papel de palhaço por não conseguir dizer um simples "Oi".
Nem minha fala ou o tom de voz que uso a abalam. Na verdade, são poucas as coisas que conseguem abalar minha amiga, a qual conheço desde o jardim de infância, quando roubamos o lanche um do outro.
- Por isso mesmo eu fiz. - Olha para as unhas com esmalte verde gritante lascado.
- Não aguentava mais te ouvir suspirar pelo vizinho bonito pelos cantos.
- Então você foi lá e resolveu se meter na minha vida? - Sarcasmo puro escorre por minhas palavras.
- Claro! - Solta uma risadinha.
Seus olhos claros me invadem a mente. São tão sérios, profundos e constantes. São tão adultos em alguns momentos. Esse aspecto de alguma forma o deixava a uma certa distância de mim e outros adolescentes. É como se ele fosse maduro demais para estar entre nós. Dizem que a dor faz isso com você. Te molda de uma forma que faz com que seja diferente dos outros. Ouvi mamãe comentar que ele perdeu o pai em um trágico acidente de carro.
Mari estala os dedos finos na frente do meu rosto.
- E agora? O que vou fazer? - digo para o nada.
- Senta nele! - Se prontifica a responder um pouco alto. Olho para a porta por um momento alarmado. Mesmo fechada, pode - se ouvir algumas coisas através dela. Minha amiga não parece nem um pouco preocupada de que aa doninhas trabalhando lá fora podem nos ouvir.
- Fala baixo! Meu pai está lá fora.
- Ops, desculpa.- Finge passar um zíper imaginário nos lábios. A filha da mãe não parece nem um pouco arrependida. - E como ele está levando as coisas?
A mudança de assunto não ajuda em nada.
Suspiro.
De um lado tenho minha paixão encubada por Ruan, que muitas vezes parece ser quase inalcançável para mim. Durante um ano inteiro eu fui praticamente invisível para ele. Seus pensamentos parecem ser muito mais interessantes do que sua vida real. Quando não está vendo, me permito observa- lo sem reservas. Seu rosto se mantém neutro mas são seus olhos que mantém toda a dor, insegurança, um pouco de alegria. Tudo o que sente. Posso ser jovem para estar falando de amor mas desde muito pequeno, eu sempre soube ler as pessoas. Segundo minha mãe, eu abraçava quem eu gostava e chorava com quem eu não gostava.
E em casa tinha meu pai, que após descobrir sobre minha orientação sexual ficou diferente comigo. Eu estava contando para minha mãe em um impulso de coragem sobre ser gay, papai chegou na hora e ouviu tudo. Quando aconteceu, ele não gritou comigo ou me bateu, apenas se afastou. E confesso que sua distância me machucou muito. Mas eu tinha minha mãe que sempre esteve comigo, me dando colo e todo o carinho que precisei. Mas essa fase parece estar chegando ao fim, pois de uns dias para cá ele vem se aproximando de mim e vamos até pescar amanhã.
- Agora estamos bem. - Não consigo segurar meu sorriso de alívio. Aos poucos meu pai está voltando a ser ele mesmo. - Vamos até pescar no amanhã.
- Ah que legal, menos a parte de pescar. Odeio! - Finge estremecer.
- Não seja exagerada - rimos. - É muito bom pescar e sinto que é um modo de passarmos um tempo juntos.
- Meu pai me traumatizou ao me deixar cair no lago. - Evito rir. Estava com ela e não foi legal. Pelo menos não naquele dia. - Mas voltando ao tópico "sentando no crush".
- Não vou sentar em ninguém! - Me defendo inutilmente.
- Mas quer! - cantarola.
Não comento.
- Huguinho do meu coração. A sua hora é agora! Tipo, hoje a noite.
Sim, ela está me dando a notícia em cima da hora.
- Talvez. - pondero me lembrando que Ruan negou imediatamente o convite. Menino difícil.
- Até eu negaria! - dá de ombros. - Pense comigo: uma pessoa que não trocou com você mais do que dez palavras, aparece na sua porta de repente e te convida para uma festa. É para desconfiar mesmo.
- Ou seja, ele não vai! - Tento não mostrar tanto desânimo. É aniversário da minha amiga, minha irmã do coração. Mas com a informação que me deu minutos atrás, é claro que eu explodiria de alegria se eu pudesse estar com o garoto que deixa tonto até quando respira perto de mim.
- Ele vai! - diz com uma certeza que me desconcerta.
- Como sabe disso?- Estou realmente interessado em sua resposta.
- Você! - anuncia como se eu fosse o maior prêmio do mundo.
- Eu o que?
- Ele vai na festa por você.
- Não é para tanto. - Não quero ter esperança.
- Amigo, vocês são péssimos em disfarçar as coisas. - Faço beicinho. - Ele gosta de você.
Há tanta segurança em suas palavras que quase acredito nelas. Mas é impossível. Eu saberia se ele tem os mesmos sentimentos que eu. Ou não saberia?
- E não pensou em me dizer isso antes? Eu poderia...- Mordo meu lábio inferior.
- Você poderia? - ergue uma sobrancelha em questão.
- Me declarar? - sai mais como uma dúvida.
- Se não fez até hoje.
- Não precisa jogar na cara não é?
Nesse momento batem na porta. Saulo, um dos funcionários do meu pai, coloca a cabeça para dentro da sala. Marissa que era a calmaria em pessoa, falta pouco se afogar na sua própria saliva, assim como sua respiração está acelerada. Ela joga na minha cara que tenho medo de me declarar mas ela sofre do mesmo problema que eu: covardia crônica.
Saulo, o homem de quase dois metros de altura, cabelos cacheados, olhos castanhos claros e boca muito bonita ; de acordo com minha amiga, é o único capaz de tirar a estabilidade de minha amiga.
No início eu achava ser apenas encantamento da parte dela, pelo fato de ser mais velho que ela alguns anos e ser o único funcionário do meu pai que é simpático com a gente. O restante deles só vivem de cara amarrada.
- Respira Mari! - sussurro bem pertinho do seu ouvido. Ela ri nervosamente e puxa o ar com força para seus pulmões.
- Com licença. Atrapalho?
- Não. - Sorrio. - Entra.
Depois de torcer as mãos em frente ao corpo largo e maciço. Se pronuncia.
- Conversei com seu pai sobre um vale, estou precisando muito. - Parece um pouco desconfortável. - Ele disse que eu podia pegar com você. - Aceno positivamente.
Abro a planilha dos funcionários, encontro seu nome, coloco a data e pergunto o valor do vale. Ele me informa abro a gaveta, retiro o valor e o guardo dentro de um envelope amarelo. Ele sorri agradecido e nos deixa. Olho para Marissa que agora se abana.
- Meu Deus, que homem!
- Oh, agora ela fala! - brinco.
Bufa.
- Deveria se declarar também sabia?
- E eu vou querido! Por que acha que estou ansiosa para amanhã?
- O que tem amanhã? - pergunto receoso. Dela eu espero tudo.
- Vou conquistar meu homem! - diz muito seriamente. Ficamos por um segundo nos olhando em silêncio, para em seguida estarmos rindo loucamente. Ela limpa uma lágrima de alegria e se endireita. - Estou rindo mais falo sério.
E eu acredito nela.
Ela se despede de mim meia hora depois dizendo ter salão marcado. Volto a organização do escritório do meu pai. Assim como as planilhas dos funcionários. Meu pai é um ótimo mecânico mas na arte de administrar seu negócio, ele peca. Eu não sou formado em contabilidade como meu primo que é o responsável pelo escritório. Mas no momento está de férias com a esposa. Mas fiz durante seis meses um curso profissionalizante de administração. E estou conseguindo ajudar um pouco aqui.
Não é nada fixo pois daqui a dois meses vou estudar História na cidade vizinha.
No final do expediente, ajudo a fechar a oficina. Como ela fica bem perto de nossa casa, vamos no pequeno percurso, conversando sobre onde irei morar e a frequência com que vou voltar para visita - los. Meu pai não está muito feliz por me deixar ir embora mas entende que é meu sonho.
Mamãe abraça e beija a nós dois quando chegamos. Vou para meu quarto mais do que ansioso. Ansiedade essa que consegui esconder muito bem do meu pai.
Fecho a porta e me coloco diante do espelho de corpo inteiro que fica no canto do meu quarto. Sem conseguir me conter, começo a dançar diante dele.
Fecho meus olhos e me imagino em um palco, não há plateia. Então não preciso me preocupar se vou dar um passo em falso ou algo do tipo. Danço, pulo e me movo para a esquerda ou para a direita. Ainda de olhos fechados, sinto de repente a presença de alguém. E mesmo sem ver, sei quem é. Me deixo levar e juntos dançamos juntos. Minhas costas rente ao seu peito. Sua respiração acariciando a pele da minha nuca. O coração quase saltando do meu peito.
Um baque, uma luz forte sobre nós e estou de volta em meu quarto.
Não há mais ninguém comigo. Não o garoto que vi tropeçar no primeiro dia de aula, que é adulto demais para estar entre nós mas foi quem meu coração escolheu.
- Meu Deus! Que animação é essa? - Paro no lugar, meu rosto quente e largo a camisa com quem dançava em pensamentos sobre a cama.
- Hoje é o aniversário da Marissa. - explico simplesmente. Não vou me mostrar ansioso.
Ela ergue uma sobrancelha sabendo que há mais. Como se pudéssemos esconder algo de nossas mães.
- Mas não é só por isso, imagino.
- Hum...
- Marissa me contou! - cantarola em um tom conspiratório.
- Aquela fofoqueira!
- Que está te ajudando muito.
- Verdade. - Concordo a contra gosto.
Cruzo meus braços em frente ao meu peito. Ela entra fechando a porta atrás de si. Me abraça de lado e se senta na cama comigo.
- Está com medo.
Não posso negar. As coisas podem não acontecer da forma que desejo essa noite. Eu nem deveria me esforçar tanto também. Vou embora para estudar e namoros não sobreviver a distância. Mas meu coração adolescente e sonhador não se importa com esse fato.
- Você vai ao aniversário da sua amiga, vai curtir esse dia muito especial com ela e se seu crush chegar em você. Se joga amor.
Dou uma risadinha com seu modo de falar.
Ela está certa. É aniversário da minha amiga. Um dia muito especial para ela. Eu posso acabar ganhando um presente ou não. Amanhã é outro dia. Se não conseguir hoje, tenho amanhã.
- Me ajuda a escolher uma roupa? - ela sorri e beija meus cabelos. Abre meu guarda roupas jogando minhas roupas no tapete do quarto. - Eu não vou arrumar isso!
- Sua sorte é que hoje estou de bom humor! - suspira com um ar sonhador. - Meu bebê vai beijar na boca.
Jogo um travesseiro nela.
- Mãe! A senhora não está ajudando.
A danada apenas ri. Escolhe para mim uma camisa vermelha de manga longa, calça jeans escura e tênis preto. Me mandou tomar um banho para lavar todos os meus buracos, quase me matando de vergonha e me deu camisinhas antes de eu sair de casa.
Toco a campainha da casa de Marissa que mora no final da rua. E já posso ouvir a música alta. Respiro fundo quando a própria me atende e abre espaço para eu entrar.
Seja o que Deus quiser.
05/06/21
Bom fim de semana pessoal.
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