Dez, II
Jill orava silenciosamente, pedindo que o filhote de Caramelo nascesse saudável e que tudo terminasse bem, mas lá no fundo da sua consciência sabia que também deveria estar se preparando para o pior. Ela não queria sequer cogitar aquela possibilidade.
Como se tivesse acontecido horas antes, Jill se lembrava do dia em que seu pai trouxera Caramelo ainda muito jovem para Spring Creek, e de como o presente a fizera feliz. Nunca fora segredo que David Mcmillan usara a filha como desculpa para começar o negócio com cavalos sem enfrentar a ira da esposa, mas Jill nunca se importara de verdade.
Ela se apaixonara pela égua de pêlos amarelados e crina esbranquiçada no instante em que a vira descendo do trailer que a levara até o rancho, e achava que naquele caso os meios haviam justificado bem os fins. Só que bastava olhar para Jesse para compreender que o pavor que ela sentia não era nada comparado à agonia que se mostrava em seu rosto cansado. Caramelo significava mais para ele do que jamais significara para ela.
Por mais de dez minutos Jill o observou acariciar o pescoço da égua, sussurrando palavras de ânimo e conforto, até que o animal voltou a se acalmar. Quando saiu da baia, Jesse o fez com a cabeça baixa, como se tivesse medo de cruzar olhares com Barb, vigilante no portão de entrada, e ver ali alguma outra má notícia o esperando.
— Vou fazer um café para nós. – disse baixinho ao passar por ela, mirando a palha espalhada no chão.
— Boa ideia. – Barb sussurrou tocando o ombro dele, tentando lhe passar algum conforto, mostrar que o compreendia, mas ele não levantou o olhar.
— Eu te ajudo. – Jill se dispôs antes que ele começasse a se afastar na direção do alojamento onde morava e ele anuiu uma única vez, aceitando o favor.
A passos largos e em silêncio, Jesse caminhou para fora do pavilhão e ela o seguiu até a varanda onde eles haviam conversado naquela primeira noite dela em Spring Creek. Ele tirou as botas na soleira do alojamento e Jill fez o mesmo. Jesse abriu e segurou a porta para que ela fosse a primeira a entrar e, depois, ainda em silêncio, seguiu para a pequena cozinha deixando-a para trás, parada no tapete de boas vindas.
Jill não quis ser rude e reparar, mas não conseguiu deixar de observar os detalhes. O alojamento era, na verdade, um loft de dois andares. Embaixo, o único cômodo era amplo e acomodava uma sala de TV com um sofá logo depois da entrada. Mais ao fundo, a cozinha com ilha e uma mesa para quatro pessoas completavam o espaço. Perto da janela, uma escada de madeira envernizada levava ao andar de cima, para o quarto, e embaixo dos degraus havia uma porta que, Jill deduziu, era onde ficava o banheiro.
Não que ela houvesse gasto tempo imaginando como seria o lugar onde ele morava, mas definitivamente não esperava algo como aquilo. A parede de tijolinhos havia sido deixada exposta em alguns lugares e dava um ar rústico ao ambiente. No sofá, uma manta colorida cobria o assento na diagonal e combinava com as almofadas. Havia vasos com cactos nas janelas e até a luminária tinha sido pensada para completar o ar interiorano. Jesse vivia em um lugar aconchegante.
— Sua mãe que decorou. – ele disse de repente quebrando o próprio silêncio e obrigando Jill a sair do tapete para ir até o balcão da cozinha, onde ele estava – Isso aqui foi planejado pra ser um depósito. Disse a Rachel que ia dar um jeito eu mesmo, que só precisava de uma cama e um banheiro pra começar a trabalhar, mas ela não me deixou nem ajudar. – explicou, pegando três canecas no armário de cima da pia e as dispondo ao lado da máquina de café italiano no balcão. Taciturno, Jesse colocou duas delas embaixo do dispenser da cafeteira e olhou para Jill. – O que vai ser pra você?
— Macchiato. Pra Barb também. – ela respondeu e ele anuiu, se concentrando na tarefa.
Jesse apertou uma sequência de botões no painel da cafeteira e foi até a geladeira pegar uma jarra com leite fresco. Ele passou um pouco do líquido para um recipiente menor e o esquentou no fogão, depois se pôs a batê-lo para que ficasse cremoso. Enquanto observava a agilidade com que ele preparava tudo, a forma como parecia agradecido por ter nas mãos uma tarefa com a qual podia lidar, Jill se deu conta de que algo interessante havia acontecido quando ele chegara a Spring Creek. Sua mãe o havia adotado.
Quando a máquina apitou, anunciando que havia terminado a sua parte, Jesse passou com cuidado o leite cremoso para as duas canecas já cheias até a metade, e as empurrou na direção de Jill.
— Pronto. – informou – Pode ir levando senão vão esfriar.
Sem questionar, Jill as pegou pelas alças e voltou para o pavilhão, onde o clima continuava pesado. Do portão, ela viu Barb sozinha, ainda encostada na mesma pilastra em que passara a maior parte da noite e de onde podia observar Caramelo dentro da baia sem que a égua percebesse que estava sendo vigiada. À pedido da chefe, Pietro havia ido à Clínica Trahan no centro de Denton para buscar outro ajudante e alguns materiais, para o caso de certos procedimentos mais complexos serem necessários. Jill não sabia o que exatamente aquilo significava, mas tinha certeza que não podia ser boa coisa.
— Hu-hum. – ela pigarreou baixinho para anunciar sua aproximação e Barb se virou a tempo de a ver dar os últimos passos – Aqui. – disse, entregando uma das caneca fumegantes nas mãos da amiga, que absorveu o aroma como se este fosse algo enviado do paraíso.
— Tava mesmo precisando de um pouco de cafeína. – Barb revelou, dando um gole na bebida e suspirando de contentamento em seguida – Jesse já pode ser barista. Com certeza seria o melhor de Denton. – comentou tentando descontrair um pouco, ter um instante de descanso em meio à tempestade. Jill estava bem familiarizada com as táticas que ela usava para fugir de assuntos e situações que a machucavam.
— E existe barista em Denton? – perguntou, aderindo à brincadeira com ironia, uma das poucas reações às quais o humor negro e orgulhoso de Barb não podia resistir. Jill sorriu para si mesma e bebericou da própria caneca, esperando, sabendo que a amiga a mirava séria como só ela podia ser às vezes.
— Touché. – Barb admitiu depois de um tempo, um esboço de sorriso se mostrando em seu rosto também, mas se tornando provocativo a cada segundo que passava observando Jill – E pelo visto você não perdeu tempo, não é?
A observação, feita num tom tão falsamente desinteressado, quase fez Jill se engasgar.
Quando olhou para o lado, Jill viu que havia acabado de se entregar para Barb e que amiga tinha um olhar malicioso no rosto, no melhor estilo "mas você não tem jeito mesmo".
Não havia motivo – afinal Barb sabia cada pequeno detalhe de sua vida de trás para frente – mas, ainda assim, suas orelhas queimaram diante da insinuação que brilhava nos olhos castanhos da amiga e seu coração bateu mais rápido dentro de seu peito, com muito mais energia do que antes. Sua eterna companheira, aquela com quem só precisava trocar um olhar para compreender o universo, aquela de quem tanto sentia falta, ainda vivia em Barb.
— Jesse e eu nã- – Jill começou a explicar, desviando o olhar para as próprias mãos, os dedos brincando com a borda lisa da caneca, sem sequer tentar se fingir de desentendida e, ao mesmo tempo, sem saber por onde começar a falar, quando a amiga a silenciou.
— Ele tá vindo. Disfarça. – Barb disse baixinho, levando a caneca aos lábios e Jill fez o mesmo. Sua nuca formigou com o olhar de Jesse em suas costas muito antes dela ouvir seus passos se aproximando de onde estava.
— Alguma alteração? – ele quis saber quando as alcançou, uma caneca de café puro nas mãos e o indício de preocupação visível na testa enrugada. Barb balançou a cabeça.
— Tudo na mesma. – respondeu e ele anuiu antes de se afastar até a escada que lhe daria acesso às vigas do teto, onde foi se sentar. Minutos depois Pietro apareceu acompanhando por Enrico. Barb se ocupou em organizar o material que seus dois ajudantes haviam trago em cima da mesa preparada na baia vazia, onde também estavam o banco e as mantas de Jill.
Barb ainda estava preocupada. A severidade da situação não a havia deixado, mas ela passara a sorrir sempre que seu olhar cruzava com o da amiga. Depois você vai ter que me contar cada detalhe, exigia em silêncio pois Jesse estava bem acima delas, as impedindo de falar sobre o assunto.
Naquele momento, só havia uma coisa que Jill desejava mais do que voltar a fofocar em paz com Barb: que Caramelo parisse logo o filhote que esperava, e que mãe e bebê ficassem bem.
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