28 - Foi no São João
— E NESSA LOUCURA, DE DIZER NÃO TE QUERO
VOU NEGANDO AS APARÊNCIAS
DISFARÇANDO AS EVIDÊNCIAS
MAS PRA QUE VIVER FINGINDO
SE EU NÃO POSSO ENGANAR MEU CORAÇÃO?
EU SEI QUE TE AMO!
Faço careta, a vontade é tirar as mãos do volante e tapar os ouvidos, mas isso nos mataria, portanto, suporto a tortura.
É a terceira vez que pedem para repetir essa música e gritam ela a plenos pulmões. Chitãozinho e Xororó chorariam de desgosto se ouvissem como essa turma foi capaz de destruir a música deles.
Letícia e Gustavo possuem vozes belíssimas, mas o nível de embriaguez e a altura da voz parece ter enterrado os talentos. Os quatro foram dormir por volta da quatro da manhã, acordaram as dez e encheram o rabo de cachaça até às quatro da tarde. Já tive que parar três vezes para um deles não vomitar no meu carro.
Dou graças a Deus quando o GPS anuncia que estou a cinco minutos do meu primeiro destino, no caso a casa de Letícia, que mora com os pais em um bairro nobre do Recife.
Cerca de dez minutos depois, me despeço da minha filha e do meu genro, ambos saem do carro sorridentes e cambaleantes, Hellen está um pouquinho pior do que o marido, pois é fraca para bebida alcoólica. Ela grita uma dez vezes que me ama antes de ser arrastada para dentro do prédio.
Tomo um susto e freio de vez quando o louco do Gustavo passa entre os bancos, quase bate a cabeça no painel e senta no banco do passageiro.
— Enlouqueceu, garoto?!
Ele é o que está pior. Está ainda mais bêbado do que na madrugada após o casamento de Hellen e João Paulo. O garoto bebeu como um louco, desconfio que nossa turbulenta conversa no banheiro tenha algo a ver com isso.
Me ignora e coloca pela quarta vez a música Evidências. Em menos de cinco minutos, estaciono em frente ao prédio dele.
— Chegamos — aviso quando Gustavo não faz menção de se mexer.
Balança a cabeça em negação.
— Não? Não o quê?
— Não quero ficar aqui.
— Você mora aqui, Gustavo.
— Não... Não quero — sua voz está embolada e um pouco sonolenta.
— Você mora aqui — repito, um pouco impaciente.
— Não vou ficar. Quero ir pra sua casa, quero ficar lá. Quero dormir e conversar quando acordar.
— Gustavo...
— Por favor. A gente precisa conversar.
— Nós já conversamos.
— Não conta — inclina o corpo em minha direção e segura meu rosto. — Você me precisa me dar isso. Por tudo o que vivemos, precisa me dar uma conversa sóbria.
Suspiro, sabendo que ele tem razão. Ontem no banheiro, ele não estava muito bêbado, mas já tinha ingerido uma boa quantidade de álcool.
— Tudo bem, mas o som vai desligado. Se eu tiver que ouvir você gritar por mais meia hora vou acabar te agredindo.
Uma gargalhada explode de sua garganta, alta e escandalosa, totalmente desproporcional a minha frase.
Reviro os olhos e dou partida.
O garoto praticamente enfia o rosto dentro do vaso sanitário, vomitando pela terceira vez desde que chegamos em casa.
Sinceramente, não entendo o porquê as pessoas se submetem a isso. Entendo beber por prazer, mas daí chegar a esse ponto? Simplesmente não faz sentido para mim.
Volta a sentar no chão, as costas contra a parede, a cabeça inclinada para trás.
Não tenho ideia de quanto tempo ficamos sentados no chão, até ele sentir que não vai mais vomitar e avisar que vai tomar banho.
Saio do banheiro quando Gustavo começa a tirar a roupa. Espero o som do chuveiro ligado e entro rapidinho, apenas para deixar uma toalha e uma cueca limpa sobre a tampa do vaso sanitário.
Escolho uma cápsula de café extra forte e coloco na cafeteira.
Volto para o quarto com a xícara na mão e o encontro sentado na cama. Não está apenas de cueca, como imaginei, ele também veste uma bermuda de algodão que esqueceu aqui e estava no meu guarda-roupa.
— Obrigado — fala quando o entrego a xícara.
Bebe um gole, uma careta nada sutil repuxando seu rosto bonito.
— Está sem açúcar.
— Li que para melhorar mais rápido é melhor assim.
Assente e tomo outro gole, fazendo uma careta ainda pior, e abro um sorrisinho.
Informo que vou tomar banho. Recolho uma calcinha e um vestido levinho, olhando-o mais uma vez antes de entrar no banheiro.
Meu banho é longo e gelado. Aproveito esse momento para pensar em tudo o que ele me falou ontem e começo a temer tudo o que pode sair na próxima conversa.
Encosto a testa na parede, me repreendendo por ter sido impulsiva e irresponsável, deveria ter tomado cuidado com os sentimentos dele. Não podia ter ignorado os sinais.
Merda!
Ele falou que não está apaixonado, e pode até ser verdade, mas ele sente alguma coisa, isso ficou bem claro após sua reação ontem. Na verdade, sem bem sincera, eu já tinha visto alguns sinais antes. Porém fui egoísta e ignorei, era mais confortável fingir não notar nada e continuar nosso envolvimento.
Mas que grande merda!
Apoio a testa contra a cerâmica gelada. A água escorre por meu corpo enquanto me martirizo por cada decisão errada que tomei até aqui.
Não deveria ter deixado isso chegar tão longe...
Na verdade eu não deveria nem ter deixado isso começar. Sabia que era um erro. Sabia que não viria nada bom disso.
Após sei lá quanto tempo me torturando mentalmente, saio do banho, visto minha roupa e volto para o quarto.
Ele não fala nada quando saio, então opto por também manter silêncio. Não sei se estou pronta para essa conversa.
Apenas deito ao seu lado na cama e tento dormir, porém a noite é conturbada por dois motivos: o primeiro é a agitação mental que não me permite relaxar o suficiente para entrar em sono profundo; o segundo é Gustavo, que levanta algumas vezes para vomitar.
Pela manhã, levanto mais exausta do que fui deitar. Fico um tempo na banheira, tentando relaxar, porém não funciona. Frustrada, me enrolo na toalha e saio do banheiro.
Visto uma roupa, em seguida separo um copo de água e alguns comprimidos para Gustavo, antes de preparar algo para comer.
Trinta minutos depois, volto para o quarto, encontrado Gustavo acordado e sentado na cama. Suas esmeraldas vêem rapidamente até mim, porém logo se desviam sem que ele fale nada. Também opto por manter o silêncio, colocando sobre a poltrona a bolsa que quando fui para a festa de São João dos pais de Gustavo e começo a tirar as coisas de dentro.
— Foi no São João — fala de repente.
— O que? — pergunto distraída, tirando umas maquiagens que não uso muito da necessaire e organizando sobre a penteadeira.
— A primeira vez que te olhei diferente — isso chama minha atenção e fixo meus olhos nele. — A primeira vez que te enxerguei diferente, foi no São João de quatro anos atrás.
Arregalo os olhos.
— Quatro anos? — Incredulidade marca meu tom de voz.
Assente.
Está apoiado na cabeceira da minha cama, a cabeça um pouco inclinada para cima e o olhar distante e distraído.
— Estava na varanda conversando com JP quando vocês chegaram. Ele praticamente tinha me obrigado a ser sua companhia enquanto esperava ansiosamente a chegada de Hellen. Na época ele já tinha percebido que ela estava se mantendo solteira e começou a cerca-la.
Passa língua entre os lábios e fica em silêncio por alguns poucos segundos.
— Finalmente vocês chegaram. Aí você desceu do carro. Usava uma blusinha xadrez azul com branca, bem parecida com a de ontem, ela estava amarrada de um jeito que deixava um pouquinho da sua barriga de fora. Um short jeans cintura alta, não tão curto mas meio folgadinho e um par de botas — olha para as botas próximo a porta do meu quarto —, esse par de botas, complementava o look. Teu cabelo tava dividido em duas tranças e tua boca tava bem vermelha, era o batom mais forte que já te vi usando.
Desvia os olhos do par de botas para o teto novamente.
— Você estava sorrindo de alguma coisa que Hellen tinha falado, segurava uma bolsa em uma mão e uma embalagem com dois bolos na outra. O mundo todo pareceu parar e só você se movia, quase que em câmera lenta. Eu te encarava encantado. Meu primeiro pensamento foi: Nossa, como Bia tá gostosa.
Ri balançando a cabeça.
— Eu fiquei super assustado, afinal tu era mãe da minha melhor amiga. Era errado. Sabia disso. Mas não conseguia evitar. Toda vez que te via, pensava em coisas indecentes, por isso fugi de você a noite toda.
Desvia os olhos para a barra da bermuda, brincando com o tecido entre os dedos.
— Depois daquela noite, passei a ter pensamentos indecentes toda vez que te via, aquilo me deixava desnorteado. Me sentia um maldito pervertido por pensar e querer aquelas coisas. É meio que lei da vida manter distância de mãe de amigo, não é? É uma regra mais forte do que nunca pegar ex de amigo.
Fica em silêncio por vários segundos. Aguardo, porque é óbvio que ainda não acabou, ele provavelmente vai contar até chegar no ponto em que estamos agora.
— Uns seis ou sete meses depois... — para um pouco para pensar. — É, uns sete meses depois, descobri que as coisas poderiam piorar — sorri sem humor, como se revivesse o momento. Não deixo de notar que não me dirigiu o olhar desde que começou o relato. — Um dia a gente tava lá na sala assistindo um Clássico das Multidões, quando você chegou. Eu não te via há uns três meses, estava fugindo de você como o diabo foge da cruz. Quando ouvi o barulho da chave na porta senti meu coração acelerar como um louco. Era óbvio que era você, afinal só moravam vocês duas aqui. Você entrou na sala, sorriu pra a gente e achei que tinha desaprendido como se respirava.
Sinto meu coração pulsar no ouvido. Sou eu que mal consigo respirar, prevendo o que vem por aí.
— Suor frio, coração acelerado, dificuldade em respirar, nervosismo e uma sensação esquisita na barriga. Desejei de todo coração estar passando mal, seria mas fácil de lidar, mas sabia que não estava. Eu conhecia aqueles... sintomas. Eu fiquei desesperado, porque... Merda! — Passa a mão entre os cabelos de um jeito meio bruto e, finalmente, me olha. — Eu estava apaixonado pela mãe da minha melhor amiga.
Sinto um baque no peito.
Era óbvio que esse seria o desfecho. Mas ouvir com todas as letras é... Inacreditável.
Isso é... É inconcebível.
É loucura.
Uma completa insanidade.
Sento na poltrona, não confiando nas minhas próprias pernas para me manter de pé.
— Escondi o máximo que pude. Te evitei o quanto consegui, e não foi tão difícil. A pandemia e a quarentena nos mantiveram distantes. Mas aí, quando te vi de novo foi como se tudo tivesse voltado de uma única vez. Mais intenso. Mais incontrolável. Mais devastador. No entanto, não importava. Minha resolução ainda era a mesma: guardaria aqueles sentimentos para mim.
Desvia os olhos de mim para a barra da bermuda, ainda brincando com o tecido.
— Eu me esforcei demais pra manter nossa relação descontraída como era antes. Não foi nada fácil, mas eu tava conseguindo. Porém, um ano atrás, em um tarde qualquer, você me olhou. Você me enxergou. Aquele olhar que me deu quando te impedi de cair... Tão intenso e profundo, me tirou do prumo — direciona novamente suas esmeraldas para mim. — Eu vi desejo em seus olhos. Desejo por mim. Foi rápido como um raio. Mas eu vi. Comecei a te provocar e você passou a reagir a mim. Todas vezes. Você sempre reagia a mim. Então decidi que iria mesmo te conquistar e aqui estamos nós.
Dá de ombros, como se tivesse acabado de falar sobre alguma banalidade qualquer e não sobre os sentimentos que nutre por mim há anos.
ANOS!
Merda!
Eu praticamente mexi em um vespeiro e agora não sei como lidar com as consequências.
Fito o nada, tentando digerir todas as coisas que ele falou.
Jesus... Esse menino acabou de confessar ser apaixonado por mim há anos.
ANOS!
Que merda que fiz?
— Não vai falar nada?
Dou de ombros.
Não sei o que falar.
O impacto dessa revelação foi forte e me deixou desnorteada. Estava desconfiada que ele estivesse começando a nutrir sentimentos mais fortes por mim, porém, em momento algum desconfia que fosse algo tão antigo. Ele realmente soube esconder tudo muito bem.
— Tá, então deixa que eu continuo — levanta da cama agitado e vem até mim. — Vou te fazer uma pergunta e preciso que você seja sincera, okay? Promete?
Assinto, sem encontrar minha voz.
— Você gosta da nossa relação? Gosta da rotina que criamos?
Confirmo, hesitante.
— Não sei se você já percebeu, mas temos a rotina de um casal. Eu durmo aqui com você, às vezes você dorme no meu apê comigo. Nos falamos todos os dias, viajamos, fazemos planos para os finais de semana e feriados. Não sei você, mas eu nunca criei uma rotina dessas com ficante nenhuma. Aos meus olhos, nós basicamente somos um casal, só falta oficializar.
— O-oficializar?
— É. Namorar, parar de nos esconder
— Você quer namorar comigo?
— É um pedido? Porque eu aceito — sua brincadeira não surte efeito e ele volta a ficar sério. — Sim, eu quero te namorar, Beatriz. E você, não quer namorar comigo? Não quer dar uma chance para nós dois?
Me afasto agitada.
— Você tem vinte e dois anos!
— Suponho que seja um não — dá dois passos para trás. O rosto vermelho denuncia a irritação. — Funcionamos bem juntos, Bia, durante os últimos meses criamos uma rotina massa. Dormir ao seu lado, acordar com você, cozinhar juntos, ficar juntos apenas assistindo filme ou conversando sobre uma banalidade qualquer... Fazer amor com você — se aproxima novamente, segurando meu rosto entre as mãos grandes. — Tudo isso. Toda essa nossa rotina... Eu amo isso. Eu amo você. E, enquanto vivíamos cada um desses momentos, nossa diferença de idade não atrapalhou em nada. Eu te amo e quero que a sociedade e seus preconceitos se explodam! Eu. Amo. Você.
— Amor? Não! Você não me ama. Você... Você não me ama! Não pode me amar. Eu sou mãe da sua melhor amiga. Você... — engulo em seco andando de um lado para o outro. — Você não sabe do que tá falando.
— Eu sei. Sei muito bem do que estou falando. Eu te amo há quatro anos, Beatriz — segura meus ombros, parando-me e me olha nos olhos.— Esses meses só confirmaram e triplicaram esse sentimento. Você não é só a mãe da minha melhor amiga, você é a mulher da minha vida.
— Você não... Você é apenas um menino, Gustavo...
— Eu não era apenas um menino quando estava entre as suas pernas! — Grita indignado e se afasta.
Arquejo. Sua fala soa como um tapa na minha cara.
— Desculpa, eu não deveria ter falado assim. Mas preciso que você entenda que sou um homem, Beatriz!
Anda de um lado para um outro como um leão enjaulado. Sua frustração é quase palpável.
— Gustavo, me escuta... Tu tem apenas vinte e dois anos. Está na fase de sair, festejar, viajar com os amigos e pegar geral... Ou, sei lá... Namorar alguém da sua idade.
Corta a distância entre nós com dois passos largos. Segura novamente meu rosto entre suas mãos e me olha dentro dos olhos.
— Eu não quero alguém da minha idade. Quero você. Só você. Eu te amo. Por que não entende? Por que não aceita? Eu trocaria festas, viagens e todas essas merdas por um relacionamento com você.
— Não fala assim. Você é jovem, aproveite sua juventude com alguém que tenha tanto vigor e sede da vida quanto você.
— Tu tem trinta e seis anos, não oitenta, Beatriz.
— É, mas tive que encarar a vida com seriedade cedo demais...
Se afasta com um olhar estranho, como se finalmente tivesse compreendido algo.
— Isso não é sobre mim, né?! É sobre você — sorri triste. — Você dedicou os últimos vinte anos da sua vida a sua filha e agora que ela foi viver a própria vida quer viver a sua também, né?
— Não é apenas sobre mim, é sobre nós. Você é tão jovem, viveu bem menos coisa que eu. Tem mais coisas a construir. Você quer ser pai, eu já não quero mais ter filhos. Você está construindo sua vida enquanto eu já tenho a minha estabelecida. Catorze anos é tempo demais. Estamos em fases diferentes da nossa vida e, por mais que eu goste do que a gente tem, não me sentiria bem sabendo que atrapalhei sua vida.
Senta na cama.
Os ombros caídos e olhar derrotado.
Sorri triste.
— Já ouviu falar que quem quer dá um jeito? Você claramente não quer. Não me quer — suspira e quando volta a falar sua voz está embargada. — Ao menos posso ficar em paz. Eu tentei, me declarei e insisti. Não posso te obrigar a ficar comigo.
Calça os sapatos, pega a mochila e sai.
Continuo parada no mesmo lugar. Ouço a porta bater e nesse momento sinto pesar em meu peito todas as coisas que falamos aqui.
Quero ir atrás dele. Quero tirar o olhar magoado do seu rosto. Mas a sensação que tenho é que meus pés estão cravados no chão.
Minha cabeça fervilha com os acontecimentos de ontem e hoje. Meu coração retumba. Bate forte declarando algo que eu já desconfiava, apenas me recusava a aceitar.
Estou apaixonada pelo melhor amigo da minha filha.
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