4. Espiões
Já tinha retornado para casa, e naquele momento, estava deitado na minha cama, olhando para o teto, refletindo sobre o quão estranho tinha sido o meu dia. Era cedo demais para perceber que aquela data marcaria o início de grandes mudanças na minha vida, e que nada seria como antes. No entanto, tudo em que conseguia pensar era o rosto de Luan, com aquele sorriso irônico estampado nele. Além disso, por algum motivo inexplicável, não conseguia tirar da cabeça a imagem dele saindo do banheiro sem camisa. Por que esses pensamentos estavam me atormentando?
Eu tinha olhado tão rapidamente que mal tive tempo de absorver todos os detalhes. Quantos gominhos de tanquinho ele tinha, afinal? Mesmo sendo tão magro quanto eu, ele claramente tinha um abdômen mais definido. Ah, devo estar ficando louco por me comparar com ele. O que isso importa na minha vida? Coloquei o travesseiro sobre o rosto, tentando afastar esses pensamentos.
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Luan não foi para a aula hoje. Não que eu tivesse reparado, pois não reparei. Mas meus amigos estavam me incomodando para saber por que eu tinha agido de forma tão impulsiva no dia anterior. Agora que penso nisso, sinto uma vergonha tremenda do meu comportamento de ontem, meu "eu" do passado. Saí correndo da sala atrás de Luan, nem mesmo sabendo o motivo de ter feito aquilo. Acabei inventando uma desculpa esfarrapada, dizendo que estava com dor de barriga, tudo para evitar que pensassem que sou gay ou algo assim, só porque faltei à aula para ir atrás daquele cara que mal conheço.
Aliás, falando em faltar aula, vejam só. Quando fui ouvir música no pátio da escola no intervalo entre as aulas, encontrei Luan deitado na grama sob uma árvore. Ele estava bem afastado dos outros alunos que preferiam ficar nas mesas, jogando conversa fora.
— Lendo eu sei que você não está, então o que faz aí? — Perguntei para ele, ao me aproximar da árvore.
Luan estava com um livro de física cobrindo o rosto, mas de alguma forma, consegui reconhecê-lo. Talvez tenha sido pelo seu cabelo desarrumado ou suas roupas pretas característicos. Quando ele ouviu a minha voz, retirou o livro do rosto e olhou para mim, exibindo um sorriso ladino. Não sei por que fui até lá. Estava prestes a colocar meus fones de ouvido e ir embora quando ele se ergueu, encostando-se à árvore, como se me convidasse para se sentar com ele.
Suspirei fundo e acabei cedendo. Sentei-me um pouco afastado, mas ainda perto o suficiente para notar as olheiras sob seus olhos. Enquanto Luan olhava à frente, parecendo desinteressado em tudo ao seu redor, as meninas que passavam por perto sorriam tímidas e bobas em sua direção.
Odeio admitir, mas ele provavelmente era o cara mais bonito da escola. Ele tinha tudo para ser o mais popular e conquistador, então por que não era?
— Qual é o seu nome mesmo? — Ele perguntou, finalmente olhando na minha direção. Suspirei pesadamente, incrédulo que ele não lembrava nem mesmo disso.
— Kevin — respondi, mais ranzinza do que pretendia.
— Kevinzinho — ele repetiu, claramente caçoando de mim.
— E o que aconteceu ontem afinal? Por que me levou até aquele ferro velho?
— Bem, o James estava precisando de uma ajuda. Eu levei o primeiro idiota que encontrei para ajudá-lo e ganhar um pouco de paz — Luan apoiou ambas as mãos nas costas, usando-as como apoio enquanto continuava encostado na árvore. Cada ação dele só aumentava minha irritação. — E você, nerdzinho, por que saiu correndo quando me viu saindo do banho? Até onde sei, só ratos têm medo de cobra grande.
Desviei o olhar de seus olhos verdes antes que meu rosto corasse. Não sei por que corri depois de vê-lo apenas com uma toalha. Só sei que ele parecia tão intimidante naquele momento. Não, intimidante não é a palavra certa. Talvez fosse... atraente? Droga! Por que estou tendo esses pensamentos em relação a outro cara?
— Só fique fora do meu caminho, ok? — Falei, sem coragem inicial de encará-lo nos olhos. Contudo, devido ao silêncio dele, decidi confrontá-lo olho no olho. Quando finalmente o olhei, percebi que ele estava sorrindo, mas não para mim. Ele estava olhando mais à frente, onde Letícia nos encarava de braços cruzados.
Percebi então que a presença dela provavelmente o fez acreditar que eu estava apenas cumprindo ordens dela. Não me dei ao trabalho de corrigir seu engano. Apenas me levantei e o deixei para trás. O que eu deveria fazer já fiz, cortar relações com ele.
— Como desejar, vossa alteza — Luan gritou enquanto eu já havia tomado razoável distância, a fim de se certificar que eu o escutaria.
Cheguei diante de Letícia. Re recordei que o clima entre nós ficou pesado ontem.
— Me desculpe — falamos em uníssono, ambos erguendo as sobrancelhas, sem entender por que o outro estava se desculpando.
— Me desculpe por tentar ser uma amiga super protetora — Letícia explicou enquanto caminhávamos pelo corredor da escola. — Não estamos mais na mesma turma. Talvez eu tenha ficado com ciúmes de você fazendo novos amigos, e meu surto ontem deve ter sido por medo de ser deixada de lado e esquecida.
Vê-la desviar o olhar e ouvir seu desabafo me fez involuntariamente abrir um sorriso genuíno. Acreditei que a situação fosse o contrário. Pensei que, no final das contas, minha melhor amiga faria novos amigos e eu seria o esquecido.
— Deixa disso — falei, balançando o ombro no dela quando chegamos ao meu armário no corredor. — Além disso, você estava certa sobre aquele idiota do Luan. Ele só estava tentando me usar.
— Usar? Ele te comeu e não ligou de volta? — Letícia começou a rir, debochando, enquanto eu franzia o cenho e me irritava com ela. Acho que foi cedo demais para declarar trégua com essa garota. — Relaxa, foi só uma brincadeira.
— Não vi a menor graça — Fechei a porta do meu armário com força, ainda irritado.
— E aonde vocês foram ontem, afinal?
— Não vem ao caso — Tentei desconversar. Por que ela ainda estava insistindo nisso? Só queria esquecer aquele idiota. O fato de ninguém ter descoberto que me atacaram com um extintor de incêndio ontem na escola já ajudava a evitar virar alvo de chacota.
— Sabe, longe de mim fazer fofoca — Ela achava que eu acreditava nisso. Leh amava uma fofoca —, mas ouvi boatos de que seu "amiguinho" anda vendendo uns produtos nada lícitos por aí.
Ficamos ambos diante da porta da minha sala, aguardando apenas o som do sinal que indicaria o início da aula. A menção sobre a possível atividade de tráfico envolvendo Luan me fez reviver os acontecimentos do dia anterior quando James mencionou essa misteriosa parceria de negócios entre Luan e aqueles caras do terceiro ano. Tudo isso se somava ao fato de que Luan aparentemente tinha ocupações noturnas, o que talvez explicasse as profundas olheiras que notei mais cedo em seu rosto.
— Bem, que diferença faz? Você vai chamar o leão do Proerd e denunciar?
— Para o leão do Proerd, eu não sei, mas que tal para o "leão da escola"? — Um sorriso travesso surgiu no rosto de Letícia enquanto ela sussurrava para garantir que os alunos que passavam não nos ouvissem.
— Vamos, não está difícil entender aonde quero chegar. Estou falando que se, por acaso, dois melhores amigos seguissem esse cara depois da aula e o flagrassem vendendo drogas, e se o diretor recebesse provas disso anonimamente, o que aconteceria com Luanzinho?
Um sorriso maquiavélico se desenhou no rosto de Leh, revelando seus dentes perfeitamente alinhados. Por um breve instante, uma sensação de excitação perpassou meu ser. A ideia de que poderíamos provocar a expulsão de Luan como um ato de vingança pareceu intrigante, embora eu admitisse que, inicialmente, essa possibilidade deveria ter sido considerada desde o princípio pelo que me fez no dia anterior. Ainda assim estava relutante.
Contudo, se antes eu tinha dúvidas, a certeza veio quando aquele perturbado adentrou a sala, esbarrando com força o meu ombro e o de Letícia, sem a menor cortesia. O impacto foi particularmente mais brutal em mim, quase me fazendo perder o equilíbrio e cair no chão. O sujeito lançou um olhar malévolo na nossa direção e prosseguiu rumo ao fundo da sala.
— Combinado. Vamos seguir ele depois da aula — sussurrei com convicção para Letícia, desviando o olhar para o nosso alvo no fundo da sala, que, naquele momento, já começara a cochilar, com a cabeça apoiada sobre os braços, em sua carteira.
🕵️
Assim que as aulas terminaram, encontrei-me com Letícia na saída da escola, e demos início a nossa perseguição. Mantivemos uma distância segura dele, nos escondendo ocasionalmente atrás de postes e outros obstáculos. Parecia que a rotina dele se repetia todos os dias. Mais uma vez, Luan dirigiu-se à oficina de James, desta vez a pé.
Enquanto aguardávamos pacientemente que as horas passassem e que Luan finalmente saísse do local, Letícia começou a me questionar sobre as atividades dele naquela oficina. Acabei me sentindo compelido a relatar todos os eventos do dia anterior.
— Meu Deus, a situação só piora. Se ele for líder de uma gangue e descobrir que estamos seguindo-o, amanhã nossos cartazes de desaparecidos vão estar espalhados pela cidade — Letícia constatou, enquanto usava um binóculo para tentar enxergar de onde estávamos o que ocorria dentro da oficina.
Mas seu esforço era em vão. Afinal, dessa vez, tanto James quanto Luan haviam adentrado a casa dos fundos. Nada podíamos fazer a não ser esperar. Bom, na verdade tinha algo mais que podíamos fazer: ir embora. Mas essa opção não existia para Letícia, por mais que eu tivesse insistido.
Horas se passaram, e a noite começou a cair. Letícia me acordou bruscamente com um vigoroso balançar no meu ombro, fazendo-me despertar assustado e me afastar do poste onde eu estava escondido.
— Ele está saindo — ela sussurrou, embora fosse desnecessário, já que estávamos a uma distância segura de Luan e ele não poderia nos ouvir.
Observamos o meu inimigo se despedir de James e, depois de deixarmos uma distância segura entre nós, retomamos nossa furtiva perseguição. À medida que o tempo passava, tornou-se mais fácil para nós nos ocultarmos e diminuirmos a distância entre nós, principalmente quando, cerca de meia hora depois, Luan chegou a uma área mais movimentada da cidade.
Finalmente, estávamos no centro da cidade, em uma noite gelada. Luan caminhava com as mãos nos bolsos de sua jaqueta, com uma expressão pensativa no rosto. Para onde ele estaria indo?
Pouco tempo depois, ele adentrou um beco sem saída. Quando alcançamos o local, ele já não estava mais lá. Contudo, havia um único estabelecimento no beco, cuja placa de neon fluorescente proclamava "Diamante Negro".
— Isso é... — Comecei a dizer enquanto me aproximava da entrada do local.
— Uma boate — Leh terminou a fala, intrigada. — Não era bem isso o que eu estava imaginando encontrar quando decidimos o seguir. Afinal, que tipo de trabalhos noturnos ele faz aqui? Acompanhante de luxo?
— Quê? Não! Quero dizer, não — eu moderei o meu tom de voz ao perceber que estava exagerando. No entanto, eu também não conseguia entender o que Luan estava fazendo naquele lugar. — De toda forma, já sabemos para onde ele vem todos os dias. Agora podemos ir embora.
— Nada disso. Iremos entrar — Leh afirmou com convicção, dirigindo-se decididamente à pesada porta de ferro do estabelecimento.
Fiquei surpreso com a sua atitude e tentei impedi-la. No entanto, antes que ela pudesse abrir a maçaneta da porta, uma mão pesada pousou em nossos ombros, nos fazendo engolir em seco. Olhamos lentamente para trás, apenas para nos depararmos com um homem musculoso e carrancudo, vestido com um terno preto, que nos observava com severidade por de trás de seus óculos escuros.
— Deixe-os, Roger. Eles estão comigo — aquela voz maldita e familiar veio de trás de mim quando a porta da boate se abriu. Nunca pensei que ficaria tão aliviado em vê-lo. No entanto, enquanto nossos olhares se voltavam para Luan, fomos atingidos por um olhar furioso, como se ele fosse capaz de nos matar. Ou melhor, Luan tinha apenas eu como alvo da sua ira.
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