3. Gato Escaldado
Aquele maldito garoto de olhos esverdeados sorria de forma travessa enquanto o sol forte batia em suas costas. Ele estava bloqueando minha passagem com seus braços apoiados na caixa d'água do terraço. O que ele estava tramando? Naquele momento, eu não tinha a menor ideia. A única coisa que eu conseguia perceber era o cheiro peculiar dele e seu hálito próximo à minha boca.
— Sobre o que você está falando? — Decidi confrontá-lo, tentando não demonstrar que estava um pouco receoso e, talvez, até com medo da resposta.
Nesse momento, ouvimos o som do sino da escola ecoando nos andares inferiores, sinalizando que "a liberdade cantou", ou, em outras palavras, que as aulas já haviam acabado. Luan afastou os braços e assim pude dar alguns passos para trás.
— Venha comigo se quiser saber.
Ele se afastou rapidamente, descendo as escadas de volta ao corredor da escola. Meio contrariado eu o segui. Nos misturamos à multidão de estudantes a caminho da saída da escola. Luan estava indo tão rápido que, por um momento, pensei que ele tinha esquecido que eu estava atrás dele. Tinha também a sensação de que estava esquecendo alguma coisa, mas não conseguia me lembrar do que era...
— Sua mochila. — A garota loira perto do portão da escola segurava minha mochila preta e me entregou assim que cheguei ao seu lado.
Letícia estava com um olhar suspeito voltado para mim. Mesmo não sendo mais da minha turma, não me surpreendia que minha melhor amiga, com sua rede de amigos pela escola, tivesse descoberto que eu estava matando aula pela primeira vez na vida.
— O que deu em você, Kevin?! Francamente. — Leh não parecia realmente irritada, mas, dada nossa intimidade, sentia-se no dever de me dar pelo menos um sermão.
Suspirei profundamente, mudando de assunto e perguntando como tinha sido o dia dela. Era a melhor maneira de fazê-la esquecer algo. Não me entendam mal, Letícia se preocupava muito com os amigos, mas ela era uma pessoa que amava falar de si mesma. Um tanto narcisista, eu admito.
Enquanto conversávamos, esqueci completamente da existência de Luan. Talvez fosse melhor assim; aquele garoto definitivamente não era o tipo de pessoa com a qual eu normalmente faria amizade e nem o tipo de pessoa que gostaria que fosse visto andando junto comigo. Ele era exatamente o oposto dos meus amigos.
Letícia e eu quase fomos empurrados para fora do terreno da escola por uma horda de alunos desesperados para ir embora. Custava pedir licença? No momento em que nos afastamos do portão para abrir caminho, o demônio de olhar debochado ressurgiu diante de nossos olhos.
Luan estava ao lado de um amigo. Se lembro bem da breve reunião na sala do diretor, o nome desse garoto era Felipe. Assim como Luan e Rafael, Felipe era um dos responsáveis por eu ter levado um jato do extintor de incêndio mais cedo. Aquele garoto de rosto quadrado e corpo musculoso me encarava como se quisesse me fulminar com o olhar. Após entregar uma chave para seu amigo, Felipe saiu de nossa vista dando passos firmes pela calçada. Ser musculoso e de semblante fechado fazia com que qualquer pessoa que cruzasse seu caminho tremesse na base. Não foi diferente comigo, que também engoli em seco após vê-lo partir.
Letícia me olhou incrédula. Seu olhar surpreso se voltou para Luan, que estava um pouco mais afastado, tentando confirmar se o que estava vendo não era uma ilusão. O garoto alto na calçada se inclinou sobre o poste de luz, com um dos pés apoiados nele, enquanto sorria na nossa direção. Quando percebeu nosso olhar voltado para ele, ele passou a mão pelo cabelo de forma sedutora. Claramente estava tentando, em vão, flertar com minha melhor amiga.
Leh, por sua vez, olhou espantada para mim. Puxou a gola da minha camiseta polo branca e se aproximou o suficiente para que somente eu ouvisse suas lamentações:
— Você enlouqueceu de vez?! Decidiu fazer amizade justo com o idiota que te atacou no primeiro dia de aula? Escuta, Kevin, esse cara não presta. Está te levando para o mal caminho. Não me admiraria que logo ele comece a te influenciar a fumar maconha.
Maconha não, mas cigarro, isso ele já tinha feito. Bom, Letícia não precisava saber disso, certo?
— Para de agir como se controlasse com quem eu devo ou não andar. Nem minha mãe é tão pé no saco quanto você! — Eu sei que podem pensar que fui duro com ela, mas estava ficando cansado dessa situação. Às vezes, ela agia como se eu fosse uma criança que precisava de uma "irmã mais velha" para ficar de olho. Como se ela sequer fosse minha irmã.
Na verdade, eu realmente não sabia o que estava acontecendo comigo. Parecia que eu queria provar algo para Leh, para mim mesmo e para quem quer que estivesse interessado em saber que Kevin Drummond não era tão certinho e refém das regras como todos pensavam.
Também não sei de onde tirei a ideia de que ir com Luan e entrar naquele carro branco provaria alguma coisa. Mas foi o que fiz. Assim que adentrei aquele Ford Escort coloquei o cinto e então ele deu partida com o carro.
Luan estava dirigindo, enquanto eu olhava apreensivo. Ele sequer tinha carteira de motorista? Ele tinha a mesma idade que eu, certo? E se a polícia nos parasse? E se tivéssemos um acidente porque ele supostamente estivesse bêbado? Não duvidaria disso considerando quem ele era. Ou pior, e se minha mãe me visse pegando carona em um carro caindo aos pedaços dirigido por um menor de idade?
Tentei parecer o menos assustado possível, mas não tenho certeza se consegui. Luan olhava ocasionalmente na minha direção e soltava risadinhas abafadas. Isso definitivamente não tornava a situação mais confortável.
— Para onde estamos indo, afinal? — Perguntei, sendo completamente ignorado.
Em vez de responder, meu "motorista" decidiu ligar o rádio. Pelo menos o rádio funcionava nessa lata velha, já estava surpreso que o carro conseguisse andar em linha reta (não tenho certeza se essa admiração era pelo estado do veículo ou pela minha total falta de confiança no motorista).
— Que banda é essa?
— Como assim você não conhece AC/DC?
Dei de ombros. Já tinha ouvido falar, mas nunca me dei ao trabalho de pesquisar sobre. Muita gritaria para os meus ouvidos.
— E o que você gosta de ouvir?
— Não tenho um gosto musical específico. Escuto um pouco de tudo... — Eu mesmo me interrompi quando vi aquele sorriso debochado novamente. — O que foi agora?!
— Nada. Só parece que você é o tipo de pessoa que escuta músicas daqueles desenhos animados japoneses.
— De jeito nenhum. Eu não sou nerd nem otaku! — Ok, ele não precisava saber que eu gostava de assistir alguns animes. — E você cala sua boca... Cara escroto. Fedorento! — Por que eu disse isso? Não sei. Só queria irritá-lo da mesma forma que ele fazia comigo. Mesmo que não tivesse resultado em nada.
Luan parecia estar formando uma opinião sobre mim aos poucos, mesmo que fingisse não se lembrar de que eu estava no mesmo carro que ele. Prova disso? Ele arrotou. Duas vezes! Sério, se ele fizesse isso uma terceira vez, eu abriria a porta e o jogaria na estrada mesmo com o carro em movimento.
— Eu sei o que você estava pensando quando me viu conversando com a minha amiga. Esquece — Decidi cortar o barato dele de uma vez. Luan me olhou com uma expressão confusa. — Você não tem chance com ela. Não me entenda mal, reconheço que você é bonitinho, mas ela gosta mais de sair com caras menos problemáticos.
— Então, eu não tenho chance com a loira porque sou encrenca segundo vocês? Desculpa aí, espelho da moralidade e perfeição em pessoa.
— E pensar que eu achava que você tinha mais de dois neurônios. Você é um idiota por achar que...
— Chegamos. — Luan interrompeu minha fala ao estacionar o carro. Eu nem percebi como o tempo tinha passado rápido com o tanto que ele me irritava.
Saí do carro com um rangido da porta enferrujada, e me deparei com um cenário desolado. Era como se tivesse aterrissado em um mundo esquecido. À minha volta, estendia-se um vasto terreno, um verdadeiro ferro-velho. Não havia sinal de vida, exceto pelos destroços enferrujados de carros em estado lastimável, alguns deles com os capôs escancarados, revelando suas entranhas.
No horizonte, destacava-se uma oficina, e foi na direção dela que Luan começou a seguir determinado. Curioso, acompanhei-o. Dentro dela uma figura humana estava debaixo de um carro azul, mas eu não tinha conhecimento suficiente para identificar a marca ou modelo do veículo. O carro parecia estar nas últimas, com peças faltando e um ar de decadência.
Ao perceber nossa presença na pequena oficina, o garoto embaixo do carro deslizou para fora usando uma rampa de mecânico. Ele usava um macacão azul bem sujo, e seu rosto quadrado estava manchado de graxa. Ao notar Luan, o adolescente de tom de pele caramelo, que parecia ter a mesma idade que nós, se levantou do chão e o abraçou.
Olhando além da sujeira, ele até tinha um rosto bonito. Boa estatura, e um sorriso tão natural e irritante quanto o de Luan. Seriam eles irmãos?
— Conseguiu outro? — Ele perguntou para o meu "colega" de classe.
Luan jogou a chave do carro que tínhamos usado na direção do garoto do macacão. Então, quando ele falava de "outro", ele queria dizer mais um carro? O que exatamente eles faziam ali?
— Vai logo, traga-o para dentro e desmonte-o — Depois de falar, Luan seguiu em direção à porta nos fundos da oficina.
Não demorou muito para que eu percebesse que não deveria segui-lo. Assim que ele abriu a porta para entrar na casa atrás da oficina, ele a fechou rapidamente atrás de si, como se tivesse se esquecido completamente de que eu ainda estava ali.
— James — O rapaz ao meu lado finalmente se apresentou, estendendo a mão em minha direção.
— Kevin — Sibilei.
Retribuí o gesto, mesmo sabendo que minhas mãos ficariam sujas de graxa no processo. Ajudei-o a tirar o carro que ele estava supostamente "consertando" de dentro da oficina e trouxemos o Ford que estava do lado de fora para dentro.
— Não vai me dizer que são carros roubados, não é? — Decidi questionar quando James começou a inspecionar a parte de baixo do veículo, enquanto eu andava de um lado para o outro. — Vocês desmontam os carros para vender as peças? Qual é a história trágica dos dois? Seus pais morreram em um acidente de carro, e vocês usam isso como sinal divino para sobreviverem roubando carros? E vocês moram sozinhos aqui, nesse lugar isolado da civilização foragidos da polícia?
— Cara, você não tem botão de mudo, não? Você não para de fazer perguntas — James bufou depois de sair de debaixo do carro e pegar uma caixa de ferramentas na mesa da oficina. — Não vai ajudar?
— Não tenho ideia do que fazer — Cruzei os braços, parecendo uma criança irritada. Na verdade, a parte da criança não, mas quanto ao fato de estar irritado procedia. Se a polícia aparecesse ali, eu estaria em apuros. Estava me tornando cúmplice de um suposto crime!
James me fez ficar parado em frente ao carro, passando as ferramentas para ele enquanto ele estava embaixo do veículo. Aposto que ele me considerava um inútil.
— Bom, o que posso dizer é que não somos irmãos. Ele é o meu melhor amigo. Chave inglesa — Passei a ferramenta conforme solicitado. — Luan não mora aqui, apenas eu. E se ele não está me ajudando agora é porque esse é o único horário que ele tem para descansar. Alicate. Ele tem uma vida noturna bem agitada, que presumo que você não faça a menor ideia.
Ele tinha certa razão. Eu não sabia absolutamente nada daquele idiota. Não sabia nem o que eu estava fazendo ali. Mas é como dizem, se está no inferno abraça o capeta...
Me abaixei e entrei debaixo do carro, ficando lado a lado com James. Foi então que olhei para cima.
— O seu melhor amigo disse que deveria desmontar o carro o mais rápido possível. Bom, com duas pessoas acho que será mais rápido, né? — Falei, soando um pouco mais tímido do que gostaria. James sorriu para mim. — E então, o que devo fazer?
🔧
Passamos quase que a tarde toda desmontando aquele carro. Pensa numa trabalheira... Quando enfim terminamos, James estendeu uma garrafa de cerveja para mim, que recusei de imediato. Meu Deus, será que tudo o que esses caras fazem é ilícito?
— Sabe, fiquei surpreso quando o Luan te trouxe aqui — James deu uma pausa em sua fala, usando desse tempo para tomar um gole de cerveja encostado sobre a mesa da oficina. — Ele basicamente não tem amigos. Além de mim, os únicos outros amigos dele são o Rafael e o Felipe, que pelo que você me falou você meio que conheceu eles hoje. Mas eu nem sei se diria que são amigos dele de verdade, estão mais para parceiros de negócio.
— Não acha que já está na hora de me contar o que diabos vocês fazem aqui com esses carros?
— Quanto menos souber, melhor. Afinal, o garotinho aí odiaria se meter em problemas, não é mesmo? — Depois de tirar onda com a minha cara, James deu uma risada leve, deixando a garrafa em cima da mesa e tratando de guardar todas as peças que havia desmontado do veículo.
Sério, todo esse trabalho a tarde toda para no fim das contas as pessoas continuarem achando que sou um nerd? Inferno!
Mas confesso que me surpreendi ao saber que Luan não era tão popular quanto imaginei. Quer dizer que fora o James ele não tinha nenhum amigo? Bom, não dá para negar que ele não é muito sociável. Me trouxe aqui sem que eu soubesse o real motivo e deu chá de sumiço há horas.
Diferente do idiota que estuda comigo, James parecia ser bem mais fácil de lidar. Confesso que até simpatizei com ele. Realmente parecia ser um bom amigo, a forma como me contou que ficou surpreso com minha chegada não parecia nem um pouco com ciúmes de amizade. Ele realmente ficou feliz em ver que Luan estava fazendo novos amigos. Bom, foi o que ele achou, pois eu jamais serei amigo daquele monstro da paralisia do sono... Mas, diferente do James, eu meio que senti uma pontinha de ciúmes da amizade dos dois. O que estava acontecendo comigo?
— Eu avisei que você iria se sujar todo — James apontou para minha roupa, fazendo-me perceber o quão suja de graxa minha camisa branca e minha calça jeans estavam, além das minhas mãos e rosto.
— Você não avisou nada!
Mais uma vez, James riu da minha indignação. Nisso, tenho que concordar que ele se parecia muito com Luan. Ele apontou para a porta no final da oficina e disse que eu poderia usar o banheiro para me limpar.
Foi o que fiz, meio contrariado. A casa em anexo à oficina tinha apenas três cômodos. A cozinha e a sala dividiam o mesmo ambiente. À direita, havia uma porta de madeira fechada. Presumi que fosse o quarto e, como estava fechada, imaginei que Luan estivesse dormindo lá. Decidi evitar despertar o "lobo mau". Usaria apenas o banheiro à esquerda da sala, depois chamaria um carro de aplicativo para me levar embora.
No entanto, ao abrir a porta sanfonada do banheiro, levei um susto. Uma névoa saía do banheiro, pois o chuveiro tinha sido usado recentemente. No mesmo momento em que eu tentava entrar, alguém estava prestes a sair. Luan estava diante de mim, com uma toalha branca em volta da cintura, onde ele se encontrava sem camisa. Seu corpo era bem definido, embora não fosse muito musculoso, e seu cabelo ondulado estava molhado, fazendo-o parecer um gato escaldado.
Por alguma razão, eu não conseguia parar de olhar para ele. Estava tão perto de mim. Só alguns segundos depois percebi o quão constrangedora a situação era e ergui o olhar rapidamente para o rosto dele. Não era mais aquele olhar de desdém ou deboche, era um olhar enigmático e intrigado.
— Você que disse que eu estava fedendo, apenas segui seu conselho. Cheira aqui e me diz se ainda estou fedendo. — Aquele sorriso debochado voltou ao seu rosto. Droga...
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