15. Equinócio
ɢʟᴀᴄɪᴇʀ
— ᴜᴍ ʙʀɪɴᴅᴇ ᴀ este inverno! — Ivaar disse, na ponta da mesa, erguendo seu copo. Todos nós sorrimos e o imitamos, tilintando os copos uns nos outros.
No meio daquela confusão feliz, encontrei o olhar de Kai, sentada a minha frente. Sorrimos um para o outro e eu estendi a mão sobre a mesa, e ela a segurou. Intensifiquei o aperto, e o toque fez meu coração saltar alegre.
Estávamos tentando ser discretos, mas não pude deixar de admirá-la de forma um pouco chamativa. Não conseguia me conter, estávamos há um mês juntos e mesmo assim segurar sua mão ainda me fazia sentir como um adolescente dos filmes de comédia romântica.
O tempo havia passado rápido, e as memórias começaram a me invadir com essa reflexão. Era interessante como havíamos ido parar ali naquele almoço em família, que estava acontecendo em um restaurante de uma das muitas estações de snowboard de Taiga.
A ocasião havia sido desejada por nossas famílias pelo último mês inteiro desde que a Aurora Boreal voltou a brilhar no céu. Naquela noite, Kaira e eu conversamos até o sol apontar no horizonte, tendo a neve ao nosso redor, as estrelas e as Luzes como únicas testemunhas. Nossas risadas ecoavam por entre os picos do Oceano Nevado e nós nos esquentávamos em um abraço.
Criamos memórias que ficariam para sempre em meu coração. No entanto, a manhã seguinte foi igualmente marcante.
Os gêmeos me encheram de perguntas, assim como praticamente me obrigaram a levá-los até Kai para iniciar outro interrogatório. Aproveitando a deixa, meus pais nos acompanharam e conheceram não apenas Kaira, mas sua mãe e seu avô também.
Desde então, não se falava em outra coisa a não ser um encontro com todos. Por sorte, os espíritos podem se tornar visíveis quando querem para os humanos, então era uma preocupação a menos de fazer a família de Kai parecer doida no meio de algum lugar, conversando com o que seria o além.
E como Valquíria havia decidido morar com Ivaar e Kai, as coisas ficaram mais fáceis, mas foi necessário aguardar um mês para a oportunidade perfeita: o último dia do inverno.
Meus pais agora poderiam descansar por um tempo com a mudança de estação, mesmo com uma coisa ainda incerta: o paradeiro de Primavera. Não a víamos desde a quebra da maldição, mas Kai dizia ter certeza de que ela deveria estar bem.
Sendo sincero, eu preferia ter as mesmas esperanças. Não poderia dar errado logo depois de tanto esforço, não é mesmo?
Isso eu torcia para ter em comum com a princesa Aurora: o "felizes para sempre".
— Será que eles vão demorar? — Flake perguntou ao meu lado — Estou curioso para testar a comida.
— Flake, não tem nem vinte minutos que pedimos! — Snow revidou — Não se precipite.
— Calmem, vocês dois, logo a comida chega sim. — meu pai disse aos dois, fazendo o resto da mesa rir.
— Aliás, quem sugeriu o restaurante? A vista daqui de cima é linda! A última neve ainda está bem acumulada. — minha mãe foi a próxima a comentar, olhando ao redor para as janelas que nos possibilitavam ter da montanha abaixo.
— A Kai quem sugeriu, Winter. — Valquíria sorriu para a filha, que estava tomando mais um gole do seu refrigerante e assentiu.
— Ela quer vir aqui desde que se mudou, não é? — Ivaar comentou, encarando Kai, como se a encorajasse a fazer alguma coisa. De repente, eu entendi.
— Você veio aqui querendo descer a montanha de snowboard? — perguntei, fitando-a. Kai colocou uma mecha castanha de cabelo atrás da orelha e assentiu, seus olhos cor de mel se desviando de mim.
— Sim, mas eu já perdi a coragem.
— Mas você precisa ir, Kai! — Snow disse, virando-se para ela, animada — É uma delícia descer uma montanha de trenó.
— Sem contar que o vento batendo no rosto é libertador. — Flake incentivou.
— Pode até ser, mas diferente de um trenó eu vou descer em pé.
— Mas Kai, você já desceu uma montanha de snowboard. — Ivaar comentou, o cenho franzido.
— Quando eu tinha sete anos, vovô! E não passava de um morrinho de neve.
— Mesmo assim você deve se lembrar de alguma coisa, eu vou até lá contigo, se quiser. — ofereci, já prestes a me levantar.
— Não, Glacier, não precisa. Eu sei que não vou conseguir superar o medo hoje.
— Tem certeza?
Kai pareceu ficar mais em dúvida ainda quando reforcei a proposta e com alguns incentivos do restante do pessoal, foi convencida. Ela se levantou, e logo nós dois estávamos na fila esperando sua vez.
— Raspadinha. — ela me chamou em um sussurro. Geralmente o apelido que Flake divulgou seria para encher minha paciência, mas o tom de voz de Kai anunciava o contrário — Você acha que vou conseguir?
— Claro que vai. Você já conseguiu fazer muita coisa que achou que não fosse ser capaz, essa também vai ser uma delas.
Fitei-a diretamente, e foi inevitável não me sentir melhor quando percebi ela relaxar um pouco. Um sorriso suave surgiu em seus lábios e Kai ficou na ponta dos pés, aproximando-se mais do meu rosto até me beijar brevemente.
Pelo visto, de acordo com minha mãe, estávamos na fase "chiclete" do relacionamento, o que significa que estávamos sempre abraçados ou perto demais. Por isso não foi surpresa quando eu automaticamente a envolvi com meus braços, tanto com o objetivo de tê-la mais perto quanto de acalmá-la. Consegui realizar os dois com sucesso por um tempo, no entanto, toda a calma se foi quando Kaira precisou ficar de pé na prancha de snowboard.
— Glacier, não dá.. — ela sussurrou, segurando minhas mãos e olhando para o funcionário da estação com um semblante de desespero.
— Kai, calma, vai dar tudo certo. Você queria fazer isso esse tempo todo, lembra?
Ao ouvir minhas palavras, um brilho de determinação surgiu no semblante dela e com uma inspirada profunda, ela assentiu, soltando minhas mãos aos poucos e ganhando confiança. Sorri com sua escolha. O funcionário da estação que estava nos ajudando perguntou se estava tudo em ordem e Kai assentiu.
E aí, ela começou a descer a montanha, a postura tensa desaparecendo à medida que ganhava velocidade e seguia as instruções para manter o equilíbrio. Um sorriso amplo tomou conta do meu rosto quando ouvi Kai rir, e no meio do caminho ela se virou em minha direção, animada e acenando.
— Eu consegui! — ela gritou e eu ri, entretido demais para ver o que o funcionário da estação já havia reparado desde que Kai se virou.
— Moça, cuidado! — ele gritou a plenos pulmões, e foi quando Kaira se virou novamente para frente que eu percebi o quanto ela havia desviado do caminho da descida. Ela estava indo em direção aos pinheiros na lateral da pista.
Com o susto, Kai começou a perder o equilíbrio e se descontrolou, praticamente capotando com a prancha até ficar deitada, ainda deslizando pela montanha e ir de encontro com o tronco de uma das árvores. Minha respiração ficou presa na garganta e enquanto a voz do funcionário gritava para que seus colegas de trabalho seguissem o protocolo para acidentes, eu pensei em correr para dentro do restaurante, ir junto do socorro, qualquer coisa.
Porém, todos as minhas energias estavam focadas na imagem de Kaira caída na neve, sem se mexer. Eu senti meu coração afundar no peito.
Ela estava desacordada. O mundo dela estava escuro, e o meu desabando.
Com os ruídos insistentes das máquinas, indicando o que quer que fosse, eu analisava Kai deitada naquela cama, ligada a fios que eu nem entendia para que serviam. Sabia apenas que aquele bipe constante significava que seu coração batia, e era nele em que eu focava, já que sabia que ele não poderia parar.
Não de novo. Já que, no caminho para o hospital, o coração dela havia cessado.
Dentro da ambulância, observei os paramédicos devolverem a vida de Kai com massagens cardíacas, e nada eu podia falar, já que eu só conseguia ir para lá pois usufruí dos poderes de espírito para ficar invisível aos olhos de todos. No entanto, cruzou minha mente aparecer de repente e encher todos ali de perguntas, porque quando Kai se foi por um segundo, eu temi sentir sua alma indo na direção da Aurora Boreal.
Na realidade, eu já estava certo de que iria perdê-la, e quis gritar com o Universo. Eu confiava no que ele fazia, mas a sensação de perder alguém de novo, e dessa vez para valer...Eu não saberia lidar, não quando fui eu que insistiu para que Kaira descesse a montanha.
Tentei calar a culpa e a raiva que se apossavam de mim, e quis dirigir tudo o que sentia ao Universo, tamanha era minha impotência. Porém, fui feito de alívio e gratidão quando disseram que o pulso de Kai havia voltado, e me contive para não denunciar minha presença na ambulância.
O interessante é que, quando consegui prestar atenção no que diziam, nem os médicos souberam explicar por que o coração de Kai havia parado. E como eu não entendia nada dos exames, comecei a teorizar sobre a situação, sendo engolido pelo tempo que se arrastava. Teria Kai batido a cabeça? Sofrido algo interno? A pergunta que mais me assombrava: teria chegado sua hora?
Depois do meu acesso de raiva, só tive coragem de sussurrar brevemente ao Universo pedindo para não ser verdade.
Em algum momento, em meio a esse caos, sentado na cadeira ao lado da janela no quarto, percebi que já tinha escurecido. Infelizmente, o céu não seria visitado pela Aurora Boreal naquela noite. Eu não estava em paz naquele momento, e consequentemente nem as almas nas Luzes.
Ergui o olhar para Kai mais uma vez, o medo secando minha garganta. Olhei para o relógio em uma espécie de móvel de cabeceira ao lado da cama, e percebi que eram 23:55. Suspirei quando percebi que Kai estava desacordada há quase onze horas, sem ninguém poder visitá-la, pois os médicos queriam privá-la de qualquer possível estresse, com medo de que outra situação como a de antes ocorresse.
Estávamos a cinco minutos do equinócio de primavera começar e eu não pude deixar de pensar se o bendito espírito daquela estação não estaria por trás disso. De qualquer forma, tentei evitar essa suposição e decidi avisar Valquíria e Ivaar que agora Kai tinha uma condição estável. Levantei da cadeira e fui em direção à porta, não querendo encarar a cama mais do que já havia feito nos últimos mil minutos.
Levei a mão à maçaneta, mas um grunhido baixo me deteve. Virei assustado para trás, mudando completamente de ideia e analisando Kai. Sua testa estava franzida e ela parecia dizer alguma coisa.
— Alguém...
Sua voz saiu em um sussurro tão frágil que até me questionei se não foi minha mente me pregando peças, mas logo já estava ao lado dela, apoiando minha mão na sua.
— E-Eu estou aqui, Kai. — engasguei na hora de falar, meu coração acelerando — Consegue me ouvir?
— Glacier.. — sua voz ainda era um sussurro, mas um sorriso leve surgiu — Você não vai acreditar no que aconteceu.
Não sabia o que expressar primeiro: confusão, surpresa ou felicidade. E não consegui decidir enquanto observava Kai se remexer mais um pouco e seus olhos começarem a se abrir. Ela estava bem agora, estava ali comigo de novo.
Porém, o que fez me perguntar se estava sonhando mais uma vez foi que os olhos cor de mel dela se transformaram. Estavam verdes.
Na verdade, parecia que os tons das folhas das árvores e da grama nova refletindo o orvalho foram capturados e representados nas íris que me analisavam, absorvendo meu coração e minha mente. Eu só conseguia focar nelas.
— Viu? — Kai riu — Eu falei que você não ia acreditar.
Franzi o cenho, incerto, analisando o que estava acontecendo, e a verdade começou a me atingir aos poucos. Lembrei-me do que minha mãe havia me contado ao longo da vida, de que, para o Universo transformar um ser humano escolhido em um espírito, a alma da pessoa deve desconectar-se de seu corpo, já que era a alma que sofria as influências da magia do cosmos, e não era um processo fácil.
Mesmo assim, bastava um tempo pequeno — o qual não sei se julgaria como pequeno exatamente — para que o Universo agisse, e o corpo antes humano também sofria alguma alteração marcante.
O relógio ao lado da cama apitou, chamando minha atenção, confirmando ser meia noite em ponto, e finalmente entendi. Abracei Kai em um ímpeto, a conclusão trazendo a paz que eu torci para ter durante todo aquele dia. Ela me abraçou de volta, meio atrapalhada pelos fios, mas rindo.
— Agora você entendeu, Raspadinha? Você vai ter que me aturar por um bom tempo.
— Entendi sim. Agora você vai poder pintar flores além de uma tela.
Eu sussurrei e fechei os olhos, sentindo o abraço. Algo em meu interior iluminou, e eu tive certeza de que a Aurora Boreal começou a dançar no céu, dando abertura à nova estação.
Era equinócio, neve se transformaria em flores, e quem faria essa transformação estava em meus braços.
Kaira era a nova Primavera.
Nem creio que chegamos ao último capítulo! Esse final surgiu lá pela metade da história, enquanto eu ainda montava melhor a trajetória da maldição e tudo mais. Espero de verdade que tenham gostado.
Bom, ainda falta o epílogo, o qual postarei hoje ainda! Então, fiquem ligados porque teremos mais uma atualização hoje, que fechará de vez a história.
Por isso vou guardar minhas palavras emocionadas para mais tarde XD Bom, até daqui algumas horas!
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