13. Ressignificar
ᴅᴇᴘᴏɪs ǫᴜᴇ o agora Glacier desapareceu, deixando-me com um sorriso bobo no rosto, eu levei alguns instantes para colocar minhas pernas em funcionamento. Coloquei as mãos enluvadas nos bolsos do casaco e senti a folha de âmbar guardada.
Tirei-a de seu esconderijo e a admirei. Tudo ao meu redor era branco, e aquela folha adornada se destacava em minha palma, com seu laranja translúcido, o mais belo exemplar de um outono que nunca deixou o inverno ressurgir.
Gravei uma imagem mental da cena, já decidida de como seria meu próximo quadro. Guardei a folha de âmbar novamente e senti meu sorriso aumentar, enquanto caminhava ao lado da trilha de pegadas minhas e de Glacier de quando entramos na floresta.
Tudo estava calmo, e tudo era silêncio, inclusive eu. Não existia mais vazio, eu já estava começando a achar o inverno lindo, ao mesmo tempo que sentia o sol dentro de mim derreter minha própria neve.
Paz. Era aquilo que eu estava sentindo, depois de meses. A saudade ainda existiria, mas sempre acompanhada da certeza de que meu pai estava bem.
Estava a alguns passos da porta dos fundos de casa quando me dei conta de que precisaria ligar para minha mãe, ela deveria estar perdendo a cabeça, inclusive meu avô. Mais do que depressa, encaminhei-me até os degraus da varanda, mas alguém segurou meu ombro antes que pudesse subi-los.
— Você... — a voz era um sussurro, mas me fez tremer como se tivesse ouvido um grito. Primavera não havia sumido, então?
Virei-me devagar e me deparei com um cena que me chocou. Aquela mulher que antes estava com flores nos cabelos perfeitos agora tinha os cachos desnutridos, seus olhos oscilavam repetidamente entre verde e castanho, como uma lanterna falhando. Até mesmo seu vestido parecia morto.
— Primavera, que raios tá acontecendo?! — ousei perguntar porque sabia que ela não teria forças para me machucar. Que estado era aquele?
Ela me agarrou pelos ombros e sacudiu a cabeça, lágrimas deslizando por seu rosto. Com seu toque, minha sensação de paz se retraiu, como se quisesse se proteger do que poderia perturbá-la.
— Você acabou com minha última chance! Achei que seria minha chave para o sucesso, Kaira.
— Primavera, isso já não importa mais. — afastei suas mãos com as minhas próprias, de repente percebendo que a energia dela havia mudado completamente. Estava frágil. — O que houve com você?
— O Universo, ele... — mais lágrimas caíram. De repente, alguém falou antes que Primavera pudesse completar o que queria dizer.
Cindy...
A voz vinha de todos os lados. Vinha de Primavera, de mim, da floresta, do ar, da neve.
Era marcante, soava experiente e novata, idosa e jovem, séria e divertida, até que eu percebi que ela era a definição perfeita de todos os opostos, exceto em uma coisa: era carinho puro. Aquela voz disse aquele nome como alguém chamaria a pessoa mais especial.
— NÃO! — Primavera gritou desesperada e soluçou, seus olhos ficando de um verde super intenso antes de serem dominados pelo castanho — Kaira, por que você fez isso comigo?
— Não fui eu, acho que você se deixou levar, Primavera. — eu sussurrei, sem saber o que se passava de fato — Mas está tudo bem, agora você pode finalmente achar uma forma de derreter esse inverno que tanto te atormenta.
O espírito arregalou os olhos e cambaleou, se agarrando a mim como quem se agarra a uma boia em alto mar. Amparei-a, pois parecia que ela cairia com qualquer vento que soprasse.
— Você deveria me entender, esse inverno é tudo que eu conheço!
Cindy, venha. A voz havia voltado e eu finalmente entendi — bem, mais ou menos.
Abracei Primavera, afagando seus cabelos, sentindo a textura de folhas secas. Ela finalmente pareceu voltar à versão que eu conhecia dela e começou a se debater, raivosa, mas continuei firme.
— Você só está com medo. Acredite, você é definida por muito mais do que só esse inverno, tente se soltar dele de uma vez por todas e vá.
Vá, Cindy.
No fim, a Voz dos Opostos se mesclou com a minha fala e tudo que escutei por último foi o choro de Primavera ficando cada vez mais alto, até eu não aguentar e fechar os olhos. Quando tornei a abri-los, não tinha mais ninguém além de mim, ao menos fisicamente, pois logo ouvi:
Obrigada, Kaira. Era Primavera, de onde quer que ela estivesse agora.
Não demorou nem cinco segundos para que um arrepio percorresse minha espinha e eu subisse os degraus da varanda correndo e passasse pela porta dos fundos, ofegante. Eu apenas agi sem pensar e agora meu cérebro tentava entender o que estava havendo.
Não precisei ponderar muito porque logo ouvi a camionete do meu avô estacionando. Quanto tempo havia se passado? Zonza, saí novamente, agora tendo certeza de que encontraria pessoas.
Pude perceber que Valquíria, ao me ver, desceu desesperada do carro e correu até mim, deixando Ivaar para trás. Eu já estava preparada para uma bronca, por isso que, quando ela me abraçou, eu soltei o ar, relaxada.
— Filha! Ai, meu Deus, você está bem?
Enrosquei meus braços ao redor dela, sentindo-me novamente em paz, dessa vez uma mais intensa, já que até Primavera havia ganhado um bom final. Suspirei, escondendo o rosto na curvatura do pescoço de Val.
— Estou sim, mãe. — chamá-la assim se tornava mais fácil depois de dita uma primeira vez. Afastei-me um pouco para conseguir olhá-la diretamente. — Nós precisamos conversar.
Olhei de minha mãe para meu avô, e os dois se entreolharam, para depois assentir. Entramos em casa, e vovô foi preparar chocolate quente.
— Então, foi isso. — suspirei, os olhos vidrados na fumaça que saía da minha caneca quase intocada. O chocolate quente ainda esquentava minhas mãos quando acabei de contar a história.
Até a folha de âmbar estava em cima da mesa como prova, e os dois a haviam analisado. As únicas coisas que resolvi deixar de lado foram meu momento de desespero para acordar Glacier e o ocorrido com Primavera. O primeiro porque ainda me confundia em certos meios, e não sabia o que nosso "encontro marcado" significaria. Já o segundo simplesmente por ser difícil de processar, iria confundi-los ainda mais.
Mas será que todo aquele silêncio deles significava que não acreditavam? Ou que somente estavam absorvendo as informações?
Quando considerei dizer mais alguma coisa, senti a mão de minha mãe encobrir a minha e apertá-la de leve. Ergui o olhar levemente arregalado para ela, que sorriu doce, mas com uma pitada de tristeza.
— Você realmente viu seu pai?
A voz de Val saiu meio engasgada no processo. Assenti veementemente enquanto colocava minha mão livre sobre a sua, imitando-a no ato de conforto.
— Sim, e ele disse para te lembrar que a perdoou há muito tempo, e que está feliz que as duas mulheres que ele ama estão se dando bem.
Ao som do verbo "ama", no presente, sem influência de passado ou rancor, minha mãe abriu um sorriso trêmulo, seus olhos cintilando. Lágrimas não caíram, e eu pude saber que ela finalmente havia aceitado a ideia de não conviver mais com a culpa.
Fitei meu avô de soslaio, imaginando se ele teria algo a ver com isso, e o percebi encarando-a com o mesmo brilho nos olhos que meu pai fazia quando eu lhe mostrava um quadro pronto depois de um longo processo. Era orgulho.
— Sabe, — minha mãe falou, respirando fundo e quebrando a reflexão — quando eu era criança conseguia ver essa mesma raposa que você descreveu, só não sabia que ela podia se transformar em um humano.
— Você acredita em mim, então?
A esperança era evidente no meu tom.
— Nós dois acreditamos, Kai. — meu avô se pronunciou, colocando uma mão no ombro da minha mãe. Senti que havia algo mais ali, então olhei de um para o outro sem entender.
— Seu avô pode vê-los, filha. Desde sempre, pelo visto.
— Eu...Nunca consegui esconder? — vovô balançou a cabeça e algo em mim murchou. Digo, eu estava começando a ter mais confiança nas minhas habilidades de espiã.
— Você precisa mais do que algumas tentativas de sair despercebida para enganar o velho aqui. — acabei rindo de leve, um sentimento de gratidão florescendo.
— Filha, eu tenho uma pergunta. — minha mãe disse, brincando com nossas mãos entrelaçadas.
— Qual?
— Você vai querer continuar vivendo aqui?
Eu estava esperando algo relacionado aos acontecimentos mágicos, qualquer tópico que tardasse aquele assunto. No entanto, Val ter tomado a iniciativa de comentar sobre ele evitaria uma mágoa maior. Afinal, eu havia percebido que não poderia ir embora.
— Sim, mamãe. — ela arregalou os olhos e paralisou feito uma estátua. Meu desespero triplicou. — Sinto muito, e-eu...
— Não é nada disso, Kai, ela só está surpresa que no mesmo dia que você começou a chamá-la de "mãe" já evoluiu para "mamãe". — Ivaar explicou, sacudindo a filha para que ela voltasse ao normal — Daqui a pouco entra uma mosca nessa sua boca aberta, Valquíria.
O comentário de vovô nos pegou completamente desprevenidas, eu comecei a gargalhar e quase me engasguei. Já minha mãe precisou pegar um copo de água para conseguir parar de rir depois que um gole do chocolate quente não adiantou muito.
— Que coisa de se falar, pai.
— Era para ver se mudava um pouco o clima, estava denso demais.
Vovô sorriu para minha mãe. Não pude evitar e fiz o mesmo, contente com a cena. Um dos desejos de meu pai é que eles dessem certo, e enfim estava acontecendo.
— Bom, meninas, eu tenho algumas encomendas a terminar. Vou estar na garagem se precisarem de mim.
Ivaar acenou para nós duas e passou pela porta, sumindo em sequência. Por algum motivo, o silêncio ficou pesado, e pela forma que minha mãe me encarava, ela tinha mais perguntas a fazer.
— Kai, o que você ainda não contou?
Prendi a respiração. Então, era esse o poder que tanto falavam que as mães possuíam, de saber de algo mesmo com seus filhos tentando esconder?
— Eu já disse tudo, mamãe, sério.
— Não disse, não. Você fica evitando nos olhar diretamente quando tem algo a esconder, seu pai fazia a mesma coisa.
É, eu realmente tinha puxado aquilo dele.
— Está bem, você ganhou, ainda falta um pouco.
— Você está confortável para falar sobre o que é?
Ponderei sobre sua pergunta. Val estava me dando o poder de escolha, o que eu estava almejando nos últimos tempos, e eu fiquei satisfeita. Optei pela parte que ainda não tinha um final.
— Quando Glacier estava inconsciente, quase partindo, — assumir em voz alta que ele poderia ter realmente desaparecido fez meu coração se apertar — eu entrei em desespero. Não sabia o que fazer, por isso fui por aquilo que os contos de fada falam que quebram uma maldição.
Minha mãe sorriu de leve.
— Você o beijou? — assenti, enroscando e desenroscando minhas mãos — E ele?
— Correspondeu quando acordou. A maldição já tinha sido quebrada antes do beijo, mas eu não tinha notado.
O sorriso dela se alargou um pouco, mas se retraiu quando viu minha testa franzida.
— O que te incomoda nisso, filha?
— Eu não tinha reparado no efeito que ele possuía sobre mim, entende? Como eu disse, foi ele quem disse para que eu fosse embora, e por mais que tinha a intenção de me proteger, a situação me fez notar o quanto as palavras dele têm peso sobre mim.
— Isso significa que você se importa. As palavras de alguém só têm peso real quando essa pessoa já está dentro do nosso coração, de alguma forma.
Finalmente foquei o olhar em minha mãe e parei com a inquietação. As palavras pareciam mais fáceis de dizer quando notei que ela estava levando aquilo de um jeito mais sério do que imaginei.
— Mais do que isso, quando achei que Glacier de fato partiria, eu soube que seria uma experiência tão doída quanto a do papai. Eu só conseguia pensar em como a vida não seria a mesma sem ele.
— E você está assustada com essa constatação?
— Eu nunca senti isso com minhas experiências românticas passadas, mãe. Acontece que, quando estou longe dele, eu crio inúmeras suposições na minha cabeça, de como ele talvez pense sobre tudo isso, e eu sou um verdadeiro caos. Porém, quando estamos juntos, me sobra a paz e o momento. Nada mais.
Val foi tomada por uma expressão de nostalgia. Pelo visto, sua empatia estava mais aguçada pois ela já havia passado por algo parecido.
— O que posso dizer é para você se agarrar a esses momentos reais, Kaira. Nossa cabeça gosta de criar coisas, sendo boas ou más, que normalmente não são verdade, e você talvez possa criar uma imagem de Glacier que não condiz com a realidade.
— E o que eu devo fazer?
— Viver no momento e confiar em sua intuição. Você é uma garota esperta, sabe o que quer e imagino que ele também saiba, ou não teria te correspondido.
Eu sabia o que queria? Ao menos nessa parte da vida, podia dizer que sim.
— No caso do que ele disse, Glacier assumiu o erro e vocês já se acertaram. Não precisa ter medo de situações similares no futuro, mas o que você pode fazer é aprender a lidar com essas reações, e o tempo vai te mostrar como.
— E se eu não souber lidar? Nós combinamos de conversar sobre tudo isso hoje à noite e, parando para pensar agora, estou hesitando. É... assustador, alguém ter essa influência sobre seu humor e conseguir te afetar com palavras.
— Kaira, há medo porque o sentimento de ter alguém te afetando é desconhecido, mas aposto que nem você imagina o poder que possui sobre Glacier. — torci para aquilo ser verdade — O ponto que quero chegar é que, sim, as palavras dele têm peso para você, mas não crie dependências exageradas, não deixe se afetar além da conta, porque assim os dois sairão machucados.
Assenti, deixando os conselhos recaírem sobre mim. De certo modo, eles eram o que eu estava procurando aquele tempo todo.
— O medo incentiva a criar suposições. Hoje, diga a Glacier o que sente, escute-o, e concentre-se no real. Pelo que você me disse, ele parece ser tão humano quanto nós, deve ter as próprias dúvidas também.
— Em outras palavras, devo confiar em mim mesma e em Glacier?
— E simplesmente deixar acontecer e se divirta, o bom da vida é ir com leveza.
De repente, o olhar da minha mãe se perdeu, e seu tom de voz desceu alguns tons. Ela ficou absorta no que parecia ser uma memória marcante.
— Tem uma corrente da filosofia no período Helenístico, o Estoicismo, que incentiva a ressignificação. Mesmo o destino sendo inevitável, há como mudar a maneira que se vê o mundo. — ela falou como se testasse as palavras e me encarou em seguida — Estou soando muito maluca?
Eu ri de leve a balancei a cabeça.
— Claro que não, mas como devo aplicar isso no contexto?
— Quero dizer para ressignificar o medo com a esperança do que você e Glacier podem se tornar. — Val sorriu — Você é estóica, Kai.
— Mesmo sem saber? — ri ao perguntar.
— Sim, ressignificou a partida de seu pai, você mesma disse. Consegue fazer isso com mais coisas, tenho certeza.
Eu me levantei e a abracei apertado, sem deixar espaço para hesitação.
— Obrigada, mamãe.
Val retribuía ao abraço de um modo como alguém que tem coisas a dizer mas não consegue expressar em palavras. Resolvi devolver a pergunta de antes.
— O que foi?
— Kai, acho que vou precisar de ajuda para ressignificar algumas coisas.
Senti meus olhos marejarem e intensifiquei o aperto, beijando o topo de sua cabeça. Estávamos começando uma jornada ali, conseguia sentir.
— Vamos transformar tudo juntas, mãe. Uma apoiando a outra.
E esse foi o capítulo de hoje! O que acharam?
Eu simplesmente adoro muito todo esse diálogo da Kai e da Valquíria, porque ali basicamente elas decidiram se apoiar verdadeiramente como família. E também a Val passou o ensinamento de Ivaar para a Kai, e foi daí que nossa protagonista tirou toda aquela reflexão do prólogo. Espero que tenha dado pra sacar a referência ^^
Além desse momento teve a partida de Primavera, que espero ter sido impactante XD Onde vocês acham que ela foi parar?
Bom, até terça com nosso penúltimo capítulo com o título de "Luzes do Norte"!
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