Capítulo 99: POV Charles Regen
Era estranho como eu conseguia sentir tão fisicamente algo tão emocional. Começava em minhas pernas, que mal conseguiam me manter de pé. Subia até meu tronco, se espalhando pelos meus braços, chegando até as pontas de meus dedos. Eu sentia em minhas veias, nos meus ossos, sentia nos cabelos em minha nuca. Era como morte. Mas pior. Era incerteza e culpa, misturadas com raiva e tudo aquilo que eu já tinha sentido de bom na minha vida. Eu não sabia respirar, não sabia o que pensar, para onde virar, o que fazer. Eu nunca tinha estado tão perdido, tão sem rumo. Eu nunca nem tinha imaginado que algum dia alguém seria capaz de me fazer perder todas as minhas forças assim. Que alguém me roubaria um pedaço de mim.
E tudo me parecia tão frágil, tão banal. Eu não tinha o que fazer, além de andar pelo castelo, esperar que descobrissem alguma coisa mais sobre quem a tinha roubado de mim. E a incerteza, essa dúvida me assombrava. Eu não conseguia enxergar as coisas direito, não sabia para onde estava indo, nunca. Mas tão pouco me importava. Eu poderia ficar do jeito que fosse, poderia cair, poderia me machucar, me perder. Não existia problema no mundo que ganhasse minha atenção por um segundo. Não existia dor que pudesse se comparar, não tinha nada que conseguia me distrair. Eu só vagava, como dava, tentando me segurar àquela esperança que ainda gritava dentro de mim, que tentava ganhar do desespero.
Eu precisava ser forte por ela. Ela precisava de mim. Eu precisava vasculhar o que dava dentro de mim e não desistir, eu precisava fazer tudo que estivesse ao meu alcance. Eu precisava dela do meu lado e ela precisava que lhe desse outra chance de viver, de não achar que sua vida se resumiria àquilo. Eu tinha que encontrar forças em mim, para que ela não se sentisse fraca. Ela precisava de mim e eu não poderia falhar com ela. Eu estaria falhando ainda mais comigo mesmo se eu não me esgotasse antes de desistir.
Mas aquela nem era uma opção. Desistir não era uma opção. Eu não estava pronto para deixá-la. Eu nunca estaria pronto para aquilo. Ela a salvo ou não, eu não conseguiria perdê-la.
Todas as meninas que ainda estavam ali, que me sorriam, que tentavam me ajudar, eu sentia até raiva delas. Eu sabia que não fazia sentido, que a culpa não era delas. Elas não tinham nada a ver com aquilo, elas só estavam ali, tentando melhorar a vida delas, de coração aberto para mim. Mas eu as olhava e tinha raiva, muita raiva. E isso me fazia sentir ainda mais culpa, culpa de pensar que eu preferia que tivesse sido uma delas. Eu era uma pessoa terrível, eu não merecia Gabrielle se eu realmente pensava aquilo das outras. Eu estava lhes desejando mal, as ressentindo por terem ficado a salvo quando ela tinha sido levada. Eu não queria nem olhar para elas, não queria lembrar que elas tinham sobrevivido, que elas ainda estavam ali. Mas que ela não. Que ela que tinha sido escolhida.
Depois de uma noite em claro e quase o dia inteiro sozinho, eu estava de volta à minha varanda, olhando para fora. Eu tinha minha camisa aberta, sem nenhum blazer. Ventava muito e ventava frio. Era bem aquilo que eu queria. Eu queria que o frio me consumisse, que quebrasse meus ossos, que me doesse. Eu queria que toda a raiva e minha dor fossem trocadas por algo mais fácil de mudar. Seria muito simples acabar com o jeito que eu tremia. E eu queria aquele controle, mesmo que fosse estúpido.
Já tinham se passado horas e nada de alguém descobrir alguma pista sobre quem a poderia ter levado. De pouco em pouco, uma criada aparecia para me dar notícias. Mas ela quase sempre só vinha para me falar que nada tinha mudado. E eu fui ficando cada vez com mais raiva dela, querendo jogar cadeiras nela, expulsando-a do meu quarto. Não era culpa dela, eu ficava repetindo. Não era culpa de ninguém. Era culpa minha. Só minha.
O sol estava começando a se pôr, quando eu comecei a dar socos na grade da varanda, mirando bem aonde ficavam os cortes que a janela tinha me dado. Eu podia senti-los aumentando, abrindo, sangrando, mas meus olhos estavam fixos no horizonte. E eu nem hesitava. Eu não parava. Quanto mais dor eu sentia, mas forte eu batia. As duas mãos, intercalando. E aquilo foi substituindo meus pensamentos. E eu fui deixando minha raiva passar, mas sem parar. Era aquilo que me mantinha calmo, eu precisava daquilo. Era culpa minha. Eu merecia aquilo. Não ela.
O nó na minha garganta só aumentou quando eu pensei nisso. Eu era culpado, eu a tinha feito passar por aquilo. Se ela nunca tivesse me conhecido, ela estaria em casa agora, segura e feliz, levando a vida dela sem problemas. Como eu poderia algum dia pedir que me perdoasse? Eu poderia muito bem ter acabado com ela, acabado com qualquer chance de ela superar aquilo. Era culpa minha. E era ela que pagava. Era ela que devia estar assustada e sozinha agora, que devia estar se perguntando quando é que eu iria salvá-la. E se ela achar que eu a esqueci? E se ela achar que eu a abandonei? Ela sabia o quanto eu me importava com ela? Ela sabia o quanto aquilo me deixava doente? Sabia o quanto eu precisava dela?
Meus socos só foram ficando mais rápidos conforme eu pensava em como eu tinha sido idiota de ter levado essa seleção em diante. Eu não precisava das outras, eu não precisava de ninguém. Eu só precisava dela. Eu tinha que acabar com aquilo, eu tinha que mostrar que ela era tudo que eu queria. E eu poderia muito bem ter perdido a chance de ficar com ela.
"Charles?"
"Que?" Eu gritei, me virando com tudo, já esperando encontrar a criada lá de novo, pronta para me dizer que nada tinha mudado.
Mas era Sebastian que me olhava, um pouco assustado. Seus olhos caíram sobre minhas mãos, mas ele não comentou nada. Só voltou a me olhar e engoliu em seco uma vez, antes de falar.
"Nós recebemos um vídeo," ele falou, tão baixo, que eu nem tinha certeza se tinha ouvido direito.
"Como é?" Perguntei, me segurando à grade da varanda, sem saber se conseguiria ficar de pé por mais muito tempo.
"Nós recebemos um vídeo de resgate," ele repetiu. "De Gabrielle."
Eu soltei a respiração que eu estava segurando, só para perceber que ainda estava completamente sem ar.
Depois de alguns segundos tentando fazer com as minhas pernas não me falhassem e me ajudassem a chegar aonde precisava, eu o segui até o Grande Salão, marchando forte.
Eu não tinha entrado ali desde o dia anterior, eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo. E fiquei bastante surpreso quando percebi que eles tinham praticamente montado ali uma base da investigação. Eu andei no meio dos guardas, que discutiam os acontecimentos, tentavam montar uma linha do tempo para a festa de Halloween. Vi Lady Sophie sentada em um canto, acompanhada de uma criada, dando seu depoimento. Tinha um mural enorme com fotos da Gabrielle, do corredor, com desenhos de esquemas que exemplificavam o que poderia ter acontecido, em que ordem. Era tanta informação, eu não sabia se eu me sentia mais seguro ali ou mais perdido.
"Charles," a voz da minha mãe chamou a minha atenção, me fazendo virar o rosto para ela.
Ela estava de pé, do lado de meu pai e de Sebastian, a alguns metros de mim. Eles estavam com alguns guardas e o tenente em quem meu pai tanto confiava. Todos pareciam prontos para a guerra, como os outros que também estavam no Salão. Enquanto eu me sentia completamente incompetente.
"Vocês já assistiram?" Eu perguntei, chegando finalmente até eles.
"Ainda não," meu pai falou e olhou por cima do meu ombro.
Eu segui seu olhar e vi que Lady Nina estava entrando, seguida de Lady Enny. Elas andaram até onde Sophie estava e eu me voltei para meu pai.
"Estávamos te esperando," ele disse e eu só assenti.
Percebi quando minha mãe olhava para minhas mãos enfaixadas, o sangue de meus socos passando por todas as gazes. Mas ela não falou nada e eu nem saberia como explicar.
O tenente começou a mexer em um computador e Loric ajustava uma tela enorme na parede. Eu não queria nem olhar para ele, mas não falei nada. Se ele a tinha visto sendo carregada para fora do castelo e não tinha feito nada, era bom mesmo que ele fizesse de tudo possível para trazê-la de volta.
Em alguns segundos, o vídeo começou a ser tocado. Eu achei que estava pronto para aquilo, mas eu não estava. Nem de longe. Assim que vi o rosto de Gabrielle, eu senti minhas pernas fraquejarem e Sebastian se colocou do meu lado, deixando que eu me segurasse nele.
Ela estava presa. Ela estava amarrada. Eu quis berrar para que a soltassem, mas não o fiz. Eu fechei meus punhos o mais forte possível, enquanto a ouvia me pedir para que a salvassem.
Ela começou o vídeo olhando para baixo, como se estivesse pensando no que dizer. Depois um homem com uma voz esquisita lhe deu um empurrão, e ela olhou finalmente para a câmera.
"Vamos lá, fala que você está bem," o cara a encorajou, enquanto eu tentava guardar aquela sua voz na minha cabeça, para poder reconhecê-la depois.
"Eu estou bem," ela disse, finalmente. Depois deu um sorriso meio triste. "Eu preciso que vocês me salvem, mas estou bem por enquanto. Eu posso ter perdido meu coração, mas não perdi meu autocontrole. Eu só preciso que vocês venham me pegar-"
"Tá, chega," o cara falou, puxando a câmera para ele, que usava uma máscara de coelho de plástico. Eu me perguntei se era aquela cara que ela tinha que ver sempre, se era aquela máscara que andava a atormentando. "Vocês têm duas horas para conseguir 20 milhões de dólares e um helicóptero, pousado no píer de Santa Monica. Duas horas para o nosso querido Príncipe Charles me encontrar lá, ou ele nunca mais vai ver sua selecionada de novo."
O vídeo acabou sem mais explicações. E o salão inteiro ficou em silêncio, ninguém sabendo o que fazer, o que dizer. Até que o tenente resolveu quebrá-lo.
"Alguém percebeu alguma coisa no fundo que possa nos ajudar a saber onde ela está?" Ele perguntou, enquanto meu pai ia até um dos guardas e pedia para que ele chamasse o ministro da Fazenda e seu contador pessoal.
Sebastian só me arrumou uma cadeira, onde eu fiquei sentado, enquanto eles repassavam o vídeo de Gabrielle, muito para meu incômodo. Eu não queria ter que ver aquilo de novo, vê-la amarrada, presa e pedindo para que alguém a salvasse. Mas, ao mesmo tempo, queria vê-la, queria acreditar que ela estava bem. Tinha alguma coisa em seu olhar, uma esperança, que me confortava, mas ao mesmo tempo contrastava com a exaustão que dava para ver em seus ombros. Era como se ela estivesse acabada, mas que ainda não tivesse desistido. Aquela era a minha garota!
"Espera, dá para você passar essa parte de novo?" Nina pediu, aparecendo do nada na minha frente e se direcionando ao tenente.
"Como é?" Ele pausou o vídeo e se virou para olhá-la.
"Tem como você passar do começo mais uma vez?" Ela pediu de novo.
"Você viu alguma coisa?" Eu perguntei, me levantando e indo até ela.
"Não sei, eu precisaria ver de novo," ela disse, um pouco incomodada.
Eu não me importava com a sua incerteza, eu precisava saber se o que quer que fosse que ela tinha visto era alguma coisa ou não. Eu precisava saber.
"Passa de novo!" Eu ordenei, bem na hora em que minha mãe e meu pai voltavam a se juntar a nós no fundo do salão.
E lá estava ela, Gabrielle, falando mais uma vez que estava bem. Mas eu não podia imaginar o que Nina estava vendo.
"Aí!" Ela soltou, alto e animada. "Aí, ela disse, posso ter perdido meu coração, mas não perdi meu autocontrole!" O tenente passou aquela parte mais uma vez, só a deixando ainda mais eufórica. "É uma frase de um livro, ela falou uma frase de um livro!"
"Você tem certeza?" Eu perguntei, segurando-a pelos ombros e a encarando. Sebastian rapidamente apareceu do meu lado.
"Sim, eu tenho certeza absoluta!" Ela disse, sem se incomodar com o jeito que eu a olhava. "É de Emma, da Jane Austen. Eu tenho certeza!"
"Onde estão as coisas dela?" Minha mãe perguntou para um guarda, que apontou uma mesa para longe de nós.
Todos caminhamos até lá na pressa, mas ela chegou primeiro, procurando entre os livros aquele que Nina tinha reconhecido. Eu também comecei a mexer nas coisas dela, mas um pouco sem rumo, mais no desespero mesmo.
"Aqui," minha mãe falou, me fazendo largar o que fazia e me colocar na frente dela. Ela segurava um livro grande e marrom. "Em que página está essa frase?"
Nina deu de ombros. "Não sei, desculpa, só sei que é desse livro."
"Eu procuro," falei, puxando o livro da minha mãe, que o soltou sem hesitar.
Assim que eu o abri, vários papéis e fotos caíram dele, e todos nós nos abaixamos para pegá-los.
Eu fui reconhecendo cartas, cartas claramente de amor, eu não precisava ler para saber. Corações e mais corações desenhados, um passado inteiro que ela nunca tinha me contado. E então fotos. Dela, nos braços de outro cara, sorrindo para ele, olhando para ele do jeito que eu queria que ela olhasse para mim. E fotos antigas, fotos mais novas. Eles tinham passado muito tempo juntos, talvez até anos. Ela tinha um passado, grande como aquele. E ela nunca tinha pensado em me contar.
Mas eu engoli meu orgulho, engoli os ciúmes que me atacava. Eu precisava primeiro salvá-la, depois eu pensaria em lhe perguntar sobre ele.
"Será que era isso que ela queria nos mostrar?" Nina perguntou, pegando uma carta na mão e a abrindo. "Querido Gregor, eu sinto sua falta..."
"Essas daqui são dele," Sebastian falou, com outras na mão, "desse Gregor."
"Espera," meu pai falou, puxando uma foto da minha mão, que eu observava tentando conter a minha vontade de rasgá-la. "Karl, venha cá," ele pediu e o tenente se colocou do lado dele. "Esse não é Laeddis?"
O tenente ficou quieto, olhando a foto, me deixando mais nervoso a cada segundo.
"Sim, é ele, Majestade," ele falou finalmente.
"Quem é Laeddis?" Eu perguntei. "De onde vocês o conhecem?"
Meu pai e ele trocaram um olhar, mas acabaram se virando para mim.
"Laeddis era um agente nosso," o tenente explicou. "Ele era a grande promessa da agência, realmente pensávamos que ele seria o nosso futuro brilhante. Nós investimos tudo que podíamos nele-"
"Tá, e aí?" Nina perguntou, nervosa, e eu a agradeci na minha cabeça.
"E aí que em sua primeira missão, ele se apaixonou pela mulher que ele deveria enganar," meu pai explicou. "Ele estava infiltrado em um grupo de tráfico e era para ter se aproximado dela e ter usado essa relação para derrubar todo cartel."
"E ele se apaixonou," Sebastian completou.
"Espera, esse é aquele que Ward-"
"Sim," meu pai cortou minha mãe. "Ele contou para a mulher que ele deveria estar enganando, achando que ela ficaria do seu lado. Mas não ficou."
"Ela entregou ele e seu parceiro, Ward, para o chefe do cartel," o tenente completou.
"Jules Ward?" Eu perguntei, me lembrando de quando meu pai teve que sair do castelo no verão para ir ao enterro dele.
"Sim," meu pai falou. "Laeddis conseguiu fugir. Do chefe do cartel e de nós. E ninguém mais ouviu falar dele."
"E agora ele está com Gabrielle," eu falei, mais pensando alto do que qualquer outra coisa.
"E eles namoravam," Nina completou, me fazendo olhar para ela. "Mas ele morreu?"
"Como assim, ele morreu?" Sebastian perguntou, puxando a carta que ela lia para ele mesmo conseguir ver o que a tinha feito pensar que ele tinha morrido. "Ele morreu," ele repetiu depois.
"Sim, nós tivemos que forjar sua morte," o tenente explicou. "Ele era muito novo, ainda tinha muitos contatos. Nós precisávamos que ele parasse de existir e se tornasse outra pessoa."
"Mas o que ele quer com ela agora?" Eu perguntei. "Ele quer fugir com ela? Ele quer pegar o helicóptero e ir embora com ela?"
"Não sei," meu pai falou, colocando uma mão no meu ombro. "Mas o que quer que ele esteja planejando, nós não vamos deixá-lo se safar."
Eles se dispersaram, Sebastian se ocupou de Nina, e ela dele. Meus pais foram com o tenente até outros guardas, discutindo como eles fariam o resgaste, quem eles manteriam onde, como conseguir que o helicóptero nunca saísse do radar deles, o que tivesse que ser feito.
E eu fiquei ali, segurando as cartas dela para seu sequestrador, suas fotos felizes, seus abraços, seus rostos juntos, seus beijos. Eu não consegui me controlar, fechei meus punhos, amassando o que estava neles, ainda sentindo meus dedos latejarem.
E então eu levantei o rosto e meus olhos encontraram os dela, que estavam pausados no vídeo. Era dali que vinha a esperança dela, da sua inteligência de conseguir colocar uma dica como aquela sem que ele percebesse. Eu poderia correr até ela naquela hora, eu queria abraçá-la e beijá-la e falar para ela o quanto eu estava orgulhoso dela, o quanto eu a amava.
Mas primeiro eu precisava concentrar meus esforços em trazê-la de volta e fazer com que aquele Laeddis pagasse. Não só pelo seu erro na sua missão, que o tinha custado seu parceiro. Mas por pensar que ele poderia simplesmente sequestrar a pessoa mais importante do mundo para mim e sair impune.
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