Capítulo 8 - Uriel
CAPÍTULO 8 - Uriel
O caminho restante até a casa do adulto mais novo e de lá para o adulto que me leva para sua casa foi feito em completa ausência de sons. Nem mesmo uma engolida em seco, nadinha.
– É... bom, foi um dia longo né... – a mulher que restou conosco fala, ao pararmos dentro da garagem subterrânea do prédio do homem e eu a encarar por cima do ombro.
Tenho quase certeza que ela murmurou um "que garota bizarra" antes de sairmos, os três juntos. Ainda não disse nada e muito menos o homem, Orion, que se limitou a fitar o espaço em frente a si e nunca minha presença.
Ou tem medo de me olhar, se arrepender e ter o trabalho de me jogar para fora.
Entramos no espaço pequeno do elevador, a mulher madura em idade quase colando o corpo na parede oposta a que estou e Orion permanece no meio, como uma barreira entre ambas.
Me sinto levemente tentada em encará-la pelo restante da subida...
Anjo, ainda sou um anjo por dentro, freio meus pensamentos maldosos.
– Ok, meu andar – Ouço-a anunciar, apontando para o sinalizador de andares parado no sete. A porta de metal se abre tranquilamente mas, antes que saia quase pulando para fora, apoia a mão no vão entre a caixa que sobe e o piso dela, me encarando pela primeira vez de forma direta – Ouça e muito bem: Deus sabe a razão dessa criança pertubada ter trazido você para casa. Não sei se decidiu acolher pobres coitados porque é perto do Natal.
Ergo uma sobrancelha.
Pobres coitados? Ela acha que sou uma pobre coitada?!
– Ou se quer dar uns pegas em você, nem sei se já se conhecem – aponta um dedo em minha direção ao soltar a porta e liberar nossa saída, com o metal entre nós começando a fechar – só que to de olho em você...
Cerra os olhos e somos separadas pela porta agora fechada por completo, o cubículo estalando sobe passando os andares no pequeno monitor.
– Como ela é delicada – digo, conforme passamos o décimo primeiro andar.
Orion nada diz, apertando a alça da bolsa em uma das mãos e segurando o riso com o que a mulher falou. Cruzo os braços em frente ao peito com paciência, aguardando chegarmos no décimo sétimo piso e as portas se abrirem novamente. O homem sai para o espaço que guarda duas portas, uma virada para a outra e com tapetinhos combinando no chão em frente às entradas.
Saio me pondo atrás dele, dando adeus ao elevador que desce o caminho que viemos e aguardando ele recolher suas chaves do bolso.
Enquanto abre a passagem para nós, olha-me de esguelha como se para verificar se estou ali ainda, entrando antes de mim e jogando a mochila no sofá sem cuidado. Encosto a porta e me escoro na madeira com as mãos apoiadas atrás do meu quadril, esperando.
Orion para na lateral do estofado preto, cruzando os braços como estive a pouco e, olhando para os lados em busca do que dizer, começa:
– Sendo sincero não sei o motivo de ter trazido você para minha casa... – pigarreia, enfim me olhando e prendendo seus olhos escuros aos meus – Porém, eu senti que precisava. Não irei machucá-la, não irei cobrar nada em troca, mas se não tiver onde ficar...
Ele ri, apertando a ponte do nariz.
– Isso tudo é bem estranho.
– Não tenho onde ficar – assumo, sem enrolar – E imagino que seu número estar na minha ficha do hospital tenha criado alguma dúvida na sua mente sobre a razão de ter sido contatado quando recebi alta e agora quer saber o motivo.
Orion abaixa a mão, encaixando-a de novo na dobra do cotovelo dobrado. Sua testa se crispa e seu peito sobe e desce em uma respiração funda.
– E qual a razão?
Ergo os ombros.
– Não sei. Realmente não sei... – A voz de Zadkiel é mais do que nítida em minha cabeça com essa mentira, a reprimenda do meu professor bem presente – Se minha presença te deixa desconfortável, posso encontrar outro lugar. Não sou facilmente pega.
Apenas quando há três bichinhos nojentos e um demônio gigante me prendendo ao chão, minhas pálpebras tremem suavemente com a lembrança. E com a raiva que ela traz.
– Que isso, não, não traria você aqui só para expulsá-la assim. Tenho um quarto extra que não uso, minha irmã vinha dormir aqui antes de casar, então.
Assinto, mordendo o interior da bochecha cuidadosamente. A energia ao nosso redor é estranha. Ele acolheu uma desconhecida, encontrada de forma complicada em um beco e com seu número como contato de emergência. E eu me sinto incompleta, sempre em busca das vozes das orações em minha cabeça, esperando um sinal que me levaria ao ponto necessário.
Algumas vezes no hospital esperei que as pessoas não me enxergassem e me assustava quando me olhavam ou falavam comigo.
– Não sei, me parece que você está tentando encontrar uma justificativa para minha pessoa aqui. Foi um ato impulsivo, ter me convidado, não foi?
Concorda, sorrindo ironicamente de lado.
– Completamente. Nunca fiz algo do tipo, qualquer um pode me chamar de maluco por trazer você para debaixo do meu teto.
– E é um pouco. Nem eu levaria uma criatura como eu para casa.
Pende a cabeça para o lado, curioso.
– Uma criatura como você?
Descolo o corpo da porta, passando a andar pela sala analisando suas coisas. O sofá é virado de frente para a televisão, atrás dele há um balcão bege mediano, como o que eu vi na recepção do hospital; não muito largo, mais comprido.
– Ah, uma mulher sem família, sem dados, sem nada. Nem roupa eu tenho.
Em cima do balcão há um aquário grande com um único peixe azul, que nada de um lado para o outro em uma decoração de coral viva. Encaro seu movimento e perco as contas das voltas quando chega em cinco. O tempo todo sinto o olhar de Orion sobre mim, contudo ignoro, focada no bichinho.
– Terá que usar minhas roupas até que minha irmã volte da viagem que está fazendo e possa lhe doar algumas. Infelizmente estou meio apertado esse mês para roupas novas.
– Não preciso de roupas novas, as doadas serão o suficiente – Ergo os olhos para ele, assentindo – Obrigada. Por me acolher, inclusive.
– De nada.
Aponto para o peixinho, que parou de nadar e agora flutua me encarando.
– Qual o nome?
– Banguela. – Vendo que não entendo o nome para um peixe já sem dente, completa – De como treinar o seu Dragão.
– Isso é um livro?
Ele me olha como se eu tivesse brilhando em cinquenta tons diferentes.
– Não, é uma animação. Na real que tem uns livros, mas são mais conhecidos pelo filme.
Faço sinal de entendido, voltando a fitar Banguela, que retomou sua maratona molhada.
– Vou pegar umas roupas e, enquanto você toma um banho e tira esse cheiro de hospital, preparo a comida. Você tem alergia a algo?
– Não sei, nunca comi nada – cutuco com cuidado o vidro do aquário e apenas depois de reparar que ele permanece com os olhos em mim, suspiro – Nunca comi nada que me deu alergia...
Nem tomei um banho ou troquei de roupa, ou sequer cortei os cabelos. Jamais conversei por mais de trinta minutos com um ser humano, nem fiquei feliz ao ver um arco-íris depois de uma chuva ou assisti um filme.
Claro que mantenho essas informações para mim, assistindo o peixe.
Orion sai para o corredor lateral e volto a andar pela sala, observando os detalhes.
No que creio se chamar balcão também, abaixo da televisão, há alguns quadros com fotos antigas e mais novas. Umas tem uma garota pequena, uma senhora com longos cabelos marrons e um garotinho em seu colo, com uma pelúcia nas mãos pequenas. Em outras o cenário não muda muito. A mulher possui poucos fios brancos no cabelo ainda longo, a menininha está maior com um homem mais diferente dentre os quatro do seu lado e o menino que antes estava no colo da senhora agora beija sua bochecha, bem maior do que ela.
Sorrio um pouco.
Imagina todos os meus irmãos em uma foto... Não caberia tantos nesse espacinho.
– Aqui.
Pulo no lugar com a voz aveludada de Orion vinda do início do corredor, com alguns panos dobrados em mãos.
– Desculpa, não quis te assustar – Estende as roupas para mim e as pego, encostando sem querer em seus dedos longos.
É desconfortável encostar em um humano sem precisar induzir nada em seu corpo, de doenças a sensações boas...
– Só tenho um banheiro, fica entre meu quarto e o seu. Já tem lençóis e cobertores na sua cama e se quiser abrir a janela me chame, ela tá um pouco emperrada.
– Claro, obrigada.
Mordendo o lábio inferior sem notar assente, indicando a cozinha visível plenamente daqui, a ilha no meio do cômodo separando os níveis entre o lugar de lazer e o de cozinhar. Ouvi há muito tempo que é uma "cozinha americana". Ou algo assim.
A da casa de Orion acompanha as cores preto e bege (com toques de branco aqui e ali) nos armários e louça.
– Se precisar, estarei logo ali.
E se dirige para lá, passando a abrir portinhas e gavetas seriamente. Antes de sair consigo vê-lo erguer as mangas da blusa de aparência fina até os cotovelos, os antebraços largos visíveis – muito bem – daqui. Foco na pulseira marrom de couro com uma gema enredada no tecido, o objeto chamando minha atenção.
Balanço a cabeça e caminho para o banheiro, encostando a porta tentando não fazer muito barulho. Deposito as roupas e a toalha em cima da privada branca, olhando meu reflexo no espelho gigante na parede em cima da pia.
Meus olhos estão opacos, não mais brilhantes como sei que eram, e meus cabelos parecem embolados de um modo que jamais estiveram. Me sinto desprovida de essência e, enfim, tendo paz e calmaria para fazer uma coisa que nunca precisei, me ajoelho, dobrando os joelhos abaixo de mim.
Rezar não era necessário quando meu Criador ouvia o que eu necessitava falar e levava ao nosso Pai diretamente. Porém, como não terei uma conversa direta, o que me resta é procurar auxílio de outra forma.
Uma forma mais... mundana.
– Sou uma humana agora. Por enquanto.
Fecho os joelhos e passo a murmurar.
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