Capítulo 7 - Orion
CAPÍTULO 7 - Orion
Observo a mulher sair pelo portão aberto da área das ambulâncias com rapidez, sem olhar para trás em nenhum momento. Olho para baixo ao sentir uma fungada no braço e Manteiga, o caramelo que vive com a gente, chegou de fininho para receber seu carinho diário.
– Orion, não ouviu seu alerta?
Maria me chama da ambulância um pouco afastada e me despeço do cachorrinho, prometendo que traria ração nova amanhã. Puxo meu aparelho do bolso vendo que sim, havia um aviso de emergência novo e religo o som alto, deixando a situação de lado por hora.
Infelizmente, nem tudo vale o esforço de deixar meu trabalho de lado (e consequentemente meu aluguel), então subo na ambulância, saudando nosso colega de hoje de plantão.
– E aí Mateus, preparado? – A mulher ao meu lado pergunta olhando para trás, para o jovem estagiário que começou hoje, já saindo da garagem como se estivéssemos no caminho para uma ida ao parque.
Os dois iniciam uma conversa que pouco estou interessado, olhando pela janela desde que fecho a porta do veículo. Maria sabe que aquele é meu claro sinal de que hoje, especificamente, não estou disposto a interagir. Sempre saio do hospital falando com o mínimo de pessoas possíveis e sempre volto ao hospital da mesma forma.
Quanto menos, melhor.
Ao passarmos por uma esquina em direção ao centro da cidade, vejo de costas para onde estamos indo um senhor com a mulher que curiosamente tinha meu número particular nos registros, ambos caminhando lado a lado em um papo super entrosado; pelo pouco que pude observar.
Quando passamos por eles não consigo evitar entortar o pescoço em sua direção e ela olha diretamente para meus olhos, sorrindo com o que o senhor falava. Seus olhos brilham mesmo que a distância – o que eu criteriosamente associo ao pigmento amarelo das íris – e os lábios avermelhados erguem as bochechas escuras com o movimento que fazem, um subir bem elevado.
– Orion? – Viro-me de volta para frente com o chamado da minha amiga, que me olha de esguelha com curiosidade – Tá tudo bem?
– Achei ter visto um conhecido.
Minutos depois chegamos ao local do atendimento, um acidente de motociclistas que desenrolou em muitos socos trocados e uma faca puxada, encontrando alguns policiais que já podemos considerar velhos conhecidos. Efetuo os primeiros socorros no pior dos dois homens caídos no meio fio (com certeza aquele que levou a facada), porém tudo é feito mais no piloto automático.
Não consigo evitar pensar na mulher com nome Uriel – pelo que falaram na ligação –, e nem nas razões que a levaram aquele beco naquela situação.
Retornamos ao PS com o homem e uma ambulância vem atrás, trazendo aquele que esfaqueou com a viatura dos policiais seguindo de perto. Foi necessário pedir um segundo veículo pela situação mais do que emergencial, caso contrário teríamos deixado o primeiro na emergência e buscaremos o segundo depois, enquanto ele respondia às perguntas dos oficiais.
– Como se sentiu na sua primeira ocorrência? – a mulher ao meu lado, encostada no nosso veículo, pergunta ao pequeno jovem, que pude jurar tremer um pouco com o curativo que eu fiz no ato do atendimento.
– Ah... tô repensando minha escolha de profissão – diz e Maria solta uma gargalhada que faz todos ao redor rir junto.
Ela é uma mulher iluminada, que puxa assunto com qualquer um interessado em ouvi-la e sorri em qualquer dia, raramente tendo sua energia alta afetada por qualquer coisa. Já chegaram a perguntar para nós como viramos amigos, pela diferença enorme de personalidade e ela simplesmente disse: "achei ele no lixo e adotei, igual um cachorrinho".
É bem agradável.
– Eita, mais um chamado... hoje tá da maracutaia pelo visto – Miro a mulher, que devolve o olhar com uma sobrancelha de henna bem demarcada, já cutucando o estagiário para agir com pressa.
– Deve ser porque está perto do final do ano, não?! As pessoas se tornam mais inconsequentes.
Olhamos para Mateus depois de nos ajeitarmos novamente no interior da ambulância, ambos com sobrancelhas arqueadas.
– Nossa, nem lembrava que amanhã já é dezembro...
Concordo com a mulher, encostando a cabeça no banco e cruzando os braços aguardando nossa chegada a mais um lugar com pessoas acidentadas. No caminho da volta, depois de todo o processo de reconhecer a situação, fazer os cuidados iniciais e acomodar o paciente com Mateus na parte traseira (a vítima dessa vez sendo uma mulher atropelada na faixa de ciclista por um motorista que não prestou socorro), vejo algo pela janela não muito longe do hospital que chama minha atenção.
Mas o que?!
Uriel, sentada na mesma calçada que antes caminhava com o senhor, pouco depois do de onde a vi mais cedo. Pelo horário imaginei que já estivesse bem longe, não olhando para o céu com ar de sossegada.
– Menino, o que você tanto olha pela janela hoje?
Dessa vez a moça do lado de fora não nota minha presença, mais preocupada em fitar as estrelas acima de nós. Crispo a testa para minha amiga negando qualquer coisa que pudesse falar e entramos na frente do PS com rapidez.
E a noite segue assim, com o pronto socorro movimentado e as ruas perigosas, cada atendimento sendo feito em diferentes direções da cidade movimentada. Perto das seis da manhã parece que o universo decidiu nos dar uma folga e as quatro ambulâncias disponíveis nesse plantão se unem na garagem aberta e os atendentes, sem exceção, estão sentados em algum banco próximo.
Cansados? Sim. Pulando a qualquer sinal de alerta? Totalmente.
E claro, cada vezinha que sai com Maria e Mateus para um chamado encontrava Uriel sentada em um canto diferente do bairro, indo mais longe sempre que passava por seu corpo encostado em alguma parede suja, banco gasto ou calçada imunda.
– Ja deu nosso horário – ouço Maria, sentada entre mim e o estagiário de aparência derrotada, e olho para onde ela aponta.
Novos plantonistas passam pelos portões sorridentes e bem dispostos, e quase pulamos de onde estamos, correndo para nossos armários, para batermos os pontos e trocarmos de roupa.
– Deus, não aguento meus olhos abertos...
Sorrio para o garoto, parecendo tão novo quanto eu era quando iniciei no hospital, querendo dia depois de dia apenas um banho quente, minha cama e um bom copo de chá pelando de quente.
Às vezes não nessa ordem.
– Foi inventar de ser paramédico, meu filho. Além de ganhar pouco só se fode.
– Maria! – repreendo a mulher, que se limita a dar de ombros como se dissesse "e tô errada?", mas não aguento segurar o riso, caminhando em direção ao meu carro do outro lado do hospital – É, errada talvez você não esteja...
Mateus joga a mochila no ombro, com o corpo sendo arrastado pelas pernas finas.
– Era importante para minha mãe que eu seguisse em alguma área da saúde.
– Ué, e você não pensou em seguir algo que goste?
Fito Maria tentando pedir que não julgue o menino descaradamente, porém ela ignora, fingindo não ver que eu quase jogo minha bolsa em sua cabeça.
– Não quando minha mãe morreu e a única coisa que eu pude fazer para ficar mais perto dela era isso, estudar o que ela gostaria.
O clima pesa um pouquinho e bufo para minha amiga, que morde os lábios arrependida.
– Sinto muito, menino.
Ele encolhe os ombros pontudos como se já estivesse acostumado e, antes que siga para o ponto de ônibus, peço que entre no carro que eu dou uma carona. Ônibus essa hora pode demorar um pouco por aqui.
– Valeu viu. Eu não moro muito longe não, mas carona dada não se olha os dentes, né.
Saio do espaço do trabalho dando graças que amanhã é minha folga, ouvindo no banco de trás os dois fofocarem, como se eu fosse um chofer ou algo assim deles. No caso Maria o atualiza sobre o disse me disse do interior do hospital, principalmente quando o assunto se virou para quem fica com quem nas salas vazias de atendimento.
– Tu acredita que o pessoal das ambulâncias sabe de tudo? Nem pergunte como, eu também não sei. A gente não bota um pé além do PS mas o Jonas – Olho-os pelo retrovisor, sorrindo com a atenção que Mateus dá às conversas da mulher, que adora ser ouvida –, aquele lá, que tem o cabelo meio raspado? Pois bem, ele sempre sabe de tudo. A gente tá achando que ele se enrola com um dos enfermeiros, por isso sabe de tudo. Tu-do.
Reviro os olhos com as bochechas doendo por não conseguir abaixar os cantos dos lábios e é quando a vejo novamente.
A moça que atendi dias atrás em um beco qualquer agora se encontra abraçada a si mesma, ironicamente na entrada de uma ruazinha sem saída e olhando para baixo; sem rumo.
Aproveito o sinal fechado um pouco a frente de onde ela está e, olhando pelo retrovisor lateral sua cabeleira se mover com o vento um pouco gelado daquela manhã, aperto o volante tentando não tomar uma atitude impensada.
– Acredita que eu e o Zé aí moramos no mesmo prédio? – Recebo um cutucão no ombro da mulher, que não notou meu estado alheio a sua conversa – Tem uns dez andares entre nós, mas um dia o bonito simplesmente brotou na minha porta querendo comer a lasanha que viu eu postar nos stories. Não, e detalhe...
Dou ré quando o sinal fica verde, pegando ambos os passageiros de surpresa. Sorte minha que não havia nenhum carro atrás.
– É pra frente!
Dessa vez eu que ignoro Maria, parando no meio fio em frente a Uriel, que ergue os olhos brilhantes para o vidro baixado, diretamente para mim.
– Entra.
Com toda certeza ela não tem para onde ir, tento justificar internamente minha decisão.
Vendo-a titubear e não ouvindo nenhum pio de trás – o choque dos dois, que antes falavam como maritacas, poderia ser engraçado se não fosse minha tensão –, solto a trava do cinto, me inclinando para a porta oposta a minha e a abrindo com certa dificuldade.
– Entra.
De alguma forma, sem que eu precise falar uma terceira vez, Uriel deixa o canto na sombra que estava encolhida, caminhando tranquilamente para dentro do carro e fechando com um baque surdo a porta do passageiro.
Fito seu rosto juvenil até que ela prenda o cinto e me olhe de volta. Não vejo qualquer traço de medo ou indecisão nele, apenas... nada.
Não há nada ali.
– É... eu moro na Vila Sonodina... – pelo canto do olho consigo notar Mateus segurar a bolsa sem saber o que fazer e Maria tem os maiores olhos arregalados que poderia.
Assinto e desprendo os olhos da mulher ao meu lado, que continua olhando-me inexpressiva.
Engulo a bolota involuntária que se formou na minha garganta e dou partida.
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