Capítulo 14 - Uriel
CAPÍTULO 14 - Uriel
– Está tudo bem, sei entrar sem que me vejam.
Maria me olha do banco de trás do carro de Orion com as sobrancelhas se erguendo com incredulidade, perfeitamente visíveis pelo retrovisor.
Depois da conversa franca que o homem e eu tivemos ontem a noite, pedi que me levasse até seu trabalho para que pudesse verificar a moça do restaurante e, depois de muita relutância, consegui meu espaço no veículo, rumo ao hospital.
Claro que Mateus, o garoto que poderia julgar ser novo por demais para ser um socorrista, e Maria, a mulher que parece me odiar com muitas forças, estariam nos esperando na garagem do prédio de Orion. E ela ao menos não escondeu os lábios torcidos em desgosto quando me viu atrás do amigo.
– Todo mundo naquele prédio te conhece, de longe e do avesso. Capaz de pedirem um autógrafo.
– A senhora é desagradável com todos ou sou especial?! – questiono olhando pela janela e o arquejo de Maria pronto para rebater minha pergunta retórica é interrompido por Mateus.
– Orion, soube que ficarei com vocês durante o fim do ano?
Eles passam a falar sobre como o sistema de ambulâncias está um pouco confuso, com o aparente excesso de funcionários mandados para lá pela distribuição de algo que não entendi.
Chegamos ao estacionamento do hospital em poucos minutos, saindo do carro e nos separando ao chegar na entrada deles.
– Tome cuidado, não posso receber outra chamada neste ano e se descobrirem que estou permitindo entrada de pessoas não parentes...
Aceno para Orion, na tentativa de tranquilizá-lo. Vejo na porta de entrada Mateus e Maria esperando o amigo sem muita pressa, cumprimentando um colega ou outro que passava por eles se arrastando. Mal passamos do início da manhã, o sol está gelado ainda e há muitos pássaros ao redor.
– Não se preocupe, Orion, não irei lhe prejudicar. É apenas uma visita rápida, garanto. Obrigada por me trazer, aliás.
Sorrindo de lado timidamente, ele ergue o queixo pontudo para mim e se vira em direção aos amigos. Espero que entrem para enfim reunir meus cabelos longos dentro da blusa de moletom que Orion me emprestou, por as mãos no bolso e esperar a recepcionista sair do balcão dela atrás de algo no interior da salinha de documentos.
Levou quase vinte minutos para que ela saísse, deixando as únicas três pessoas sentadas nas fileiras de cadeiras desconfortáveis sozinhas e me entregando a oportunidade de entrar.
Para um hospital grande como aquele o segurança demora demais no cafezinho.
Passo pela porta dupla de vidro como se fosse comum minha presença ali, sorrindo para uma das pessoas sentadas e caminhando sem pressa pela entrada aberta que leva ao elevador. E aos quartos.
– Entendo que esse horário realmente é cedo demais, mas... – sussurro comigo mesma, olhando em volta a procura de alguém.
Enquanto encarava a lista de andares ao lado das portas do elevador tentando lembrar em qual andar fiquei, na esperança de começar por lá, uma enfermeira com aparência cansada trupica ao passar por mim sem nem me olhar uma segunda vez.
– Com licença – Ando alguns passos quando ela para ao ouvir minha voz, se virando com atenção – A senhora poderia me informar onde fica o andar para os quartos de observação? Uma prima minha foi internada ontem e sou a única pessoa na cidade para vê-la.
– Sexto andar, querida – seu sorriso amarelo realmente me lembra alguém sem dormir por semanas e dou mais um passo para a pobre mulher.
– A senhora está bem?
Balançando a mão em dispensa, mas ainda sorrindo, concorda.
– Sim, só não dormi desde ontem a noite.
– Noite de muitos casos? – pergunto como quem conversa com uma velha conhecida e a mulher não se importa muito em se escorar na parede próxima a ela e falar.
– Oh, como foi. Tiveram muitos ataques de animais em conjunto nas redondezas.
Crispo a testa um tanto confusa.
– Ataques de animais?
– Não sei o que rolou, tão falando sobre rituais, porque várias pessoas deram entrada no PS ao mesmo tempo depois de serem atacadas por seus bichinhos de estimação. Como se todos tivessem possuídos ou coisa assim, foi horrível.
Não consigo evitar apertar os olhos com a informação, as falas de Zadkiel sobre os pactos surgindo na mesma hora em minha mente.
Não poder saber de primeira mão o que acontece é enervante.
– Deus, que horror! – Tento me aproximar do que um humano normal falaria nessa situação – Era o que nos faltava, nossos animais caindo nas mãos do inimigo...
A mulher balança a cabeça em desgosto, se desgrudando da parede sem muita vontade.
– Não é, menina, um terror. Era tanta gente com mordidas, arranhões. Uma senhorinha teve a ponta do dedo comida pelo pinscher dela, um horror mesmo. Mas tenho que ir agora, tenho muito que fazer antes do plantão acabar. Boa sorte com a sua prima, viu!
Agradeço sua sorte e desejo-lhe um bom descanso, aproveitando o elevador se abrindo com um funcionário saindo para subir até o andar desejado.
Zadkiel, se estiver me ouvindo, por favor não esqueça das minhas asas!
Não me arrependo do desejo egoísta que vem ao sair daquela caixa metalizada, os pensamentos sobre possessão animal deixados momentaneamente de lado por hora. Um problema por vez e esse não está muito em meu alcance.
Passo de quarto em quarto, abrindo as portas levemente para encontrar a menina a qual estava atrás. Agradeci aos céus por todos estarem dormindo ainda, o que foi mais fácil de evitar toda uma cena desnecessária de gritos e berros, até que eu finalmente conseguisse encontrá-la.
Ao abrir o décimo quarto vejo aquela mesma garota de ontem no restaurante deitada de modo mais erguido, os olhos bem fechados e os braços relaxados ao lado do quadril.
Sento na poltrona ao lado da cama aguardando que acorde. De alguma forma ela o faz não muito depois, fitando diretamente a mim como se sentisse minha presença antes mesmo de recobrar a consciência.
– Ai, Jesus!
Seu pulo acompanha seu semi grito de susto, os cabelos bagunçados dando um ar desgrenhado a sua pessoa.
– Não, Uriel.
Levanto e me aproximo da lateral do colchão, a menina se ajeitando um pouco para a beirada do lado oposto.
– Certo. E o que faz aqui?
– Vim vê-la, ver se estava tudo bem com você. Orion comentou comigo que já tentou me ver uma vez, mas não permitiram.
– Sim... – acenando para cima e para baixo devagar, cerra os olhos desconfiada – E como você conseguiu entrar?
– Me esgueirando. Tudo bem, não cometi nenhum crime. Eu acho...
Respirando fundo, vejo-a afofar o fino lençol o melhor que consegue ao seu redor, prendendo os cabelos em um rabo de cavalo mal feito.
– Aliás, como se chama?
– Marina. Mas pode me chamar de Nina, quase ninguém que eu conheço me chama pelo nome de verdade.
– E por que está em um quarto, Marina? – Inconscientemente a chamo justamente pelo nome pouco usado, mas ela não parece se importar.
– Depois que fui deixada aqui, eles viram que tinha uma leve concussão em minha cabeça por terem batido nela pra eu... me ajoelhar e tal – Seu embaraço é visível na luz do sol que entra pela janela mal tampada – E aí eu iria ficar em observação na sala lá de baixo mesmo, só que tudo virou um caos com gente chegando toda hora e como tinham alguns quartos vagos...
Cruzo os braços por cima do moletom cinza, sentindo um pouco do calor que ele proporciona.
– Ouvi falar vagamente sobre isso, sim. Ao menos está bem, não procurei saber daqueles garotos e da menina mas imagino que ainda estejam detidos.
– É, um dos policiais veio comigo escoltando a ambulância, o que sinceramente achei um pouco demais, e disse que rolaria algumas idas à polícia até resolver a minha... situação. Não estava com tanta cabeça para aquilo naquela hora, então só vou me informar melhor quando sair daqui essa tarde.
Suspiro concordando com sua fala, formando as palavras para o que irei dizer em seguida para que não a deixe pior ainda do que aparenta.
– Marina, há uma razão específica para estarem lhe gravando naquela... situação – Ela não entregou indícios que querer falar sobre o assunto com nomes exatos e não serei eu a força-la.
Olhando para cima com a cabeça encostada no alto travesseiro, bufa.
– Eu saia com o Carlos até uns meses atrás enquanto ainda morava com meus pais e tudo era muito confortável entre a gente. Ele era incrível, dizia que estava apenas esperando subir de cargo no restaurante para me pedir em noivado e essas coisas idiotas.
Não faço nada além de olhá-la com atenção, esperando.
– E aí eu e meus pais brigamos feio sobre algo bem tosco envolvendo meu futuro e inventei de morar sozinha. Mas as contas eram maiores que o salário de garçonete, sabe, e como eu era bolsista em uma universidade bem grande não conseguia tempo extra para um bico, nem de final de semana.
Aperta bem os olhos e endireita a cabeça ao me olhar tristemente, se segurando para não chorar. Seus olhos são bem claros, quase esverdeados e com a umidade parecem carregar mil estrelinhas em seu interior.
– Eu não sei o porquê de ter achado que fazer uma conta privada nesses aplicativos específicos seria uma boa ideia, mas fiz uma e comecei a postar algumas fotos menos reveladoras por lá, conseguindo um dinheiro. Pouco, só que me ajudava a pagar as contas mais importantes. Não mostrava meu rosto, não mostrava nada da minha casa, apenas meu corpo e um fundo branco.
Mordo o interior da bochecha ligando os pontos para o final já conhecido, vendo uma lágrima perdida lhe escorrer pela bochecha rosada.
– E o Carlos descobriu.
Não faço uma pergunta, constato um fato e ela assente, secando a gota com uma ponta do lençol.
– Sim, ele descobriu por uma mancha em minha perna. Eu sempre, sempre, tomava tanto cuidado tampando manchas e marcas, mas nesse dia minha mãe me ligou e me xingou tanto que minha cabeça estava uma loucura. E eu esqueci. Dois dias depois ele terminou comigo dizendo que eu era uma vagabunda barata que me vendia por resto.
Raiva toma o seu rosto e o meu interior ao mesmo tempo, aquela frase sendo irracional de alguém se falar.
– Então um mês atrás, quando já estava sendo mais fácil ver ele no trabalho e principalmente se pegando com aquela amiguinha loira dele, começaram as ameaças. Que se eu não continuasse dando o que ele queria da forma que ele queria iria espalhar por aí que eu era garota de programa. Geralmente era um boquete ou outro – Se interrompe erguendo a vista para mim novamente, totalmente encabulada – Desculpa pela pelas palavras.
– Não se preocupe com isso.
– Bom, eram essas coisas menos invasivas e tal, mas de um dia para o outro ele começou a chamar os meninos para assistir. Como ele subiu sim de cargo, virando coordenador dos garçons, passou a pedir para nossa chefe para fechar o restaurante e como ela estava querendo descansar mais... Deixou. Ele sempre se mostrou responsável e ela estava vendo alguém para se tornar gerente.
O sol começou a esquentar e as luzes chegaram mais diretamente, de forma agradável.
– Uma coisa levou a outra, o que eram apenas Carlos e eu, algo ruim mas suportável, se tornou os dois meninos e a menina que vocês viram. Com celulares e chamadas de vídeos com outras pessoas que pagavam por aquilo para eles. Segundo Carlos, se eu me vendia para estranhos, tudo bem ele ganhar um pouco de dinheiro também.
Ergue os ombros para banalizar aquilo, como se não houvesse importância de fato, mas pelo seu olhar cansado não é a verdade. Subo minha mão para seu ombro coberto pela camisola do hospital, apertando delicadamente para que saiba que não está sozinha.
Não mais.
– O que precisar, pode contar comigo. E com Orion, já que eu conto com ele – Damos risada um pouco mais confortáveis, mesmo no clima pesado do quarto – E você precisa no mínimo reaver esse dinheiro que ele conseguiu com seu corpo, sua privacidade e com esses abusos constantes. O restante posso te ajudar a começar a superar, se quiser.
Marina assente, o sorriso se ampliando em seus lábios pálidos. É uma menina linda e vivaz, precisa do conforto que uma amizade pode dar. E pelo que esteve nas entrelinhas do seu relato, não possui muitos amigos ao seu lado no momento.
Ficamos pouco mais de meia hora conversando sobre sua vida em casa, como acabou perdendo a bolsa pelo estresse dos acontecimentos com o grupo e como espera que eles fiquem presos por um tempo pelo menos, porém que já está se consolando aos poucos com o fato de que nada irá acontecer com eles. A justiça onde mora não faz juz ao nome justiça, pelo que falou.
Sou obrigada a sair quando a enfermeira entra para informar que o médico de Marina já chegou e passará por aqui para uma avaliação em poucas horas e me encontra sentada na ponta do colchão narrando para a menina sobre como aconteceu minha ida a casa de Orion.
Me despeço ao som da voz irritada da enfermeira me expulsando e ameaçando chamar o segurança, saindo antes que ela consiga alcançar o telefone e pulando os degraus das escadas de emergência rapidamente.
Antes de passar pelas saídas, caminho até os fundos para a área das ambulâncias e pergunto por Orion entre os paramédicos, mas ele saiu para uma nova ocorrência minutos antes que eu chegasse. Então resolvo passar em alguns lugares antes de voltar no horário que me disse estar acabando o plantão, tentando me ocupar de alguma forma naquele dia.
É estranha a sensação de não saber o que fazer com a minha vida.
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