Capítulo 1 - Uriel
CAPÍTULO 1 – Uriel
{ Atenção para gatilhos: abuso sexual }
"Deus, por favor, eu não aguento mais! Ele prometeu que aquela seria a última vez, ele me prometeu... sei que é errado e um pecado pedir isso, mas mate-o. Por favor! Tire-o de perto de mim, faça ele se mudar, eu não sei... Amém".
Respiro fundo tentando ignorar mais uma oração voltada para mim, encarando as nuvens passando em cima do prédio que estou. Coelhinhos, gatinhos, uma joaninha. Elas flutuavam com várias formas diferentes e eu sorria conforme elas iam e vinham.
O sinal no fundo da minha mente me mostra que minha presença era necessária em outro lugar, mas continuei ignorando. Aquelas imagens branquinhas estavam belíssimas de se acompanhar...
– Uriel.
Ah, Deus, não...
– Eu...
– Uriel, querida, pare de prolongar essa dor que estão sentindo. Ela está clamando – A voz rouca dentro de minha cabeça me fazia tremer pela força de presença do meu criador e me coloquei de pé tentando não prolongar uma possível bronca.
– Perdão, senhor, estava apenas observando o céu.
Limpando as costas do vestido preto e retirando as poeiras das dobras dos joelhos, me ponho a andar para o elevador quase arrastando o corpo. O ponto brilhava ao longe, atravessando as grossas paredes dos prédios ao redor e indicando exatamente em que casa a menina estava, mesmo que longe.
O tanto que terei de caminhar...
Saio do prédio agradecida pelas pessoas que passavam por mim não terem a capacidade visual de me enxergar, podendo ziguezaguear entre os corpos apressados sem ter que reconhecer suas presenças. A cidade que estou focando hoje é grande, movimentada e com longas avenidas barulhentas que precisei cortar para chegar onde deveria.
A casinha simples com quintal aberto e cheio de matos crescendo nos cantos dos rejuntes do meio fio indica um local mal cuidado. Depois de anos aprendemos a aprender certos sinais...
Me encosto numa árvore próxima à porta da casa silenciosa, esperando.
Minutos depois, uma jovem em torno de uns dezesseis ou dezessete anos sai com um caderno nas mãos, rabiscando algo melancólico e sem forma. Se senta no único degrau da varanda, apoiando o calhamaço sobre os joelhos marcados e seu corpo magro se curva para retirar o fraco sol de suas vistas.
Cerro os olhos tentando analisá-la em busca do que já era padrão em casos como o seu, notando o couro cabeludo com um círculo sem cabelo, o pescoço com marca amarelada de dedos e os braços com mais marcas de pegadas, mais arroxeadas e recentes.
Agachando ao seu lado, ergo uma mão e toco em sua testa, erguendo sua cabeça com cuidado. A jovem piscou repetidas vezes, enfim olhando diretamente para mim.
– Você tem com quem ficar? Um familiar, além dele?
– Tenho – Ela não possuía qualquer medo, insegurança ou confusão.
Apenas calma e alívio em seus olhos repletos de olheiras.
– Eles não sabem o que eu vivo, mas tenho familiares em uma outra cidade que me acolheriam.
Assenti, sorrindo para ela e encerrando o contato físico. Imediatamente sua postura volta ao que estava antes, desenhando, sem saber que estou a um palmo de distância.
Permanecemos do mesmo jeito todo o restante da tarde, eu vendo-a desenhar e ela espalhando suas folhas pela área da frente, distraída. Um carro escuro surgi rapidamente pela estradinha quieta, nos assustando e forçando a menina a recolher os desenhos às pressas, com a expressão se recheando de terror. Pavor.
Respirando fundo, levanto e apoio o quadril na mureta baixa da entrada, aguardando o homem grande sair do veículo velho, enquanto a criança corre para dentro de casa. O sol já se pôs e os arredores está escuro, quieto e isolado.
– Cadê aquela menina... – Ele caminha até mim e passa para o interior da casa humilde, resmungando algo sobre comida.
Mesmo sabendo o que o fim da noite aguardava, decidi esperar uma hora para executar minha tarefa da melhor forma possível. Observo um gato passar trotando com dois filhotes para o outro lado da estrada, a grama tremer sob o vento fraco de outono, as estrelas andarem devagarinho no céu.
Apenas quando a lua entra em uma nuvem e sai brilhando para todos que entro, empurrando a porta suavemente sem pressa alguma. O lado de dentro se mantém quieto, da sala à cozinha, do corredor ao banheiro. Quando finalmente encontro o quarto fechado da menina, a voz do homem estava baixa, ameaçadora e cruel.
Olhando para o teto em busca de autocontrole, abro mais uma porta, me deparando com a jovem sentada na beira do colchão gasto com as pernas desnudas e ele em frente, de costas para onde permaneço. Nem se eu estivesse visível para eles notariam a porta se abrindo em uma fresta sutil, pior ainda meu corpo atrás do homem, pronta.
– Agora a blusa.
Inclino a cabeça para o lado, pedindo que os céus julguem essa podre alma, porque será menos um nessa Terra e mais um para baixo.
Ao mesmo tempo que a menina junta os braços na barra da blusa completamente acuada, ergo minha mão na altura do peito do homem, atravessando suavemente para dentro do seu corpo. Anjos possuem a conveniente habilidade de fazer coisas se passarem por acidente ou causas naturais...
Um infarto é bem natural.
Sentindo seu coração bater contra minha palma, começo a apertar. E apertar. E apertar.
A menina arqueja de susto conforme o tio pressiona à frente nojenta do corpo, caindo sobre os joelhos com minha mão ainda dentro de si, apertando o máximo que consigo, contudo o bastante para não explodir o músculo que logo diminui os batimentos.
Forço meu sorriso a se manter discreto, sabendo que há olhos sobre mim além desse plano e não querendo ser repreendida por me sentir bem tirando uma vida, afinal relaxando com ele caindo de cara no chão liso.
O silêncio que prossegue fala mais do que mil palavras, o conforto de ambas em seguida é muito melhor.
– Tio? – Mesmo que demonstrando preocupação, a jovem não se aproxima dele, encolhendo as pernas para cima da cama, joelhos junto ao peito que sobe e desce rapidamente.
Assisto-a esperar o suficiente para não ser possível reanimá-lo, só então pegar o celular na mesinha lateral, discando o número da emergência e falando como se estivesse preocupada.
A ambulância chega dentro de dez minutos e a notícia de que não poderiam fazer nada mais por ele trouxe lágrimas aos olhos da menina. Lágrimas essas longe de serem de pesar.
Volto para o telhado com a certeza de que ela está bem, acompanhada por uma assistente social que surgiu pouco depois deles levarem o seboso.
Deito novamente na cobertura do mesmo prédio, lamentando pelas nuvens que já se foram, levando com elas as formas bonitinhas de bichinhos.
– Eu vi, Uriel.
Fecho os olhos com força para não revirá-los como os humanos fazem quando estão aborrecidos.
– O que exatamente o senhor viu?
– O sorriso. Os humanos são pessoas, Uriel, que recebem o que colheram. Mas pessoas. Uma morte continua sendo uma morte, é algo triste.
Continuo de pálpebras abaixadas.
– Mesmo com o que ele fazia com a menina? Aquilo sim era algo triste...
– Acha que meu Pai se sente feliz com o que acontece na melhor criação d'Ele? Não. Entretanto, ainda assim mantém sua mão e cuidado sobre todos. São seus filhos, como nós.
Minha frustração é guardada dentro de mim, como qualquer outro sentimento ruim que já senti, e assinto para o além.
– Fique mais atenta aos sinais que lhe são enviados. Boa noite, querida.
– Boa noite...
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