Capítulo 5
A água das garrafas já estava no fim, minha garganta estava seca e o meu estômago doía de fome. O sol já estava se pondo, tínhamos andado o dia inteiro e ainda estávamos longe demais da tal comunidade. Carl caminhava com mais dificuldade do que deveria ao meu lado, estava suado e sua respiração estava pesada, ele também parecia mais pálido do que deveria.
Suspirando frustrada eu contradisse o que tinha gritado a ele uma hora atrás e me aproximei do garoto, tentando passar o braço do mesmo por meu ombro pela milésima vez desde que chegamos àquela maldita estrada. Tínhamos brigado exatos cinco minutos depois de eu ter aceitado acompanhar o garoto a sua comunidade, e então nas horas seguintes ele se recusou ferrenhamente a aceitar qualquer ajuda de minha parte.
Por fim, eu perdi o resto da minha paciência e o mandei pastar, dizendo ao mesmo que nunca mais o ajudaria, é uma pena que minha afirmação tão convicta não valha mais nada considerando o estado do garoto. Eu sempre me considerei uma pessoa orgulhosa e teimosa, mas Carl Grimes me fazia parecer um doce de coco quando encasquetava com alguma maldita ideia. Ele me lembrava um pouco meu irmão na teimosia...
-Não... Eu consigo... Continuar... - Carl resmungou tentando se afastar de mim, mas acabou cambaleando para o lado e só não terminou no chão porque eu usei toda a minha força para aparar seu corpo fraco. Merda, ele não estava nada bem...
-Me escuta, caralho! - xinguei, respirando fundo em seguida e tentando não gritar - Eu não estou fazendo isso por você, pode ser? Estou me ajudando a ter um lugar seguro para ficar, mas eu nunca vou encontrar essa comunidade se você morrer aqui, sua mula empacada! - ralhei em tom baixo, ajeitando o braço do garoto em volta de meus ombros e o ajudando a andar.
-Você... É insuportável... - ele resmungou me olhando feio, mas claramente não consiguia respirar bem pela exaustão, dessa vez ele não tentou se afastar. Jack lambeu a mão do garoto e ele acariciou fracamente a cabeça do mesmo, resmungando algo inteligível ao meu cão.
Mais duas horas de caminhada se seguiram, percorremos uma distância curta considerando a velocidade reduzida de nossos movimentos, a escuridão nos cobriu como a terra que recobre os caixões. Sufocante. Carl estava ardendo em febre, o curativo em sua perna estava encharcado com o líquido carmesim, e ele chiava de dor a cada vez que precisava encostar a perna ferida no chão.
Meu corpo também já estava no limite, eu tremia de fome e fraqueza, minha garganta estava seca e minhas pernas e pés doloridos com o esforço, meus pulmões queimavam dentro de mim e eu sentia uma camada nojenta de suor envolver todo o meu corpo, minha bolsa parecia pesar uma tonelada ao lado de meu corpo.
O medo me corroía como um monte de vermes, consumindo a carne abaixo da minha pele. Tudo a minha volta era um motivo para ter medo, até os sons de nossos próprios passos eram um motivo para o meu coração bater assustado no peito. Precisávamos urgentemente de um abrigo, se os monstros nos cercassem agora eu sabia que não seria capaz de defender a todos nós sozinha.
A ideia de fugir e deixar o garoto para trás, à mercê da própria sorte, passou algumas vezes pela minha cabeça. Eu sabia que ele sequer protestaria contra a minha decisão. Porém, a culpa imensurável e excruciante que sempre me atingia ao simplesmente pensar em deixá-lo para morrer, me vencia todas as vezes. Eu não teria estômago para conviver com isso depois...
-Vamos, Carl... Só mais um pouco... Precisamos continuar... - supliquei quando o garoto quase caiu de novo, tendo novamente que usar toda a minha força para fazer com que ele não caísse. Meus olhos arderam, segurar o choro estava cada vez mais difícil.
-Eu não... Consigo mais... Está... Tão frio... - ele sussurrou com dificuldade, sua voz fraca era apenas um sopro descompassado, eu sabia que ele estava quase apagando, seu único olho estava quase se fechando.
-Por favor... Por favor... N-não agora... Não me d-deixa sozinha...! C-carl...! - implorei perdendo o controle de mim mesma, as lágrimas desceram gordas e quentes por minhas bochechas enquanto eu sentia o garoto lentamente amolecer ao meu lado.
Não tive mais força para manter o peso do garoto quando ele desabou de vez, caí de joelhos no asfalto, ignorando a dor que recobriu o local no impacto. Cuidadosamente, eu retirei a mochila das costas do garoto e o deitei no chão, meus soluços se tornaram mais audíveis quando encarei seu rosto iluminado apenas com a luz fraca da Lua.
-Não chore... Você é... Mais... Bonita... Sorrindo... - Carl sussurrou vagarosamente, enquanto sua consciência se esvaía aos poucos, até que ele se calou de vez.
Eu cobri a boca com as mãos, tremendo violentamente enquanto soluçava alto. O desespero me engoliu como uma grande baleia, e tudo de repente pareceu tão gelado e assustador. Jack choramingou também, eu precisava proteger os dois, mas não tinha mais forças para isso.
Foi então que um som ao longe me fez estremecer até os ossos, era o ronco de um motor, talvez dois, tinham carros chegando. Eu pensei em arrastar Carl até a floresta, mas sabia que nesse escuro seria uma péssima ideia levar o garoto pra um lugar cheio de esconderijos para prováveis mortos invisíveis na noite.
Os carros fizeram a curva, estavam a apenas alguns metros de nós, os faróis me deixaram atordoada como um servo prestes a ser atropelado, mas eu sabia o que tinha que fazer. Olhando uma última vez para o rosto do garoto, eu reuni qualquer coisa parecida com força ou coragem dentro de mim e me coloquei de pé, puxando minha arma descarregada do coldre e me preparando para o que quer que viesse a seguir.
Os dois veículos pararam a poucos metros de nós, os faróis estavam me deixando tonta, mas eu ignorei todo e qualquer desconforto e me coloquei protetoramente de pé em frente ao Grimes desacordado. Com a arma em punho eu observei quatro pessoas descerem dos carros, duas de cada um, todos armados com grandes rifles de assalto. Nada disso me intimidou, eu morreria antes de deixar que qualquer um desses desconhecidos fizesse mal a Carl.
-Abaixa a arma! - foi a primeira coisa que um dos caras disse.
Ele era alto, os cabelos bagunçados caiam por cima de seu rosto até quase a altura dos ombros, além do rifle em suas mãos ele trazia algo parecido com um arco nas costas. Jack rosnou com os pêlos arrepiados ao meu lado, pronto a atacar qualquer um que chegasse perto de nós.
-Quem são vocês?! - gritei, apontando meu revólver ameaçadoramente para o peito do homem que acabara de falar.
-Abaixe a arma primeiro... E assim podemos conversar. - uma mulher pediu, sua voz era mais suave que a do primeiro.
Ela era linda, os dreads escuros caiam até os ombros finos da mesma com uma faixa cobrindo sua testa, os lábios grossos se moviam com graça ao falar, em harmonia com seu rosto bonito. A pele escura iluminada pela luz do farol brilhava sutilmente na noite, mas entrei em pânico por dentro ao notar que ela olhava fixamente para o garoto caído atrás de mim.
-O que vocês querem?! Não temos nada, vão embora! - ordenei, trazendo o olhar da mesma novamente até mim.
-O que aconteceu com o garoto...? - outro cara perguntou, os olhos azuis estranhamente parecidos com os de Carl me encaravam muito sérios por trás das mechas grisalhas de seu cabelo, ele parecia estranhamente assustado.
-Não é da sua conta! Só peguem isso e vão embora! - mandei quase em tom de súplica ao empurrar minha mochila para frente com o pé, eu precisava cuidar do garoto, não tinha tempo pra ficar naquela discussão inútil.
-Acho que não será possível, o garoto vem com a gente. - uma outra mulher falou, autoritária.
Seus cabelos quase totalmente brancos eram curtos, ela era magra e parecia frágil à primeira vista, tinha a aparência de uma simples dona de casa, mas seus olhos frios eram um alerta claro para que eu não a subestimasse.
-Dê mais um passo, vovó... Tente tocar num fio de cabelo dele... E vou te mandar para fazer biscoito pra Satan em um segundo... Me matem se quiserem! Mas não vou permitir que machuquem ele! - gritei tomada por uma determinação ardente, as palavras saíram rasgadas e minha voz era quase um rosnado.
Eram quatro pessoas adultas, todos armados até os dentes com rifles enormes, eu estava sem munição e todas as armas que me restavam eram três facas de cozinha, estando duas delas velhas e enferrujadas e fora de meu alcance. Carl estava sangrando e ardendo em febre, com certeza não acordaria tão cedo, a minha situação era tão desfavorável que chegava a ser ridícula. Porém, eu não fraquejei por um instante em minha ameaça, lutaria até o meu último suspiro se um deles avançasse agora.
No entanto, não pude deixar de franzir o cenho quando a coisa mais inesperada e improvável aconteceu, três deles subitamente desandaram a rir como se eu tivesse contado a melhor piada do século, a mulher que eu tinha ameaçado apenas levantou uma sobrancelha. Não eram risadas ameaçadoras ou sarcásticas, eram genuínas gargalhadas, enquanto eu observava tudo estática e confusa. Ele pareciam até... Aliviados.
-Pelo visto o garoto arrumou uma namoradinha corajosa. - o cara do arco estranho falou, com um sorriso divertido, franzi o cenho ainda mais confusa.
-Que merda tá acontecendo aqui?! - perguntei perdendo o resto da paciência, não estava entendendo mais nada.
-Eu sou Rick Grimes, e quero agradecer à senhorita por ter cuidado do meu filho Carl. - o homem de olhos azuis me estendeu a mão com um sorriso acolhedor, os outros abaixaram os rifles.
Senti meu queixo cair, sem qualquer outra reação. O que caralhos estava acontecendo?!
XXX
O carro deslizava rápido pelo asfalto, correndo noite a dentro como um zumbi atrás de sua presa. O vento frio que entrava pela janela entreaberta bagunçava ainda mais os meus cabelos, mas eu sabia que sufocaria lá dentro se a fechasse. Nos dois bancos da frente estavam o homem que se apresentou como Rick Grimes e a mulher que disse se chamar Michonne.
Eu estava no banco de trás, mantendo uma toalha úmida na testa de Carl, que permanecia desacordado com a cabeça apoiada sobre minhas pernas. Jack observava tudo em silêncio do piso do carro, parecia bem menos desconfortável com os desconhecidos que eu. Michonne e o homem me vigiavam o tempo inteiro pelo retrovisor, não confiavam em mim, assim como eu também não confiava em nenhum deles, tinham pegado todas as minhas armas antes de me deixar entrar no carro. Sequer sabia se podia confiar realmente em Carl.
Porém, mesmo com todo o medo e desconfiança envolvidos, eu aceitei ir com eles até sua comunidade. Não sabia se aquela decisão seria um arrependimento futuro, mas pelo menos por aquela noite, eu não estava em posição de recusar um possível abrigo com comida e uma cama para descansar.
Demorou pouco mais de uma hora e meia, até que Rick finalmente anunciasse que havíamos chegado. Muros altos se ergueram diante de meus olhos em meio à escuridão, uma placa chamava atenção ao lado de um grande portão gradeado.
"
Bem-vindo à zona segura de Alexandria.
Misericórdia aos perdidos.
Vingança aos saqueadores.
"
O portão foi aberto por um homem inexpressivo com um topete estranho, os carros entraram e pararam não muito longe de uma torre de vigia, duas mulheres armadas nos observavam de lá de cima. A primeira coisa que notei ao sair do carro foram as casas, várias casinhas divididas por ruas se estendiam por todo o lugar, se perdendo na escuridão noturna, o lugar deveria ser um condomínio ou algo do tipo antes do apocalipse.
Me preparei para tirar Carl com cuidado do carro, mas Rick e Michonne desceram também, me olhando como se eu estivesse fazendo algo errado.
-Pode deixar, nós vamos cuidar do Carl agora. - Michonne falou, dando um passo a frente, bati a sola de minha bota no chão e Jack latiu em aviso para ela.
-Nada feito, não tenho certeza de quem vocês são, nada me garante que estão falando a verdade. Não vou sair de perto do Carl. - falei firme, a mulher de cabelos grisalhos que descia do outro carro suspirou impaciente, não sabia qual era o problema dela comigo.
-Tranquem essa menina em uma das celas, não temos tempo pra isso! Precisamos levar ele até Denise! - a grisalha reclamou, Jack rosnou pra ela. Me aproximei mais de Carl, sentindo meu coração bater assustado no peito.
-Vai com calma, Carol... Considerando o jeito que a baixinha alí defendeu o garoto, acho que ele não vai gostar se tratarmos ela como uma prisioneira. - o cara do arco falou, colocando cuidadosamente a mão no ombro da mais velha, que o olhou com os lábios franzidos mas não disse mais nada.
-Você também não parece bem, acho que o melhor seria levarmos os dois até a enfermaria. - Rick se pronunciou, olhando de mim para o garoto desacordado, parecia preocupado demais com o filho para me tomar como uma possível ameaça a eles agora.
Finalmente cedendo, eu concordei com a cabeça e ajudei Rick a tirar Carl do carro. Envolvi um dos braços do garoto em meus ombros e o homem repetiu minha ação do outro lado, a cabeça de Carl pendeu para o lado e eu encostei minha bochecha na dele para mantê-la no lugar. A febre parecia ter diminuído um pouco, mas ainda era um avanço pequeno, ele tinha perdido sangue demais.
Carregamos Carl por alguns poucos quarteirões até entrar em uma casa em específico, uma mulher loira baixinha de corpo roliço e olhos gentis veio imediatamente até nós, sendo seguida por um homem de pele amorenada e barba e cabelos escuros um instante depois. O homem foi direto até Carl, parecia preocupado com o garoto, ele realmente tem pessoas que se importam com ele aqui.
-Ela ajudou Carl a voltar para casa, cuide dela por favor, Denise. - Rick informou à loira, que concordou com a cabeça, o homem preocupado logo voltou sua atenção ao filho que era examinado pelo outro médico.
Denise sorriu pra mim e me levou até a maca ao lado da de Carl, puxou uma cortina para nos dar privacidade e começou a me examinar cuidadosamente. Eles me deram comida, no começo eu tive medo de estar envenenada, mas depois de finalmente provar a primeira colherada, eu sequer observei o que havia no prato. Comi tudo em instantes, sentindo a dor em meu estômago finalmente diminuir, satisfeita por Jack e eu termos jantado de verdade naquela noite, sequer me lembrava de quando havia sido a última vez.
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