Capítulo 4
A chuva se chocava com força contra as paredes finas da casa, escorrendo pelas janelas como uma cachoeira. Meu corpo tremia sem cessar, talvez pelo frio, talvez pelo medo. Com os olhos vidrados na janela do outro lado da sala, eu não conseguia simplesmente me desligar e dormir. A chama da vela sobre a mesa, única iluminação do cômodo, tremulava tão frágil quanto eu.
Cada trovão me fazia pular discretamente no sofá como uma lebre assustada, estava ficando cada vez mais irritada por estar com tanto medo. Foi em uma noite assim que eu perdi a minha mãe, já fazia muito tempo e eu já deveria ter superado, mas eu nunca conseguia evitar tremer como uma vara verde quando o vento soprava mais forte.
-Você está bem...? - a voz de Carl fez com que eu me distraísse da janela, virando meu rosto para ele e engolindo em seco para disfarçar meu desespero.
-Por que não estaria? - perguntei, minha voz saiu mais frágil do que eu gostaria, me xinguei mentalmente por não conseguir disfarçar.
-Se estiver com frio, pode ficar com o meu cobertor também, minhas roupas são quentes. - ele falou, se sentando no sofá onde antes estava deitado e estendendo seu cobertor para mim.
-Estou bem, não se preocupe. Se você conseguir pegar um resfriado agora, as coisas só vão piorar... Mas... Obrigada, mesmo assim. - murmurei sem jeito, cerrando os dentes e fechando os olhos com força quando outro trovão ecoou ao longe. Merda!
-Está com medo da chuva, não é...? - ele pareceu finalmente entender o que estava acontecendo, ofeguei irritadiça e desviei o olhar novamente.
-Isso não é da sua conta...! - falei, de forma mais rude do que havia planejado, o garoto suspirou alto e bagunçou os cabelos.
-Olha, eu não vou rir de você ou alguma merda parecida... Não sou esse tipo de imbecil... Só quero retribuir de alguma forma a ajuda que você tem me dado. - ele explicou parecendo tentar se controlar para não começar uma briga, eu respirei fundo e tentei sair um pouco da defensiva.
-Eu só não me dou muito bem com tempestades noturnas, nem com o escuro... Experiências ruins... - expliquei da forma mais breve que podia, eu não gostava de tocar naquele assunto.
-Entendi... Hm... Aquele chute que me deu mais cedo... Me pareceu mais do que uma habilidade que se aprende no apocalipse. Você já fazia algum tipo de arte marcial antes disso? - ele perguntou, mudando o assunto de repente, e eu entendi que sua estratégia era tirar minha atenção do temporal lá fora.
-Sim, desde criança na verdade... Eu... A minha mãe me ensinava. - falei mordendo o lábio ao final da frase, ainda era doloroso demais falar sobre ela, e eu prendi a respiração para conter um grito quando outro trovão ecoou parecendo mais próximo de nós.
-Isso é legal... A sua família... Onde... Onde eles estão agora? Se perdeu deles...? - ele continuou.
Seu tom ficou um pouco mais cauteloso e eu senti meu coração acelerar, sabia o que ele estava tentando fazer. Estava tentando se aproximar de mim, criar intimidade, mas acabou tocando onde menos deveria.
-Não...! N-não vamos... Com certeza não vamos fazer isso!! - aumentei o tom da voz e me levantei de supetão, subitamente sem fôlego, eu queria desesperadamente sair correndo dali mesmo com aquela maldita tempestade.
-Não vamos fazer, o quê exatamente?! - Carl questionou exasperado, parecia confuso e irritado comigo, mas era isso que eu mais queria naquele momento, porque a raiva sempre seria mais segura que a proximidade.
-Não vamos falar sobre famílias, medos ou qualquer coisa íntima ou amigável demais... Não estamos aqui para sentar perto do fogo e trançar os cabelos um do outro, não somos amigos! Tudo o que nos une aqui é uma coincidência de merda e um mundo fodido, então não confunda as coisas. E além de tudo, eu nem sequer gosto de você! - soltei tudo em um fôlego só, soando dura e amarga o suficiente para que a expressão de Carl mudasse completamente - Durma, a comida acabou e tem uma horda perto demais daqui. Eu e Jack vamos embora pela manhã, se quiser ir conosco até a estrada vai precisar de forças. - finalizei, desviando o olhar e sentindo minhas mãos tremerem mais.
-Certo... - foi tudo o que ele respondeu após alguns segundos
Sua face, olhar e voz agora expressavam apenas um desprezo gelado. Grimes se deitou novamente no sofá, ajeitou o cobertor sobre si mesmo e cobriu o rosto com o chapéu. Aquele resposta fez meu coração bater estranho no peito, mais pesado do que o normal, como se fosse vagarosamente esmagado por uma mão invisível. Culpado...
Porém, eu ignorei completamente aquela sensação, me deitei ao lado de Jack que me encarava parecendo confuso do sofá e me encolhi o máximo que podia. Sem que eu pudesse controlar, uma lágrima solitária deslizou quente por minha bochecha gelada, mas eu também a ignorei.
XXX
A manhã chegou mais rápido do que eu esperava, com os raios sutis do Sol de começo de dia entrando sem permissão pelas janelas. Me sentei no sofá e esfreguei preguiçosamente os olhos, minha cabeça doía e meus lábios estavam ressecados e repletos de pequenos cortes. Me espreguiçando eu analisei a sala a minha volta, mas senti meu corpo inteiro travar e estremecer ao não encontrar mais o garoto Grimes no sofá a minha frente.
-Carl...? - chamei temerosa, me levantando devagar e caminhando até a cozinha, ele também não estava lá.
Após ter examinado rapidamente o andar debaixo da casa, eu subi as escadas com pressa, pouco me lixando para o barulho que meus pés descalços faziam ao bater na madeira velha. Abri de uma vez a primeira porta de corredor, estava assustada demais para pensar em qualquer coisa que não fosse aquele idiota sozinho do lado de fora com uma perna machucada e sem munição.
-Carl!! - chamei mais alto quando já estava dentro do terceiro e último quarto daquele corredor, o desespero me corroía como ácido.
Sem ar me virei e corri para fora do quarto, pronta a ir atrás do garoto e trazê-lo de volta, mas trombei em algo antes mesmo de me afastar da porta. Tonta eu reprimi um grito e pulei para trás como um gato arisco, batendo as costas com força na parede e olhando para cima assustada. Minha expressão se suavizou e uma onda de alívio me percorreu quando encontrei a face pálida de Carl, seu olho azul estava fixado em mim com um brilho confuso.
-O que aconteceu? - ele perguntou de repente, e só então eu parei para analisar o mesmo.
Grimes tinha aparentemente acabado de sair pela porta do banheiro, seus cabelos úmidos do banho recente caíam com suavidade por seus ombros desnudos, ele ainda estava sem camisa, vestia apenas uma calça jeans limpa e também havia trocado o curativo do rosto e da perna. Por mais que não quisesse admitir, ele tinha um corpo consideravelmente interessante por baixo das roupas largas.
-Terra chamando Clarisse! Ouviu o que eu disse? - sua voz me arrancou me arrancou de minha análise indiscreta, ajeitei a postura e limpei a garganta desviando o olhar.
-E-eu... Idiota! Por que não respondeu quando eu chamei?! - gaguejei envergonhada, mas logo disfarcei tudo com um olhar irritado, Carl arqueou a sobrancelha.
-Estava segurando uma das faixas limpas com a boca, não quis deixar cair no chão. Por que estava me procurando? - respondeu me observando mais atentamente, eu engoli em seco sentindo minhas bochechas esquentarem.
-V-você... Eu não... Esquece! - resmunguei por fim, dando as costas ao garoto e entrando no banheiro, ouvi uma risadinha dele antes de bater a porta e trancar a mesma. Idiota!
Depois de um banho rápido e ter vestido roupas limpas, ajeitei a camisa de Carl sobre as mesmas e tentei arrumar o cabelo como podia. As mechas curtas estavam ressecadas depois de tanto tempo de péssimos cuidados e mesmo meu rosto estava mal cuidado, suspirando irritada eu desisti dessa merda sem sentido e desci as escadas com a mochila nas costas.
Carl me esperava encostado na parede ao lado da janela, com a mochila ao seu lado no chão e a perna machucada apoiada de leve na parede, o chapéu fazia com que ele parecesse um cowboy. Silenciosa e com o coração acelerado, ajeitei uma guia que encontrei jogada pela casa na coleira de Jack e entreguei a mesma ao garoto.
-Fiquem aqui por enquanto, vou sair primeiro pra ver se é seguro e volto pra buscar vocês.- falei, tirando a faca da bota e deixando minha mochila no chão também.
-Seja cuidadosa. - foi tudo o que ele respondeu, com o mesmo tom frio de ontem, engoli em seco e assenti tentando não demonstrar estar contrariada.
Destranquei a janela e pulei pro lado lado de fora, olhando em volta com cautela. Depois de escorar a janela novamente eu comecei a contornar a casa com os olhos e ouvidos atentos a qualquer ameaça. Andei mais um pouco por perto da casa e esperei alguns minutos, nenhuma ameaça a vista.
-Nada anormal, vamos logo. Temos que encontrar outro lugar e de preferência com comida antes do anoitecer. - informei ao abrir a janela novamente.
Depois de me entregar as mochilas, Carl recusou minha ajuda para pular a janela e cambaleou um pouco ao descer da mesma, pegando sua mochila de volta. Jack pulou para fora da casa com facilidade e eu tranquei a janela novamente, se tudo desse errado teríamos pelo menos um lugar para voltar.
Enquanto caminhávamos lado a lado em silêncio, Grimes me acompanhava com um pouco de dificuldade. Eu não sabia se era uma boa ideia fazê-lo andar tanto agora, a febre ou o sangramento poderiam voltar, mas seria pior deixá-lo sozinho enquanto eu procurava por comida. Se alguma pessoa ruim ou mesmo a horda o encontrassem, ele teria apenas uma faca e uma perna ferida para lutar, e mesmo que eu não quisesse admitir... Eu me preocupava com ele.
Sabia que tinha sido grossa na noite anterior, uma sensação constante de que deveria pedir desculpas me rondava, mas eu estava ciente de que era melhor assim. Quando você conhece uma pessoa, muitas vezes é quase impossível não se tornar mais próxima dela, e a verdade é que eu tinha medo de perder pessoas importantes mais uma vez.
-Vamos por aqui, a horda estava nessa direção, não é seguro. - pedi ao notar para onde o garoto caminhava, e por impulso segurei o mesmo pela mão.
Ele assentiu parecendo um pouco surpreso e desconfortável, afastando a mão devagar e tomando a direção que eu apontei. Fiquei alguns passos atrás dele, um pouco envergonhada pelo toque quente de sua mão na minha, eu tenho que parar urgentemente de ser tão impulsiva.
Andamos por algum tempo, cercados apenas por árvores e um errante ou outro que eu matava pelo caminho. Chegamos à estrada com um pouco mais de demora do que se eu estivesse sozinha. Carl parecia cansado pela caminhada, mas não era nada demais. Ver que ele estava consideravelmente bem até o momento me fez suspirar aliviada.
Dei alguns passos pelo asfalto em partes coberto de folhas, mas me assustei quando dessa vez Carl segurou minha mão, me impedindo de continuar andando. Quando me virei para o garoto, notei que ele me olhava intensamente, como se quisesse desvendar os segredos da minha alma.
-O que aconteceu...? - perguntei um pouco sem jeito com a situação.
-Não vamos por esse lado... E-eu... Eu quero que venha comigo, conheço essa estrada, já sei onde estamos. - ele falou baixo, como se me contasse o maior segredo do mundo.
-Pra onde quer me levar? - questionei subitamente assustada, com medo de acabar presa novamente, o garoto me manteve cautelosamente no lugar.
-Preciso que responda três perguntas... Não minta, está bem? - ele informou, muito sério, mas seu olhar me passava segurança de alguma forma.
-Vou tentar... - respondi incerta.
-Quantos zumbis você já matou? - o moreno perguntou, me olhando fixamente de forma atenta.
-Muito mais do que alguém na minha idade deveria... - respondi amarga, mas com sinceridade, já havia perdido as contas a muito tempo.
-Quantas pessoas você já matou? - foi sua próxima pergunta, comprimi os lábios e respirei fundo, ignorando o aperto em meu coração ao tocar no assunto.
-As que mereciam... Poucas... - respondi com frieza, levantando meu olhar dolorido até o garoto, lembrava de cada uma das pessoas que já tinha matado e estava omitindo a quantidade, aquelas imagens ainda me torturavam com malditos pesadelos às vezes.
-Por quê? - perguntou mais uma vez, no mesmo tom sério que usou nas outras.
-Porque essas pessoas teriam me matado se eu não fizesse primeiro. O mundo funciona assim agora. - murmurei por fim, baixando o olhar, sentia um nó se formando em minha garganta.
-Eu venho de uma comunidade chamada Alexandria, tem mais pessoas e comida, muros fortes pra manter os mortos de fora. Quero que volte comigo pra lá. - o garoto explicou, levantei meu olhar surpreso até ele.
-Por que... Está confiando em mim assim...? Você mal me conhece... - murmurei fracamente, pensando na possibilidade, minhas mãos suavam e eu estava com medo, mas talvez eles não fossem pessoas ruins. Carl não me parecia uma pessoa ruim.
-Eu sinto que você é uma pessoa boa, teria me deixado morrer se não fosse... E mesmo que não goste de mim, quero ajudar você. - Grimes explicou calmamente, se afastando três passos e me estendendo sua mão - Vamos? - perguntou com um sorriso suave, e hipnotizada pelo azul brilhante e profundo de sua íris, eu caminhei lentamente até ele e segurei sua mão. Foi a decisão correta...?
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