Capítulo 25
Mordi com toda a força o tecido, o suficiente para fazer minha mandíbula doer, contendo como podia qualquer expressão sonora da sensação excruciante que o álcool causou ao entrar em contato com o ferimento. Espasmos cada vez piores tomavam meu corpo, enquanto Carl fazia a limpeza de meus ferimentos da forma mais diligente que podia com suas mãos trêmulas.
Os cortes menores e arranhões já estavam devidamente limpos e cobertos por pequenos curativos, de modo a economizar o máximo que podíamos nossos poucos recursos. Seguiríamos viagem assim que a limpeza dos ferimentos acabasse e a mochila estivesse novamente arrumada. Mesmo que o tempo estivesse nublado e o frio cortante persistisse, a temperatura parecia ter aumentado um pouco e isso era a melhor notícia que tivemos em dias.
Um silvo dolorido escapou de meus lábios, quando Carl encostou novamente o pedaço de gase embebido em álcool na ferida em meu abdômen. Os gestos do garoto eram cautelosos e gentis, mas ainda sim a dor persistia em me atormentar.
-Se pudesse estar em qualquer lugar do mundo, pra onde iria? - ele perguntou, da forma mais aleatória possível, compreendi que sua ideia era me distrair.
-Brasil. - respondi simples, um sorriso nostálgico preencheu meu rosto e uma lembrança feliz se repetiu em minha mente.
-Brasil... Por causa da sua avó, não é? - Carl questionou curioso, enquanto tirava mais um estilhaço de vidro do corte em meu abdômen.
-Minha avó nasceu lá, vivia me contando histórias da sua juventude no Brasil. Então se eu pudesse estar em qualquer lugar do mundo, estaria lá com a minha família, mesmo que por apenas algumas horas. - dei um sorriso triste ao garoto, aquela era apenas mais uma promessa perdida no apocalipse.
-Bom, eu poderia te levar até lá um dia... Sabe, quando o mundo ficar menos perigoso? - Carl propôs timidamente, nós dois sabíamos que era uma ideia impossível e que o mundo nunca iria ficar menos perigoso, mas mesmo assim eu concordei.
-Eu adoraria ir ao Brasil com você, Projeto de Xerife. Mas precisamos conseguir protetor solar pra você antes disso, se não vai acabar virando um camarão por lá. - sorri tranquila, o garoto riu baixo e me mostrou a língua pela provocação.
Nos encaramos por longos segundos, com sorrisos bobos nos lábios, até que sem perceber estávamos nos aproximando vagarosamente. Girei o sutilmente a cabeça e fechei os olhos quando os lábios de Carl cobriam gentilmente os meus. Meu coração acelerou no peito e eu queria muito continuar aquele beijo, mas me afastei apenas alguns segundos depois.
-Fazem dois dias que não escovamos os dentes, não vou beijar você. - fiz uma careta, mesmo que ainda estivesse sorrindo, e Carl imitou meu gesto entre uma risadinha.
Após terminar a limpeza do meu corte, Carl enfaixou o local e sem permitir que eu ajudasse, limpou os próprios arranhões. Observando o local onde o garoto informou que doía, eu pude deduzir que ele não havia quebrado de fato a costela, provavelmente estava só trincada pois não apresentava estar fora do lugar. Isso me trouxe certo alívio, mas ainda era uma situação preocupante.
Carl era teimoso demais, e sua situação exigia repouso. Meu irmão quebrou uma costela uma vez, em uma briga de rua antes do apocalipse. Teve que passar quase dois meses de repouso, assistindo filmes clichês comigo como castigo, e o médico disse que ele teve sorte pelos estilhaços da costela quebrada não terem perfurado seu pulmão. Sendo assim, poderíamos ter um problema enorme em mãos em breve, considerando que nessa viagem a última coisa que teríamos era repouso.
-Sinto falta da televisão, assim eu poderia te forçar a assistir Titanic e De Repente 30, até melhorar de verdade. - murmurei desanimada, ele riu baixo.
-Sabe, você é como a Jenna na maior parte do tempo. - o garoto falou após vestir de volta as roupas, o encarei confusa.
-A protagonista de De Repente 30? Por que acha isso? - questionei genuinamente curiosa.
-Você sempre está correndo de um lado pro outro, parece querer acelerar o tempo. Talvez devesse seguir o conselho na letra da música tema dela e ir mais devagar... Se cobrar menos. Você não pode salvar o mundo se esquecer de si mesma. - Carl explicou me olhando nos olhos com intensidade, me surpreendi com sua ousadia e pela primeira vez quis me esconder do azul expressivo em sua íris.
Longos segundos se passaram até que eu fosse capaz de me recompor, aquilo realmente me deixou pensativa, mas eu não queria dar razão a ele. Sendo assim, segui pelo caminho mais simples e conformista: fazer uma piada com o problema.
-Então quer dizer que o filho do Xerife, gosta de filmes de romance? - brinquei, forçando um sorriso, Carl suspirou impaciente mas acabou sorrindo.
-Odeio o fato de você ser tão boa em fugir do assunto! E além disso, todo mundo gosta de filmes de romance. Meu pai para qualquer coisa que estiver fazendo pra assistir Uma Linda Mulher. - ele cruzou os braços com um sorriso divertido, terminei de enfiar o cobertor térmico como podia na mochila e dei um nó forte no fecho improvisado.
-Vamos indo, Mr. Darcy? - brinquei, colocando a mochila nos ombros e estendendo a mão ao garoto.
-Mas é claro, Srt. Bennet. - respondeu, mostrando que já havia assistido até mesmo Orgulho e Preconceito e aceitou minha mão, se levantando do chão e ajeitando o casaco grande no corpo. Carl é uma caixinha de surpresas.
Não sabia o que esperar dessa viagem e menos ainda se encontraria algo no final de tanto esforço, mas ter o garoto por perto me trazia esperanças de que tudo iria se resolver. Esperanças de que talvez, e apenas talvez, o mundo ainda tivesse conserto.
XXX
Mais de três horas haviam se passado desde que deixamos a cidadezinha abandonada, e a típica preocupação de um sobrevivente estava cada vez mais difícil de ignorar. Mesmo com o pequeno aumento da temperatura, ainda estava frio demais, sentia minhas pernas dormentes e nossa comida estava quase no fim. Tudo o que nos restava agora era meia garrafa d'água e um pacote de bolachas quase no fim.
Parte da água teve que ser usada para que Carl lavasse as mãos, para não nos contaminar com o sangue dos mortos quando fez a limpeza dos ferimentos, e após tudo isso estávamos com muito mais sede e fome do que eu imaginava. As bolachas e a água foram vítimas de um massacre impiedoso, e quando nos demos conta, o que restou dos nossos "mantimentos", não nos manteria nem por mais duas horas.
-Acha que isso pode fazer mal... Bolachas vencidas e água guardada numa garrafa de plástico por tanto tempo? - Carl perguntou, encarando o pacote de bolachas vazio com ar culpado.
-Bom, talvez prefira beber seu próprio xixi, é uma escolha sua. Eu acho que prefiro a água velha da garrafa. - respondi com um sorriso sarcástico, o garoto fez uma careta, mas riu logo em seguida.
-Eu considerei isso, uma vez. Pouco antes de conhecermos Aaron e ele nos levar até Alexandria, sinceramente, não sei se teríamos sobrevivido se ele não tivesse nos ajudado. - o garoto explicou, pensativo.
-Vocês teriam, sei que sim. São o grupo de pessoas mais maluco que eu já conheci. - brinquei, Carl me deu a língua, mas riu comigo.
-Talvez, mas já passamos perto da morte muitas vezes. Como a quando nos prenderam no Términus, provavelmente teríamos virado o jantar daqueles canibais pirados se Carol não tivesse nos salvado. - comentou enquanto tirava os cabelos escuros do rosto, ele ficava diferente sem o chapéu de xerife, como se fosse apenas Carl, e não o grande filho de Rick Grimes.
-Carol é forte, não me dava bem com ela no começo, mas agora acho que a entendo melhor. Ela é uma boa pessoa. - falei baixo, com o coração apertado ao me lembrar de quão dolorido seu olhar pareceu ao revelar que me achava parecida com sua filha. Eu só espero que ela e os outros estejam bem...
-Vocês duas são parecidas. - Carl se pronunciou de repente, me arrancando de meus pensamentos amedrontados.
-O que, ambas somos incendiárias? - forcei um sorriso ao fazer a piada, mas depois de tudo não estava mais no clima para brincadeiras.
-Isso também, mas o que eu quero dizer é que vocês duas são fortes. Às vezes até demais para o próprio bem. - ele me olhou de forma sugestiva, fugi de seu olhar pela segunda vez naquele dia. Eu realmente não estava pronta para um desabafo ou coisa parecida.
Caminhamos lado a lado em um silêncio pesado por mais algum tempo. A julgar pelo tom sutilmente enegrecido do horizonte a noite chegaria logo, então decidimos apertar o passo, para pelos tentar encontrar um lugar melhor pra fazer uma fogueira se a temperatura diminuir novamente.
O cansaço estava novamente se acumulando em minhas pernas, quando uma figura metálica se mostrou entre as árvores não muito longe de nós. Carl e eu nos entreolhamos e em um acordo silencioso, nos abaixamos, caminhando o mais discretos possível entre os arbustos até o carro na beira da estrada.
Haviam três zumbis em volta do veículo, que parecia consideravelmente limpo para um carro abandonado. Não tinha sinal de ninguém vivo no carro, então apenas peguei uma pedra no chão e a arremessei na direção oposta à nossa. Os zumbis seguiram o barulho e desapareceram entre as árvores, ainda com a faca em punho, saí dos arbustos enquanto Carl me dava cobertura com espingarda.
No carro, havia apenas um corpo meio comido e sem cabeça. Um grunhido baixo atraiu meu olhar para a cabeça decapitada próxima a uma das rodas, que se mexia de leve ao tentar abocanhar um pouco de carne. Me abaixei para observar a cabeça zumbificada, o corte limpo na região do pescoço era uma marca registrada muito conhecida por nós dois.
-Michonne! - verbalizamos ao mesmo tempo, um sorriso preencheu nossos rostos.
-Eles devem ter encontrado esse cara quando passaram por aqui ontem. - Carl murmurou, pensativo.
-Talvez pensaram que fosse aquele maníaco de merda, dentro do carro dá pra confundir. - dei de ombros, não ousando pronunciar o nome de Negan.
-Acha que o carro ainda funciona? - o garoto perguntou, me levantei do chão e guardei a faca na bota.
-É o que vamos descobrir. - falei agarrando uma das pernas do cadáver, Carl teimosamente se agarrou à outra e juntos retiramos o corpo do carro.
Me sentei no banco do motorista e busquei a chave, sorrindo ao encontrar a mesma na ignição. Tentei ligar o carro algumas vezes, mas quando o barulho reconfortante do motor chegou aos meus ouvidos, não pude conter um sorriso.
-Tem gasolina? - Carl perguntou eufórico, não estava acreditando que havíamos tido tanta sorte, era quase como uma miragem.
-Meio tanque. - respondi quase sem ar com a espectativa de que tínhamos agora uma chance real de alcançar nosso objetivo.
-Bom, é o que temos por hora. Temos que torcer pra ser suficiente. - foi tudo o que ele disse antes de entrar no carro também. Dei a partida, rezando silenciosamente para que aquilo não fosse apenas uma miragem.
Assim que acelerei o carro, sentindo um arrepio de nostalgia me percorrer ao me lembrar de meu pai me ensinando a dirigir, uma bifurcação na estrada se postou diante de nossos olhos. Uma pergunta silenciosa e final sobre qual destino devíamos escolher. Uma das estradas nos levaria de volta a Alexandria e outra rumo a uma comunidade que eu sequer sabia dizer se ainda estava de pé. Era a nossa última chance de voltar atrás com aquela ideia maluca... Mas ela nunca foi agarrada.
Virei sutilmente meu rosto em direção a Carl, buscando em seu olhar a resposta que precisava. O oceano geralmente calmo em sua íris agora era um mar em tempestade. Com uma coragem implacável, que eu até mesmo invejava, ele assentiu uma única vez. A confirmação final.
Com o coração batendo rápido no peito, girei o volante e fiz a curva rumo ao desconhecido. Segui sem mais hesitação a estrada que me levaria de volta ao passado que um dia eu abandonei, implorando apenas em minha mente para que OceanSide ainda estivesse de pé, para que Cyndie também não tivesse morrido.
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