Capítulo 22
Toda boa intenção, por mais pura que seja, sempre irá prejudicar alguém. O bem maior ao preço da dor de poucos, a mentira capaz de salvar tantas vidas ao destruir um coração. O mundo nunca foi um lugar justo, guerras sempre existiram e o inferno sempre esteve lá, nascido junto com a queda do anjo mais belo do céu. A ganância é, e sempre será, o que move esse mundo de merda. Com apocalipse ou não.
Não importa quantas vezes eu tenha tentado usar de consolo a ideia do maldito "bem maior", ainda me senti o pior dos monstros ao vestir cada peça de roupa, cada segundo daquilo deixava meu coração mais pesado, e ao imaginar o rosto de Rick ao se deparar com aquilo... Céus, eu só desejava que Carl tivesse me deixado para a morte, porque eu merecia isso.
-Está... Pronto? - sussurrei, meu tom era tão fúnebre quanto o cadáver à minha frente, eu não tinha mais lágrimas para chorar.
-Se afaste. - o garoto pediu baixo, era nítido que estava se controlando, tentando parecer forte, mas seu olhar denunciava o quanto aquilo era doloroso pra ele.
Me forcei a ficar de pé e andei alguns passos, abraçando meu próprio corpo enquanto sentia cada grama de mim tremer sem descanso, embaixo de roupas estranhas e desconfortáveis que não eram minhas. Carl se colocou de joelhos ao lado do corpo da mulher, arrastando uma pedra consigo.
-Só... Não olhe. - ele sussurou, sem se virar para mim, mas eu nunca tive a menor intenção de lhe obedecer.
O som da primeira pedrada preencheu meus ouvidos e eu me forcei a prestar atenção em cada segundo daquilo, a única auto punição em que consegui pensar naquele momento. Uma duas, três, quatro, seis pedradas. Aos poucos o garoto destruía o crânio da mulher, uma expressão neutra jazia em seu rosto bonito, mas eu podia ver como ele fechava os olhos com força a cada vez que o impacto vinha.
Minha ideia era algo bem simples, observando os cadáveres dos dois Salvadores que matamos, notei que ambos tinham aparências parecidas com as nossas. Rick e os outros com certeza deveriam estar nos procurando, mas não podíamos voltar para Alexandria com eles.
Era nítido que depois de tudo o que aconteceu a pouco mais de uma hora e meia, ninguém em sã consciência acreditaria na existência de uma outra comunidade, e mesmo que acreditassem não me deixariam ir até lá. Além disso, se fossemos até lá sem falar com os outros, era mais do que óbvio que Rick, Paul e os outros continuariam procurando por nós dois sem descanso e Alexandra precisava deles lá.
No fim, a única ideia que me restou foi forjar a nossa morte, trocar de roupa com os dois cadáveres e destruir seus rostos para encobrir suas verdadeiras identidades. Ambos tinham alturas e tons de pele bem parecidos com os nossos, não vi nenhuma tatuagem à vista e as cicatrizes foram facilmente cobertas com um pouco de sujeira. Tive até mesmo o cuidado de furar minhas roupas já vestidas no cadáver da mulher no mesmo lugar em que a esfaqueei ao matá-la.
Não era o plano mais heróico do mundo e tinha uma grande chance de não funcionar, mas era a única forma de fazer com que os outros parassem de nos procurar. Porém, mesmo que fosse a única forma, isso não significava que eu estava gostando dessa mentira. Rick e Paul não mereciam isso, não depois de todas as pessoas que ambos perderam. Eu me sentia um monstro por sequer pensar em algo tão profano.
Observei em silêncio quando Carl finalmente terminou de destruir o crânio da mulher e se aproximou do homem ao lado dela, suas mãos ergueram a pedra, mas ele hesitou antes de acertar a cabeça do homem. Seu olhar se perdeu no rosto do morto e eu vi o quanto aquilo lhe doía, não importava o quanto ele tentasse fingir indiferença.
-N-nós... Nós não precisamos... P-podemos pensar mais... Outra ideia... - murmurei baixinho, me aproximando do garoto, minha voz trêmula denunciava minhas emoções. Porém, ele negou vagarosamente com a cabeça.
-Esse é o único... Jeito... Não sei se é o "certo"... Mas é o que nós temos... - Carl desviou o olhar ao falar, sabia que estava segurando o choro, seu olhar dizia que ele se sentia péssimo por enganar o pai com uma mentira tão dolorosa.
-Acha que... Eles vão nos perdoar... Um dia...? - perguntei baixo, encarando minhas mãos sujas sobre a calça cinza roubada, a dor em meu coração superava a de qualquer outro ferimento em meu corpo.
-Não sei... Talvez... Mas temos que fazer isso, se eles estiverem mortos, nunca vamos saber. Agora se afaste, temos que terminar logo e sair daqui. - o garoto recuperou a postura por fim.
Me obriguei a me afastar alguns passos, o som horrível de ossos quebrando que cada impacto da pedra no crânio do homem produzia me deixou enjoada. O garoto terminou sua tarefa alguns minutos depois, deixando a pedra suja de qualquer jeito ao lado do cadáver totalmente desconfigurado e se aproximou do cavalo, limpando como podia as mãos ensanguentadas na calça. A respiração pesada de Carl indicava que também estava enjoado com a cena.
Ao soltar o animal da árvore em que estava amarrado, ele o trouxe até mim devagar. Hesitante, ergui a mão esquerda e fiz um carinho suave na face do equino. Ele tinha uma bela pelagem escura, com manchas brancas na face e nas patas, mas ao ouvir grunhidos próximos de nós não pude perder mais tempo admirando o cavalo.
Parando do lado esquerdo do animal, ajeitei as rédeas sobre o mesmo e as segurei firme com a mão esquerda para que ele não se movesse, abaixei um pouco o estribo e ajeitei o pé esquerdo nele. Inclinando o corpo um pouco para a frente, joguei meu peso na perna que estava montando e com a ajuda do garoto Grimes passei a perna por cima do cavalo.
Tive que morder os lábios para conter um breve grito de dor com a movimentação brusca. O corte em meu abdômen latejou, me tirando todo o ar, mas eu ignorei isso. Ajudei Carl a montar também, com um pouco de dificuldade, o garoto parecia ser bem inexperiente com a montaria, mas conseguimos nos virar. Esse pensamento geralmente me arrancaria uma risadinha ou comentário indecente, mas eu estava cansada e traumatizada demais para rir naquela noite.
-Pronto pra ir? - perguntei, terminando de ajeitar minha posição sobre o animal, Carl se segurou em minha cintura e ajeitou a postura assentindo.
Eu sabia que ele com certeza não estava "pronto", nenhum de nós dois. Quanto mais eu pensava em tudo aquilo, mais difícil a situação parecia. Tudo o que nos restava para enfrentar uma viagem tão longa era apenas uma faca suja, uma pistola carregada com uma única bala e uma lanterna pequena, todos encontrados nos bolsos de nossos "sósias" mortos. Porém, teríamos de fingir por agora, até que se tornasse verdade ou mesmo que isso nunca viesse a acontecer.
-Sim... Vamos. - ele respondeu, mesmo que parecesse um pouco incerto.
Com sua confirmação, apenas afrouxei um pouco as rédeas e me inclinei sutilmente para a frente, tocando o animal com os pés sem muita força e sorrindo quando ele começou a andar. Assim que peguei um pouco de confiança, toquei o animal com um pouco mais de força e ele aumentou a velocidade, Carl se agarrou mais à minha cintura e eu não pude conter um sorriso triste. A lembrança do mundo antigo nos pequenos detalhes, era tão dolorida quanto alegre.
XXX
Balancei a cabeça pela milionésima vez nas últimas horas, mas minhas tentativas de manter minha visão fixa se mostravam cada vez menos eficazes. O vento gelado de início de Inverno parecia queimar meus olhos e a pele de meu rosto, mal sentia meus dedos ao segurar as rédeas e eu sequer saberia informar se a sonolência e a fraqueza que me dominavam aos poucos eram resultado do frio, das várias noites sem dormir ou da perca lenta, porém, constante de sangue pelo corte em meu abdômen.
Arrepios e tremores percorriam meu corpo sem cessar, se misturando à dor do corte que Carl pressionava por cima de minhas roupas, na tentativa de estancar o sangramento. Mesmo que estivesse gelada, eu ainda estava coberta de suor, sentia gotas grossas e frias escorrerem por minhas costas, provavelmente um dos sintomas da perda de sangue. Eu sequer sabia como estava sendo capaz de me manter sobre o cavalo.
-Lisse... V-vamos... Por favor, ainda não... N-não apague agora...! - o tom baixo e suplicante do garoto teria me feito chorar em outras circunstâncias, mas meus olhos pareciam ressecados demais pra isso.
-T-ten... Tando... - resmunguei a palavra entre uma tosse seca e meus lábios repletos de cortes pelo frio, minha garganta raspava e eu estava com tanta sede.
Carl não parecia muito melhor que eu, depois de algumas horas de viagem ele acabou me vencendo pelo cansaço e vestiu um de seus casacos em mim, alegando que eu precisava mais que ele. Entretanto, considerando o quão trêmulo o garoto parecia ao tentar me manter sobre o cavalo, não foi a ideia mais inteligente que ele já teve.
As roupas que roubamos dos Salvadores mortos não eram tão ruins, tecidos grossos e casacos quentes, sabia que provavelmente estaríamos bem pior sem elas, mas ainda sim não era o suficiente. A noite do ataque se foi, e o dia seguinte não nos trouxe qualquer esperança com as temperaturas diminuindo cada vez mais.
A geada que começara a cair a pouco tempo se misturava vagarosamente com a terra no chão da floresta, indicando que a temperatura havia caído para algo abaixo de zero com a chegada do amanhecer. Perdi a noção do tempo com toda a confusão durante a invasão, mas tinha a certeza de estávamos a horas viajando, com um cavalo e nenhuma proteção além de nossos casacos, sem qualquer comida ou bebida.
Eu sabia que a viagem completa duraria no mínimo umas vinte horas de carro, considerando que estávamos indo rumo ao litoral e o Reino ficava mais próximo dessa "nova" comunidade do que Alexandria, mas nosso transporte não era exatamente ortodoxo. Tive então de mudar meu plano inicial, dada a situação, e faríamos uma parada em uma cidade abandonada próxima.
Usando como guia a rodovia em que a estradinha de terra que passava atrás do Reino desembocava, seguiríamos por dentro da floresta, até uma cidadezinha que se localizava a pouco mais de vinte quilômetros da comunidade atacada a pouco. As árvores e arbustos seriam nossa proteção durante o caminho, assim, eu poderia ver a estrada para não nos perdermos e se algum inimigo ou mesmo o grupo de Rick cruzasse nosso caminho eu os veria primeiro. Bom, na verdade foi o que aconteceu, pouco mais de uma hora atrás.
Foi doloroso observar o trailer vindo de Alexandria cortar a estrada de volta ao lugar de onde veio, enquanto Carl e eu pudemos apenas nos esconder. O garoto havia ficado ainda mais silencioso depois disso, e eu sabia o motivo, ele havia visto o rosto perturbado de seu pai pela janela do veículo. O rosto de um homem que pensava ter acabado de enterrar o filho mais velho...
Meu plano tinha funcionado, estava correndo tudo bem, mas esse fato apenas me fazia sentir pior. Não queria fazê-los passar por isso, separar pai e filho de forma tão cruel era simplesmente hediondo demais, porém, era um maldito "mal necessário."
Com o passar das horas o cavalo, que em dado momento decidimos apelidar de Johnny, já apresentava sinais de cansaço e se tornava cada vez mais irritável e desobediente conforme os minutos iam e vinham sem descanso. O anoitecer engolia novamente o mundo, piorando ainda mais nossa péssima situação.
A essa altura a neve já deixava uma fina camada sobre nossas roupas, umedecendo aos poucos os tecidos grossos e tornando o frio cada vez mais insuportável. Deveríamos estar a cinco ou seis quilômetros da cidadezinha, sem a escuridão mesclada à neblina gelada eu provavelmente já seria capaz de avistar alguma placa ou construção ao longe, mas as dores e o cansaço sugavam cada vez mais minhas esperanças.
As árvores a minha frente pareciam se contorcer em uma dança estranha, talvez estivessem fazendo um cortejo fúnebre para nós, uma despedida final para dois cadáveres perdidos em um mundo morto. Meus olhos se perderam no chão da floresta, eu estava zonza e enjoada. Pensei até mesmo estar alucinando quando vi um dos cascos de nosso cavalo afundar em um buraco entre as folhas, fazendo saltar de lá a silhueta esguia de algo parecido com uma cobra, só é uma pena que Johnny tenha compartilhado de meu devaneio.
Meu coração saltou no peito e eu subitamente acordei de meu torpor, mas não a tempo suficiente. A serpente soltou algo como um guincho irritado e se preparando para o bote, mostrou suas longas presas ao equino a sua frente. Em seu desespero, Johnny relinchou alto e ergueu com selvageria as patas dianteiras.
Meus dedos gelados e dormentes por baixo das luvas roubadas não foram capazes de se agarrar como deveriam às rédeas, não tive tempo de gritar ou tentar me segurar à sela, meu corpo foi bruscamente jogado para trás e apenas um segundo depois o impacto veio.
Pensei que sentiria o chão áspero da floresta em minhas costas, talvez uma pedra ou outra, mas tudo o que acolheu meu peso foi o torso magro de Carl. Um grunhido fraco de dor chegou aos meus ouvidos e eu desejei mil vezes ter caído em uma cama coberta de espinhos e vidro quebrado. Merda...!
- C-carl...? - sussurrei, minha voz baixa saiu trêmula e assustada, lágrimas que eu achei não existirem mais encheram meus olhos.
- Vai ficar... T-tudo... Bem... - sua voz, ainda mais fraca que a minha, indicava que nada estava bem, ele parecia estar com tanta dor.
- D-desculpa... Me p-perdoa... - implorei, evitando mover um músculo sequer, as lágrimas desceram geladas pelos cantos dos meus olhos, uma das mãos do garoto fez um carinho levemente desajeitado na lateral de meu braço. Era culpa minha, eu tentei salvar a todos e cavei a cova de quem mais importa...!
-Shh... T-tudo... Bem... - sua voz mesmo incapaz de disfarçar a dor, ainda era tão suave e cautelosa que eu quase acreditei que tudo ficaria bem.
Porém, quando um grunhido soou próximo demais de nós, eu soube que era apenas ilusão pensar que ainda haveria uma salvação. Usando toda a minha pouca força restante, eu me apoiei em meus braços e saí de cima do garoto. Caí sem ar no chão gelado e recoberto de folhas em decomposição, não havia mais sinal de Johnny ou mesmo da serpente que o assustou, éramos apenas nós e os zumbis, esquecidos naquela maldita floresta escura. Ninguém viria nos resgatar, mortos não são procurados ou salvos, e o pior era saber que eu havia arrastado o garoto que eu amo para a morte.
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