Capítulo 15
Puxei com força os cadarços da bota pesada que peguei no guarda-roupa essa manhã, dando um nó forte e repetindo o processo com o outro pé. Com um suspiro cansado, coloquei uma faca escondida no cano da bota no pé direito ao terminar. Depois de confirmar a firmeza do coldre em minha cintura, embainhei o revólver que ganhei de meu pai e a pistola que consegui em Alexandria do outro lado.
Desci as escadas rapidamente, e um sorriso quase imperceptível surgiu em meu rosto quando encontrei Carl na sala. O garoto vestia um jeans de lavagem clara, uma camiseta branca com uma camisa xadrez em tons de verde claro por cima e o seu característico chapéu de xerife. Contrastava completamente com minhas roupas escuras, uma combinação monocromática de preto.
-Está parecendo uma versão em miniatura do Daryl. - Carl brincou, ajeitando o coldre com a Beretta 92FS na coxa e a AK-47 nas costas.
-Vou te mostrar a miniatura daqui a pouco. - o olhei feio lhe dando o dedo do meio, mas estava segurando uma risada, ele conseguia sempre me fazer sentir melhor de uma forma surreal.
-Sei... - ele murmurou com um sorrisinho que desapareceu pouco depois - C-como... Você está...? Tem certeza de que quer ir, dessa vez? Vamos gastar um dia inteiro de viagem até lá! Você não dormiu nada, e além disso não sabemos o que...! - continuou, subitamente preocupado, mas parei sua frase ao cobrir suavemente sua boca com uma de minhas mãos.
-Obrigada, por sempre cuidar de mim... De verdade... E eu não vou mentir, ainda não estou totalmente bem, acho que nesse mundo é até uma coisa impossível de se dizer... Mas eu preciso fazer isso. Eu sei o que te pedi ontem a noite, mas você não precisa realmente ir comigo se...! - foi a minha vez de ser interrompida, quando a mão morna e sempre cautelosa de Carl cobriu meus lábios.
-Você é tão teimosa! - ele sussurou, com um sorrisinho, me lançando aquele olhar. Aquele olhar, tão repleto de ternura e cuidado que fazia meu coração bater descompassado... Que fazia eu me sentir quase plena.
-Bom... Continue se esforçando, talvez algum dia consiga me fazer mudar de opinião. - brinquei, disfarçando a vergonha pelo rumo de meus pensamentos.
Mesmo que eu não estivesse pronta para admitir, nem mesmo em pensamento, do fundo de minha alma eu sabia que Carl estava conquistando um espaço muito maior em meu coração precariamente remendado do que deveria. Eu sentia como se ele aos poucos tomasse parte de minha alma para si, talvez fosse assustador pensar assim, mas a sensação era estranhamente boa.
-Talvez depois, eles devem estar nos esperando. - o garoto Grimes revirou o olho rindo e me estendeu o braço, eu aceitei sem pensar muito, sentindo um arrepio bom me percorrer com o contato macio de sua pele.
Após nos despedirmos de Padre Gabriel, que trazia Judith nos braços e cuidaria da criança durante a viagem, andamos rapidamente até a entrada de Alexandria. Os outros já estavam dentro do trailer e Rick nos esperava na porta. Maggie, Glenn, Abraham, Michonne, Rick, Paul, Daryl, Carl e eu, esse era o grupo que iria até Hilltop.
Um grupo grande, cheio de pessoas que podem se cuidar caso alguma surpresinha surja na viagem, ou mesmo em Hilltop. Eu confiava em meu primo porque o conhecia, mas eu não conheço as pessoas dessa comunidade, e agora tinha muito mais a arriscar do que a minha própria pele. Tinha uma casa a perder, amigos... E isso é precioso demais em um mundo morto.
Ao entrar no trailer, dei ao meu primo apenas um aceno de cabeça e um sorriso pequeno. Depois da noite anterior eu ainda não me sentia firme o suficiente para falar com ele, não sem desabar na frente dos outros, e tínhamos trabalho a fazer hoje.
Em silêncio, segui Carl até o fundo do trailer e me sentei ao seu lado, afundando no banco e fechando meus olhos cansados. Mesmo com a presença do garoto em meu quarto, não consegui encontrar a paz que sempre sentia com ele do meu lado.
Os pesadelos corroeram minha alma durante toda a maldita noite, cenas macabras que vem de brinde com o título de sobrevivente, e te perseguem até que você finalmente desista. Até que você se torne apenas mais um monstro...
Mamãe uma vez me disse, quando eu tinha pouco mais de cinco anos e tivemos que ir no enterro da vovó, que os vivos são mais perigosos que os mortos. Naquela época eu não acreditei, mas hoje sei o quanto ela estava certa ao dizer aquilo.
O máximo que um zumbi pode fazer é te matar, ou destruir a sua casa no processo, tudo é uma mera questão de instinto primitivo. As pessoas são diferentes, mais cruéis, te oferecem sorrisos reluzentes e destroem a sua alma na primeira oportunidade. Pessoas mentem...
Eu gostaria de dizer que sou diferente, de gritar aos quatro ventos que sou melhor que qualquer pessoa mal intencionada lá fora, mas todo ser humano já nasce contaminado. A bondade se esvai quando quem você ama é ameaçado, e por Alexandria, por Carl, eu sei que abriria mão da minha humanidade.
XXX
Abri os olhos de repente quando o trailer freou bruscamente, me fazendo saltar no banco como uma boneca de pano. Levei alguns segundos para entender que só não havia sido jogada no chão porque Carl me segurou. Acabei adormecendo depois de algumas horas de viagem, provavelmente no início da tarde, acordar de forma tão brusca no final do dia me deixou com dor de cabeça.
O garoto me olhou assustado, ainda firmemente abraçado a mim, até que eu fui capaz de me afastar para entender o que estava acontecendo. Senti meu coração errar uma batida ao notar sangue na pista, havia um carro capotado pouco a frente de nós, na beira. Alguns poucos mortos se reuniam em volta do veículo, outros estavam presos nos destroços do carro, demonstrando que haviam sido a causa do acidente.
-Isso é algum truque?! Uma armadilha?! - Rick apontou sua arma para meu primo enquanto dava ré no trailer, Paul ergueu os braços assustado.
-Eu não sei o aconteceu ali, não tem nenhuma armadilha, ninguém na comunidade sequer sabia da vinda de vocês. Tudo o que eu sei é que aquele carro é um dos nossos e preciso verificar se tem alguém precisando de ajuda, antes que anoiteça. - Paul tentou explicar cuidadoso, olhando preocupado o tom alaranjado do sol poente no horizonte, mas Rick ainda não parecia convencido.
Um mar de olhos desconfiados estava sobre meu primo, ninguém acreditava nele, e eu odiei toda a situação. Me lembrava a forma como todos me olhavam quando cheguei em Alexandria, me viam como um aracnídeo asqueroso preso em um copo de vidro. Cansada de toda aquela palhaçada, me levantei ignorando os protestos de Carl e em poucos passos, estava entre meu primo e a arma de Rick.
-Eu vou descer e verificar se há sobreviventes, podem ter se escondido em uma dessas lojas próximas. - falei determinada, olhando Rick nos olhos, o encarando até que ele abaixasse a maldita arma.
-Não vai sozinha, iremos com você. - o mais velho anunciou por fim, também não confiava totalmente em mim, assenti contrariada.
Rick desceu do trailer e eu o segui de perto, puxando a faca da bota e cravando a lâmina na lateral de um monstro que cambaleou em minha direção. Me aproximei do carro com cautela, Jesus veio rapidamente até mim, mas não havia ninguém ninguém dentro do carro. Ele suspirou um pouco mais aliviado.
-Aqui tem um rastro. - a voz de Daryl chamou minha atenção, me aproximei do mesmo e encontrei a trilha de sangue fresco de que ele falava.
Seguimos a trilha até um escritório de advocacia próximo, Rick assumiu a dianteira e bateu na porta, mas não obteve uma resposta. Ele olhou desconfiado para meu primo e tirou uma corda do bolso do casaco, suspirei irritada.
-O que está fazendo...? - Paul perguntou, indignado.
-Vamos buscar seus amigos, você vai ficar aqui, com alguém de olho. - Rick explicou enquanto amarrava meu primo, rangi os dentes e me forcei a ficar quieta, Carl apoiou uma mão em meu ombro compreensivo.
-Se apressem então, meus amigos podem estar em perigo. - Paul pediu preocupado e se afastou da porta, Maggie apontou uma arma para a cabeça dele se disponibilizando para ficar de vigia, suspirei irritada e passei por Rick entrando na frente.
Com a faca em punho, caminhei cautelosamente pelo hall do escritório escuro, Daryl fechou cuidadosamente a porta atrás de nós e começamos a avançar devagar pelos corredores estreitos. Grunhidos mal localizados encheram o ambiente e eu senti meu sangue esfriar, detesto lugares escuros e ainda mais quando estão cheios de zumbis.
Escolhi um dos corredores e o grupo se separou, Abraham e Carl vieram em meu encalço. Estava andando com cautela quando os gritos de uma voz masculina assustada invadiram meus ouvidos, lancei um rápido olhar para o ruivo e o garoto e começamos a andar mais rápido.
No final do corredor, três silhuetas se moviam na pouca iluminação, um dos sobreviventes que procurávamos tentava desajeitado se livrar de dois zumbis. Sem pensar muito, avancei no primeiro monstro, tendo um pouco de dificuldade para cravar a faca e sua face, mas finalizando o mesmo na terceira tentativa.
Carl finalizou o segundo monstro e Abraham ajudou o homem ferido a andar, estávamos voltando pelo corredor quando uma figura alta surgiu de repente a minha frente. Meu primeiro reflexo foi erguer a faca, mas tremi dos pés à cabeça quando percebi que era apenas Daryl, respirei fundo assustada e afastei a faca de seu pescoço.
-Vamos logo, baixinha. Temos que dar o fora daqui, já encontramos os outros. - Daryl avisou baixo e eu assenti um pouco tonta, correndo atrás dos outros de volta à entrada.
Assim que saímos do escritório Paul suspirou aliviado ao ver seus amigos vivos, Rick caminhou até ele e o soltou das cordas com calma, era sua forma de pedir desculpas. Talvez eu não gostasse da forma paranóica como Rick sempre agia, mas sabia de tudo o que eles passaram para chegar até Alexandria, eu não poderia julgar um homem por proteger seu lar e família.
XXX
Mais algumas horas de viagem se seguiram e a noite chegou e se foi, dando lugar a mais uma manhã nublada. Acordei um pouco mais descansada naquela manhã, mesmo que estivesse com dor em todo lugar por ter dormido sentada, o calor gentil e os carinhos reconfortantes de Carl em meus cabelos me guiaram a um sono quase tranquilo. Mesmo que alguns pesadelos ainda estivessem lá...
Os integrantes de Hilltop que resgatamos vieram no trailer junto conosco, o carro em que estavam foi perda total. O homem ferido teve o machucado na perna limpo e enfaixado no caminho, um dos resgatados era médico e com minha ajuda e de Maggie uma sutura foi feita no ferimento. O clima ficou um pouco mais leve quando os sobreviventes demonstraram serem pessoas boas, Rick até mesmo parecia um pouco mais otimista quanto à nova comunidade.
-Ei garota, posso te fazer uma pergunta? - Abraham perguntou em dado momento, o ruivo com certeza nunca foi a pessoa mais sutil da Terra, sabia que alguma besteira estava por vir.
-Que seria...? - incentivei, curiosa, levantando a cabeça do ombro de Carl que bebia água desinteressado na conversa.
-Quando vão assumir o namoro? Afinal, Carl é um garoto de família, você deveria pelo menos pedir a mão dele a Rick. - o ruivo falou com um sorriso de canto, fiquei sem reação, totalmente paralisada.
Um silêncio pesado se instalou no trailer, todos os olhares estavam voltados a nós e eu senti minhas bochechas queimarem de vergonha. Estava prestes a gaguejar alguma resposta envergonhada, mas a tosse de Carl me impediu antes que eu o fizesse. Ele tinha engasgado com a maldita água!
O garoto começou a tossir violentamente, vermelho como um pimentão, e o trailer inteiro foi inundado com um mar de gargalhadas. Daryl ria baixo, me lançando um olhar divertido, já Abraham e Glenn gargalhavam abertamente se dobrando nos bancos com a intensidade da risada. Maggie disfarçava com a mão sobre a boca, mas eu sabia que também estava rindo, e pude até mesmo ver pelo retrovisor que Rick e Michonne se divertiam ao observar situação de mãos dadas. Meu primo observava tudo em silêncio, mas me lançava aquele típico sorrisinho de zombaria, até mesmo os sobreviventes resgatados acharam graça da situação.
Quando Carl finalmente conseguiu parar de tossir e as gargalhadas cessaram, o garoto ainda envergonhado puxou o chapéu para baixo e cobriu o rosto, mas discretamente envolveu minha mão com a dele e as escondeu entrelaçadas no bolso da camisa.
Senti meu coração errar uma batida no peito com sua ação, mas não me afastei, apenas me aconcheguei melhor no banco e fechei os olhos para não ter que encarar ninguém. Não sabia o que fazer com toda essa situação e teríamos que conversar depois, mas agora apenas o carinho suave que o garoto fazia nas costas de minha mão importava.
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