Capítulo 11
Não sei quanto tempo se passou depois que eu apaguei pela segunda vez, mas acordei com aquela dor de cabeça irritante de quando se dorme demais. Carl estava acordado dessa vez, lendo quadrinhos na maca ao lado da minha, e dessa vez foi mais cuidadoso quando percebeu que eu estava acordada. Ele se levantou da cama e caminhou cauteloso até mim, como se tivesse medo de afugentar um pequeno coelho, e isso me fez rir internamente.
-Como está se sentindo...? - ele perguntou baixo, se sentando na cadeira ao lado da minha cama enquanto me analisava com olhos preocupados.
-Como um coelho... Não precisa ter tanto medo de me assustar... - respondi rouca, minha garganta ressecada arranhava ao falar, o corte em meu colo ainda doía como o inferno.
-Não quero que desmaie de novo. - ele falou desviando o olhar e me entregando uma garrafa d'água, Carl estava um pouco estranho.
-Estou bem agora... Bom, na verdade, não sei exatamente o que estou fazendo aqui... - murmurei um pouco confusa, tomando um pouco da água - Só lembro do seu quarto e então eu não... Sei... É como se faltasse um pedaço do dia... - meu tom era baixo enquanto eu sentia minha cabeça começar a doer, imagens estranhas se projetavam em minha mente.
-Carl, como ela...? - ouvi a voz de Rosita um instante antes de a garota entrar pela porta da enfermaria.
Rosita... Uma cena desconexa lentamente preencheu minha mente, Rosita estava assustada, com uma faca colada em seu pescoço. Alguém estava segurando a faca... Alguém... Quem...?
Ele...!
Minha respiração travou na garganta e eu fechei os olhos com força quando a dor no corte abaixo de meu pescoço aumentou, latejando, ao mesmo tempo que todos os acontecimentos do dia anterior giravam como um redemoinho sem controle em minha mente. A saída de Alexandria, os zumbis atrás da tela, o bebê transformado no armazém, a viagem de volta, os Salvadores na estrada, a batida... E por fim... As últimas palavras de Simon antes que eu enfiasse uma bala em sua testa.
" Seu querido irmãozinho e aquele seu priminho... Morreram abraçados, gritando e gemendo como os malditos viadinhos que eram... E te garanto que eles sofreram até o último segundo, assim como você também vai. "
Com aquela lembrança, minha respiração lentamente desacelerou e eu amoleci na cama, tudo se tornou uma mistura distante de vozes chamando meu nome e rostos borrados aparecendo e desaparecendo do meu campo de visão.
As lágrimas rolaram quentes por minhas bochechas frias, mas eu não tinha força suficiente para sequer soluçar. Aquela dor conhecida invadiu meu coração e o corroeu como ácido, agora eu tinha a certeza, toda a minha família estava morta. E talvez eu também quisesse estar...
XXX
Chegando ao meu limite, recusei a próxima colherada da comida que Carl me oferecia, eu não estava com a mínima fome e alguém com certeza precisava mais daquela comida do que eu. O moreno suspirou e colocou o prato sobre o criado mudo, aquela expressão irritante de preocupação novamente tomou sua face e eu senti meu estômago revirar quando ele recomeçou pela milésima vez aquele maldito sermão.
-Já fazem quatro dias, Clarisse... Quatro dias que você não come mais do que duas colheradas por dia. Eu sei que você está triste, mas você não pode...! - ele começou a falar.
Estava pisando em ovos com aquele tom cauteloso e condescendente de pena que me deixava ainda mais irritada, interrompi o garoto perdendo a paciência. Denise me disse sem querer na noite anterior que ele também não andava comendo direito porque não queria se afastar da minha maca, onde eu passava a maior parte do tempo dormindo, era uma hipocrisia do caralho que ele não seguisse os próprios conselhos.
-Parem todos vocês de dizer o que caralhos eu posso ou não fazer, como se eu fosse a droga de uma doente mental! - gritei, sem saco pra tudo aquilo.
Carl arregalou os olhos, mas não gritou de volta, só pareceu ainda mais preocupado. Eu queria desesperadamente que ele parasse de me olhar assim, que parasse de aceitar as minhas grosserias e gritasse comigo, que me dissesse que eu não merecia a bondade de ninguém.
Eu queria que ele gritasse comigo, que me tratasse com indiferença, que me batesse ou xingasse, qualquer coisa para me ferir porque sentia que merecia uma punição. A culpa estava me dilacerando por dentro, e todo o carinho e cuidado dos outros só fazia eu me sentir mais e mais como um monstro. Não consegui salvar minha mãe, não consegui salvar meu pai, meu irmão também está morto, e eu continuo precisando ser salva.
-Clarisse, eu sei como...! - Carl tentou novamente, esticando a mão para envolver a minha, me esquivei contendo uma exclamação de dor com o movimento brusco.
-Não! Não comece com essa merda de "eu sei como você está se sentindo"! - gritei descendo da cama aos tropeços, quase caindo ao bater na parede - Eles morreram porque queriam me proteger...! P-porque queriam que eu sobrevivesse... Mas eu não quero "sobreviver" se esse é o maldito preço!!! - minha voz falhou saindo estrangulada e chorosa enquanto eu perdia o controle das lágrimas.
-Eles se importavam com você, eu me importo com você! Só quero que você fique bem... - o garoto falou devagar, sua última frase me atingiu como um soco no estômago.
" Só quero que você fique bem... O resto não importa", foi a última coisa que meu irmão disse antes de entrar naquele caminhão e nunca mais voltar. Meu coração acelerou e eu perdi a capacidade de respirar, a ideia de ver Carl morrer por minha causa fez um medo aterrador arder em minhas veias.
-Eu não quero que você se importe comigo, seu idiota! Não quero sequer que fique perto de mim, vai embora! Sai daqui, Grimes! Eu não quero mais ver você, entende isso de uma vez!! - berrei jogando um vaso próximo na parede, mas senti algo dentro de mim se quebrar com o olhar frio e magoado que o garoto direcionou a mim.
Carl balançou a cabeça devagar, saindo da enfermaria a passos duros sem olhar para trás, e eu caí de joelhos apenas um segundo depois. Meus soluços preencheram a enfermeira vazia e eu me senti ainda pior sem ele lá, mas sabia que aquele era o único jeito. Eu precisava proteger ele... Porque sem que eu sequer percebesse, Carl havia se tornado importante demais para mim.
XXX
Em um suspiro lento e cansado, a fumaça escorreu branca de meus lábios entreabertos. Não havia contado quantos cigarros já tinha fumado, mas sentia o maço quase vazio enfiado no bolso da camisa que Carl me emprestou antes da nossa discussão. Haviam se passado dois dias desde a minha briga com o garoto, ele não ousou voltar a enfermaria depois de tudo o que eu disse, e por mais que eu soubesse que era melhor assim... Ainda sentia a falta dele.
A chuva do lado de fora caía grossa contra o telhado da enfermaria, encharcando as ruas vazias e silenciosas de Alexandria, o frio mantinha as pessoas em casa. Jack estava deitado sobre minhas pernas, com um semblante abatido, parecia compartilhar do meu luto.
As coisas ainda estavam um pouco confusas em minha mente, uma dor latente e constante ainda fazia sua presença no corte abaixo de meu pescoço e em minha alma, mas a verdade é que eu já havia me acostumado a ela. Dando um último trago em meu cigarro, apaguei o mesmo no cinzeiro ao lado da cama e fechei os olhos afundando no travesseiro.
Me sentia completamente esgotada, como uma maldita caixinha de suco vazia. Meu irmão estava morto, eu não poderia fazer mais nada a respeito, e isso me enfraquecia. Estava me sentindo sem rumo, sem alma, apenas mais um maldito cadáver que ainda caminha por esta terra banhada em sangue e sofrimento. Sozinha...
Abri os olhos de repente com o barulho da porta se abrindo, mas meu corpo tenso relaxou entre os lençóis quando notei que era apenas Enid. A garota estava encharcada da cabeça aos pés, os cabelos úmidos grudavam em suas bochechas e testa.
-Vai acabar na maca ao lado da minha desse jeito... - resmunguei inexpressiva, a garota revirou os olhos e caminhou até a cadeira ao lado da minha cama, onde Carl geralmente ficava. Merda, por que eu penso tanto nele...?
-Eu gosto da chuva, ajuda a arejar a mente. - explicou ao se sentar cruzando os braços.
-Escuta, se Carl te mandou aqui para me vigiar... - comecei, mas ela me interrompeu com um gesto de mão.
-Ele não sabe que estou aqui, na verdade estava bem emburrado quando passei na casa dele, disse que você o expulsou da enfermaria. - Enid arqueou uma sobrancelha, foi minha vez de revirar os olhos.
-Ele estava dormindo nessa cadeira desde que voltamos, quatro noites em uma maldita cadeira... Foi a gota d'água quando Denise soltou sem querer que ele não estava comendo enquanto eu estava apagada. Eu não queria que ele ficasse doente por minha causa! - falei com sinceridade, admitindo pela primeira vez que estava preocupada com o garoto, Enid bufou.
-Deveria ter dito isso a ele! Carl disse que você o chamou de idiota, que pediu para ele ficar longe de você... Ele ficou realmente magoado com isso, mesmo que ele nunca vá admitir. - a garota explicou em tom neutro, senti meu coração pesar no peito.
-Ele não teria me escutado, continuaria se sacrificando por mim. Foi melhor assim. - retruquei simplista, mesmo que não acreditasse em nada do que estava dizendo.
-Não, não foi, e você sabe disso. - Enid falou, balançando a cabeça devagar - Eu sei que nada do que eu disser vai diminuir a sua dor, porque eu também perdi minha família antes de chegar aqui. Naquela época eu pensei que estava sozinha no mundo... E que merecia isso... Mas eu encontrei pessoas aqui, pessoas por quem lutar... Que lutariam por mim... Você não está sozinha, Clarisse, não precisa estar. - ela finalizou com um sorriso melancólico, e não esperou minha resposta antes de bagunçar meu cabelo com a mão úmida e desaparecer novamente na chuva.
Afundei novamente no travesseiro, sem saber o que pensar sobre tudo aquilo.
XXX
Na manhã seguinte à minha conversa com Enid, Siddiq me deu alta da enfermaria e eu finalmente pude sair daquela maca. O corte em meu colo estava cicatrizando muito lentamente, meu corpo ainda estava fraco depois de tanto tempo lá fora.
A ideia de voltar para a casa de Rick e ter que cruzar com Carl o tempo inteiro não me atraia muito. Uma voz irritante em minha mente ficava repetindo o tempo inteiro que eu devia desculpas ao garoto, mas a verdade é que eu estava apavorada com a chance alta de ele me desprezar.
Agi como uma imbecil com o garoto que tentou cuidar de mim e tinha consciência disso. Me senti como um lixo humano no momento em que ele saiu da enfermaria com aquela expressão magoada, e quase, quase fui atrás dele no meio da noite. Porém, a minha covardia me deteve de consertar as coisas.
-Vamos lá, garoto... - murmurei acariciando a pelagem macia de Jack, enquanto caminhava devagar até a casa dos Grimes.
Abri a porta com cuidado, receosa até mesmo em fazer barulho, ainda não estava pronta para falar com Carl. Atravessei a sala espaçosa com as mãos nos bolsos, Jack me seguia abanando o rabo, parecia gostar do lugar.
Quando subi os primeiros degraus da escada, o som do choro de uma criança imediatamente invadiu meus ouvidos e senti o sangue congelar nas veias quando o rostinho doce de Judith veio a minha mente. Subi o resto da escada pulando dois degraus por vez e ignorei a tontura que me invadiu quando cheguei no corredor, correndo até o quarto da garotinha pronta a defendê-la de qualquer coisa.
Porém, um suspiro de alívio me invadiu quando entrei no quarto e tudo o que encontrei foi uma loirinha chorosa, tentando alcançar um bichinho de pelúcia caído no chão pela grade do cercadinho. Me abaixei, soltei o bracinho da criança do cercado e peguei Judith no colo sem pensar muito, entregando o bichinho de pelúcia que ela queria em suas mãos pequenas.
-Aqui está, madame! Deseja mais alguma coisa? - brinquei, segurando a criança com cuidado para que ela não encostasse no corte, Judith riu parecendo genuinamente feliz em me ver e senti meu coração derreter com isso.
-O que está fazendo aqui? - uma voz masculina chamou minha atenção de repente, e senti meu coração parar ao me virar para encontrar o dono da mesma.
Carl estava parado na porta, me encarando seriamente enquanto gotas de água escorriam de seus cabelos úmidos até o pescoço e ombros. O garoto havia aparentemente saído às pressas do banho, já que a espuma branca do sabonete ainda se espalhava por seu tronco desnudo e tudo o que cobria a parte inferior de seu corpo era uma toalha presa precariamente em seus quadris.
As mechas do cabelo escuro e escorrido cobriam o ferimento de bala em seu rosto, deixando apenas um fina tira da pele rosada abaixo do olho perdido à mostra. Carl era magro e alto, o abdômen sutilmente trincado era definido na medida certa, e o observando assim eu só conseguia pensar no quanto Carl era bonito. Voltei a mim, porém, quando meu olhar subiu novamente ao seu rosto e encontrei apenas a indiferença em seu olhar azulado, ele parecia ainda mais impaciente e irritadiço enquanto esperava uma resposta.
-O-ouvi ela chorar... Pensei que... Q-que pudesse ter acontecido alguma coisa. - me forcei a falar, minha voz saiu falhada e entrecortada, senti minhas mãos subitamente muito suadas.
-Certo, obrigado. Já pode ir. - ele falou, curto e grosso, sua frieza me fez estremecer com a sensação amarga de rejeição.
Assentindo derrotada, não tive coragem pra iniciar uma discussão, ajeitei Judith em meus braços e me preparei para colocar a garotinha novamente no cercado. Eu só não esperava que ela discordasse tanto dessa ideia, o suficiente para se agarrar a mim choramingando. Uma dor lancinante me atingiu quando os dedos da mais nova agarraram minha pele com força por cima do curativo em meu colo.
Eu cambaleei com a onda de dor, mas contive a vontade de gritar mordendo meus lábios com força. Prendendo a respiração eu coloquei a garota com cuidado no cercado, forçando um sorriso dolorido para que ela parasse de chorar, algumas lágrimas se acumularam em meus olhos e senti meus lábios sangrarem, mas acariciei de leve as mechas loiras da criança antes de sair do quarto sem ar.
-Ei, você está bem...? - Carl perguntou um pouco menos rude quando apoiei as costas na parede do corredor fechando os olhos com força, um lampejo de preocupação brilhou em seu olhar.
Neguei lentamente com a cabeça antes de abrir os olhos, as lágrimas correram soltas por minha face antes que minha voz saísse em uma súplica abafada.
- Me desculpa...
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro