Capítulo 1
O cheiro podre do sangue que cobria minha pele desnuda não me incomodava mais, meu corpo parecia leve e gelatinoso, mole. Meus passos eram incertos e cambaleantes, me fazendo parecer apenas mais um dos monstros perdidos nesse mundo decadente e apodrecido. Tomei mais um gole da bebida amarga contida na garrafa em minha mão, o ardor em minha garganta já não era mais suficiente para me fazer parar, mas me fazia esquecer momentaneamente a fome.
Meus seios estavam completamente descobertos na falta de qualquer pano que cobrisse meu tronco magro e minha calça ainda permanecia aberta, mas eu não poderia me importar menos. Me sentia como um fantasma agora, incorpóreo e sem rumo, vagando a esmo pelas ruínas do meu antigo mundo brilhante. A letra de Dance and Sing do Bright Eyes era entoada fracamente por meus lábios ressecados, não me lembrava de onde conhecia aquela música, mas a havia escolhido como tema para meus minutos finais.
Cambaleando em meio àquela floresta desconhecida, eu balançava o revólver carregado com uma única bala, enquanto movia os braços para frente e para trás em uma dança desengonçada. Atiraria em minha própria cabeça assim que terminasse de cantar a letra, e comecei a rir ao me lembrar disso. A situação inteira me parecia simplesmente hilária de repente, sem que eu sequer soubesse o motivo.
Tudo parecia distante e embaçado perante meus olhos e então a música acabou, levei a arma sorrindo até minha cabeça, meu dedo encontrou o caminho do gatilho e eu sabia que havia chegado ao fim do livro da minha vida. Meu dedo trêmulo já pressionava lentamente o gatilho quando uma cena de repente atraiu minha atenção, tinham pessoas se movendo... Não... O que estava acontecendo...? Pisquei algumas vezes tentando enxergar mais nitidamente, tinha um garoto mais ou menos da minha idade alguns metros a frente e estava cercado por vários mortos-vivos, lutava sozinho com eles. Ele estava perdendo, o que esse idiota estava tentando? Suicídio?!
Foi então que o garoto caiu no chão, os mortos acompanharam sua queda e meu sangue congelou nas veias, tinha um dos monstros perto demais e...
POW!
Um tiro seco preencheu meus ouvidos e o zumbi prestes a morder o garoto caiu imóvel no chão, levei alguns segundos para notar meu braço esticado, ficando surpresa ao perceber que o tiro tinha partido da minha arma. Até mesmo o mínimo esforço para raciocinar estava sendo demais para mim, e quando tentei novamente focar a visão acabei ficando tonta demais, já fazia muito tempo que eu não comia nada.
Outros tiros ecoaram secos pela floresta no instante seguinte, mas não pude ver nada do que acontecia pois minha vista tinha voltado a ficar embaçada, um zumbido alto demais preencheu meus ouvidos e o mundo parecia tão irreal agora.
Sequer senti quando meu corpo fraco despencou em meio aos galhos e folhas secas até que a terra estivesse em minha boca. A última coisa que me lembro é de ter visto um chapéu de xerife, e então a escuridão me acolheu em seus braços como uma velha amiga.
XXX
A nuvem de entorpecimento que rondava minha mente lentamente se dissipou e meus olhos se abriram devagar, estava claro, muito claro. Tentei abrir meus olhos pesados algumas vezes, levando algumas tentativas para conseguir completar a ação, a claridade do ambiente irritou minhas íris, me obrigando a apertar os olhos para tentar entender onde estava.
Tentei mover minhas mãos, mas meus braços permaneceram no lugar, amarrados à cabeceira empoeirada de uma cama velha. Quando minha visão finalmente se tornou confiável, encontrei um quarto sujo e revirado a minha volta, o pânico imediatamente me atingiu quando percebi que não tinha ideia de onde estava.
Tentei me debater na cama velha, mas fui obrigada a parar quando o cansaço e a fraqueza percorreram meu corpo inteiro, se concentrando principalmente em meus braços e me deixando enjoada de repente. Prendi a respiração por algum tempo tentando não vomitar, mas isso não foi suficiente.
Joguei meu corpo cansado para a beirada da cama, sem conseguir levantar por estar presa, e foi então que um garoto desconhecido entrou apressado em meu campo de visão com um balde velho em mãos, me impedindo por pouco de sujar ainda mais o piso. Eu odiava vomitar, então deitei novamente a cabeça no travesseiro frustada quando finalmente consegui parar. Meu estômago agora ainda mais vazio doía como o inferno.
-Está melhor...? - o garoto murmurou após largar o balde em um canto qualquer, mantendo seu olhar desconfiado sobre mim enquanto apontava uma pistola pra minha cabeça. Ele era magro, mas parecia desnutrido de menos para um sobrevivente... Talvez tivesse um grupo...?
-Estou ótima... Sempre quis ser amarrada na cama por um desconhecido... - murmurei fracamente com minha voz saindo arranhada, tossindo em meio a uma risada sem humor por estar com a garganta seca.
-Eu vou pegar água... Não faça nenhuma gracinha. - o garoto resmungou irritado com minha resposta indecente.
O desconhecido caminhou mancando até uma mesa próxima sem tirar os olhos de mim e pegou uma garrafa d'água de dentro de uma mochila. Ele tinha um pedaço de pano sujo sangue amarrado à perna esquerda, e imediatamente me preocupei com a ideia de ser uma mordida. Ficar amarrada no mesmo quarto que um zumbi adolescente não é exatamente a minha ideia de encontro romântico, mas escondi meu medo com o sarcasmo.
-Como vou saber que não está tentando me envenenar...? Minha mãe sempre me disse para não beber do copo de desconhecidos... - falei com um sorriso torto, não estava realmente com medo de ser envenenada, mas a ideia de irritar um pouco mais o garoto de semblante sério e impaciente me pareceu tentadora demais.
-Que sentido faria te trazer até aqui só para te esperar acordar, e então te envenenar? - ele perguntou arqueando a sobrancelha, só notando minha ironia quando uma risada baixa escapou de meus lábios - Vai beber logo isso ou quer que eu jogue fora?! - resmungou irritadiço, me fazendo revirar os olhos e finalmente aceitar a água.
Somente quando o líquido fresco tocou meus lábios é que percebi o quanto estava com sede, bebendo tudo em poucos instantes sem sequer me preocupar com a presença do garoto. Depois dessa bebi mais uma garrafa inteira, o garoto desconhecido ainda mantinha sua expressão séria, mas pacientemente me ajudou a beber a água sem reclamar mais. Quando finalmente me vi satisfeita ele guardou a garrafa vazia onde tinha pego e se sentou numa cadeira ao lado da porta, me observando de braços cruzados.
-Obrigada... - murmurei apenas, analisando meu corpo e franzindo o cenho ao notar estar vestindo uma camisa de flanela cinza que eu não tinha ideia de quem era, mas deduzi ser do garoto desconhecido - Pode me dizer pelo menos quem é você e onde eu estou...? - decidi perguntar por fim, confusa com as lembranças turvas em minha mente.
-Não se lembra de estar na floresta...? Nem do tiro...? - ele perguntou cauteloso, franzi o cenho tentando forçar a memória.
-Eu não sei... E-eu... - perdi o ar, começando a me lembrar aos poucos, flashes da noite anterior aos acontecimentos na floresta invadiram minha mente sem aviso e um calafrio grosseiro percorreu meu corpo ao lembrar.
Quando a infecção começou eu ainda era uma criança, fui obrigada a observar enquanto o mundo mágico da minha infância ruía inocentemente diante de meus olhos, assistindo aterrorizada enquanto os contos de fada eram substituídos por um maldito filme de terror real demais.
Estava com minha família quando a era de caos se iniciou, mas todos eles se foram com o passar dos anos, suas vidas tão preciosas para mim se tornaram em memórias fúteis e empoeiradas com o tempo, e eu passei a vagar tendo meu cachorro como única companhia pelo silêncio ensurdecedor que engoliu meu amado mundo.
Na noite anterior, estava enrolada nos cobertores velhos que havia encontrado em uma casa abandonada no meio da floresta, pronta para tentar descansar pelo menos um pouco até a manhã seguinte enquanto meu cão se mantinha deitado sobre minhas pernas. Eu só não esperava que um homem estranho invadisse a casa. O desgraçado me agarrou na hora, sequer parecia interessado em roubar minhas coisas, ele só queria o que estava entre as minhas pernas.
Eu gritava e me debatia chorando como uma criança enquanto o desgraçado rasgava e abria as minhas roupas sem demonstrar qualquer misericórdia, me chamava de vadia o tempo inteiro e ameaçava me matar se eu não ficasse quieta, rindo como um maldito demônio. Meu fiel companheiro e único amigo tentou me defender, cravando corajosamente seus dentes no braço do homem, mas foi arremessado com força contra uma parede e acabou desacordado.
Sempre odiei a sensação de matar qualquer ser vivo, mesmo um simples inseto, mas esse mundo não dá escolhas a ninguém. No momento exato em que o infeliz que tentava abusar de mim se descuidou, eu retirei uma faca escondida do cós da calça e sequer hesitei antes de cravar a lâmina em seu pescoço, rasgando profundamente sua garganta e me banhando com seu sangue.
Quando seu corpo finalmente caiu morto sobre mim eu já não sentia mais nada, usei uma corda para amarrar o desgraçado em uma árvore e observei bebendo tranquilamente a garrafa de whisky que encontrei em suas coisas enquanto ele se transformava.
Depois disso, soltei meu cão e fiz com que fosse embora, peguei meu revólver sem me importar em vestir uma roupa e saí caminhando sem rumo pela floresta, até estar bêbada o suficiente para ter coragem de dar um fim a meu próprio sofrimento, encontrar o garoto naquele momento foi apenas uma coincidência.
Levei longos minutos para conseguir recuperar o fôlego e conter a vontade de chorar e gritar até perder a voz, o garoto abriu a boca para dizer algo, mas então pareceu entender que eu precisava me recompor e esperou em silêncio até que eu o fizesse. Agradeci mentalmente por ele não ter dito nada até que eu engolisse o choro.
-Sim... Eu me lembro... Você não foi... Não foi mordido, não é...? - perguntei baixo em um tom receoso.
Observei o garoto a procura de qualquer sinal de transformação, mas respirei aliviada quando ele negou com a cabeça e me mostrou que o ferimento em sua perna era apenas um corte.
-Estava procurando suprimentos não muito longe daqui, alguns errantes me cercaram na estrada e eu bati o carro. Foi assim que consegui o corte. - ele explicou.
Na verdade o corte não tinha uma aparência muito boa, era largo e muito provavelmente estava começando a infeccionar devido à coloração avermelhada da pele em volta, aquilo deveria estar doendo como o inferno, mas no final de tudo isso não era da minha conta.
Por mais que aquela porcaria de senso de altruísmo restante do velho mundo ainda estivesse em mim, não é como se o garoto fosse simplesmente confiar em uma estranha para cuidar de um machucado assim.
-Não fui mordido, mas eu teria sido sem a sua ajuda... Então achei que seria uma boa forma de retribuir não te deixando jogada no chão daquele jeito... - ele respondeu sem graça e coçou a nuca - Sou Carl Grimes, e obrigado por salvar minha vida. - se apresentou arrumando o chapéu na cabeça.
Carl era bonito, apesar da expressão fria. Tinha cabelos escuros que caiam lisos até seus ombros e cobriam parte sua testa, um curativo em seu rosto cobria um de seus olhos enquanto o outro permanecia a mostra, sua única íris tinha um tom profundo e hipnotizante de azul claro que parecia ser capaz de enxergar todos os pecados em minha alma impura. Um chapéu de xerife jazia imponente sobre sua cabeça, e só então me lembrei de ter o garoto me carregando pouco antes que eu desmaiasse.
-Sou Clarisse, Clarisse Hale. Obrigada por ter me trazido até aqui, mas... Pode me soltar agora? - digo arqueando uma sobrancelha, o garoto ficou inexpressivo.
-Ainda não confio em você. - respondeu apenas, como se comentasse o clima, arqueei uma sobrancelha e o encarei.
-M-mas, você acabou de...! E por que eu deveria confiar em você?! Está sendo bonzinho agora, mas quem me garante que você não vai enlouquecer mais tarde e tentar me matar? - questionei com firmeza, tentando não apresentar vulnerabilidade, mas a verdade é que estava apavorada.
-Torça para que eu não surte. - falou com frieza e sem esperar uma resposta me deu as costas, saindo do quarto e fechando a porta que não podia estar trancada porque tinha a fechadura arrebentada. Filho da mãe!
XXX
Depois da saída do garoto, as horas se arrastaram com a mesma velocidade que um zumbi que perdeu as pernas, muito lentamente. A casa de localização desconhecida por mim estava mergulhada em um silêncio insuportável, nenhum mínimo barulho, e a angústia de que aquele idiota tivesse dado no pé e me largado amarrada alí, como uma porcaria de animal, estava me consumindo como fogo em uma merda de monte de palha. O Sol já estava se pondo, a pouca luz do dia restante iluminava fracamente o quarto pela janela atrás de mim
Primeiro passei a tentar me soltar da forma mais silenciosa que podia, forçando as cordas e tentando soltar meus pulsos apenas com isso, sem resultados. O tempo passou, meus pulsos ficaram doloridos e vermelhos, e eu já estava puta pra caralho. Desistindo dessa droga de ideia de fugir silenciosamente, deslizei meu olhar com vagareza pelo quarto bagunçado, analisando cada porcaria jogada por aí como uma ajuda em potencial. Nada estava perto o suficiente, maldito garoto esperto.
Jogando a cabeça pra trás, cerrei os dentes com força para não gritar de raiva, se estivesse mesmo sozinha não seria uma boa ideia ser encontrada amarrada aqui. Ainda com a cabeça jogada para trás em um ângulo estranho, meus olhos se fixaram à janela acima de uma cômoda ao lado esquerdo da cama.
Uma única ideia se formou em minha cabeça, era irresponsável, idiota e consideravelmente improvável de funcionar, mas convenhamos... Zumbis também eram tudo isso a alguns anos, e adivinha? Esses arrombados devoraram o mundo tão rápido quanto surgiram, não é como se existissem coisas improváveis no meio de um apocalipse.
Desci novamente o olhar até meus pés, focando especificamente nas botas sujas de lama que estava calçando e respirando fundo para me acalmar antes de começar. Mordendo os lábios concentrada, usei a ponta do pé direito para tentar empurrar a bota do esquerdo apenas um pouco para baixo, com cuidado para que não saísse totalmente e ficasse apenas frouxa. Levei algumas tentativas e xingamentos até conseguir, mas logo tinha uma bota calçada apenas até a metade de meu pé esquerdo.
Levantei a perna e mirei na janela, entortando o corpo na cama até conseguir um bom ângulo. Era agora ou nunca. Abaixando a perna novamente com cuidado para não perder a bota, cerrei os dentes e escondi o rosto no braço, levantando a perna em um tranco e arremessando a bota pesada com o máximo de força que podia na janela.
Um barulho alto e cacos de vidro voadores preencheram o quarto, senti meu coração errar uma batida e me mantive imóvel por alguns instantes, mas para meu alívio tudo permaneceu em silêncio. Quando abri novamente os olhos, observei o estrago enorme na janela, tinha que trabalhar rápido a partir de agora. Passei a procurar por algum caco grande o suficiente e que eu pudesse alcançar, encontrando um em instantes. Bingo!
-É isso que eu chamo de sorte no azar... - resmunguei com um sorrisinho de canto e comecei a me revirar na cama.
Aproximei o corpo o máximo que podia da beirada da cama, arrastando junto a corda que me prendia à cabeceira até o pilar de madeira ornamentada da lateral da cabeceira. Forcei as cordas e estiquei as mãos o máximo que podia, até que finalmente as pontas de meus dedos tocaram o caco de vidro em cima da cômoda que eu tentava pegar. Arrastei o mesmo devagar até a beirada da superfície empoeirada do móvel, se o caco caísse no chão eu estaria ferrada de vez.
Posicionei a outra mão colada ao móvel de modo a segurar o caco quando o derrubasse e sem respirar, o arrastei de vez para fora do móvel. Fechei a mão com força demais e senti o vidro quebrado cortar minha palma, sibilei de dor e algumas gotas de sangue macharam meus pulsos doloridos e as cordas, mas eu estava quase rindo com meu sucesso.
Com o máximo de firmeza que poderia ter com minhas mãos feridas e trêmulas, virei a parte cortante e suja de sangue do caco para baixo com cuidado para não deixá-lo cair, encostando a mesma na corda e passando a esfregar o mais forte que podia minha lâmina improvisada nas fibras. A corda estava lentamente sendo cortada, devagar demais para alguém na minha situação, e a minha impaciência me fazia tremer mais.
Tudo já parecia fodido o suficiente, mas quando ouvi um grunhido do lado de fora e próximo demais da casa, eu me lembrei da porcaria de ditado que eu mesma criei. Tudo que está ruim, sempre pode piorar na merda do apocalipse.
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