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Estávamos as duas maratonando a única série da Netflix que prestava (vocês sabem qual é), quando nosso sossego foi interrompido por uma sequência ininterrupta de assobios partindo do celular da Rafaela. Ela desviou o olhar só um pouquinho para a tela e, imediatamente, seu rosto se tornou pálido como o da Bella Swan.
— Ai, meu Deus. Socorro. Ai, meu Deus. Socorro. Ai, meu Deus — ela começou a murmurar, deslizando uma mão compulsivamente pelos cabelos platinados. De novo e de novo.
— Respira, filha — ralhei, erguendo as sobrancelhas, e apertando o botão de pausa no controle remoto. — E desembucha.
— Tá bom. Espera. Vou contar. — Ela inspirou fundo e relaxou os ombros. Olhou novamente para a tela, fechou os olhos e repetiu o ritual. — Tá bom. Ai, meu Deus. Socorro.
Quando apertou o botão para iluminar a tela do celular mais uma vez, eu me senti pronta para arrancar não só meus próprios cabelos como os dela também.
— Sabe como outro dia um cara quase me atropelou de skate na rua?
— Não sobrecarreguemos nossas lembranças com um pesar que já se foi.
— Quê? — Rafaela franziu as sobrancelhas da forma que sempre faz quando faço citações aleatórias no meio das nossas conversas.
— Nada de importante. Era só Shakespeare — mencionei rapidamente, dando de ombros. — Que tem o cara do skate?
Ela bufou e tomou alguns segundos para responder; os olhos apertados, como se sentisse dor.
— Foi o Vinícius.
A vez de franzir as sobrancelhas com confusão era minha.
— Quem?
Ela baixou a cabeça e me encarou de baixo pra cima, como se dissesse "fala sério!".
— O Vinícius! O Vi-ní-cius.
Por que algumas pessoas acham que repetir uma coisa mais devagar serve como esclarecimento?
— ...de Moraes? — arrisquei com um sorriso sem graça, numa tentativa de gracejo.
— É. Ele mesmo. — Ela esticou os lábios numa reta sem humor. — O Vinícius de Moraes psicografou no meu WhatsApp.
Nós duas rimos ao mesmo tempo.
— Fala logo que raios de Vinícius que o parta é esse — eu disse por fim.
— Não é possível! — Rafaela gritou, apertando o celular entre as mãos. — Eu vivo falando pra você desse menino. Semana passada eu contei que ele chegou atrasado e aí a professora cumprimentou ele em francês e ele não só respondeu o cumprimento como ele fez um monte de perguntas de volta e a professora ficou com cara de tacho porque ela não sabia falar outra coisa?
— Ahhhh! O bonitinho da jaqueta jeans? — perguntei, com uma enxurrada de memórias e associações e imagens mentais já feitas através dos relatos de Rafaela. Eu já o havia visto algumas vezes perambulando pela escola, mas tudo que sabia de sua personalidade ou fama vinha dos suspiros da minha irmã mais nova. E aí percebi uma coisa. — 'Péra, o bonitinho que fala francês te atropelou?
— Sim! — ela respondeu com um entusiasmo exagerado, os olhos fixos no celular e os dedos deslizando pela telinha. — Ai, meu Deus. Socorro. Ele está pedindo desculpas. Ele não me viu. Ele só ficou sabendo hoje do que fez. E está terrivelmente envergonhado. Ai. Meu. Deus. E eu não faço ideia do que responder.
— Responde aí que é bom que ele esteja terrivelmente envergonhado também por interromper nossa maratona de série.
— Quê? Não. — Ela pressionou o celular contra o peito, com os olhos arregalados. — É sério isso, Tata. É o Vinícius.
— Acho que entendi essa parte.
— Não, você não entendeu. — Ela se ajoelhou dramaticamente diante de mim e pressionou as palmas das mãos uma contra a outra como numa prece, só que o celular imprensado no meio. — Eu sonho com esse momento há muito tempo. Se eu cagar isso, eu juro, eu morro.
— Jesus amado. Ele é só um garoto, menina. Tenha um pouco de amor próprio. Posso te apresentar a uma coisinha nova chamada 'feminismo'? Ou 'bom senso'?
— Já sei! — Ela ergueu um indicador no ar, ignorando meu apelo. — Já sei! Tata! Tata!
Reconheci o brilho no olhar e o arranhar manhoso na voz e, por isso, já ergui minhas defesas.
— Seja o que for, a resposta é não.
— Escreve pra mim, pelo amor de Deus. Você tem um dom com as palavras. Você é cheia das tiradas rápidas e é tão inteligente!
— Em primeiro lugar, você também é inteligente. Da sua forma. Segundo... Cara, ele é um menino de... o quê... dezesseis anos? Ele deve estar mais interessado em nudes do que em tiradas rápidas e citações obscuras.
— Renata Oliveira da Silva Horst!
É uma verdade universalmente reconhecida que quando um parente fala seu nome completo dessa forma é porque a coisa tá feia pro seu lado.
— Se você prestasse metade da atenção à sua irmã que você presta a esses romances estúpidos, você saberia que o Vinícius não só é o garoto mais lindo do mundo, ele é também o mais brilhante que já se dignou a pisar nesse planeta. Acredite. Ele tem um fandom até mesmo entre nossos professores.
Comecei a rir com o exagero.
— Tem nada.
— Não tem? Pergunta pro Felipão. Todo mundo viu a Roberta de Física pedindo para tirar uma foto com ele.
— A Roberta é uma mulher carente — contra-argumentei. — E o bonitinho é bem bonitinho mesmo.
— Por favor? — Ela implorou mais um pouco.
— Escuta. — Suspirei. — Por mais que eu esteja ansiosíssima para ajudá-la a seduzir um pobre coitado e perder alguns meses da sua juventude iludida com um reles mortal, sinto informar que essa série não vai se assistir sozinha.
— Está bem — ela mudou de tom e concordou imediatamente, o que foi meu primeiro sinal de perigo. — Se é em nudes que você acha que ele está interessado, que seja. Vou escrever aqui que minha irmã mais velha que sugeriu.
— Ei, garota! — falei, num tom de alerta. — Não dês língua aos teus pensamentos.
— Por que você não é capaz de me mandar ficar quieta como uma pessoa normal?
— Exato. Eu sou estranha. É isso o que você quer? Me dá isso aqui.
Puxei o celular da mão dela e fiz uma rápida leitura dinâmica nas mensagens. Hm. Ponto positivo para o bonitinho. Ele tinha um português decente e tentava escrever corretamente, mesmo nas mensagens pelo celular. Mas, blá, usava emoticons. Então meio que ficou elas por elas.
Rafaela sorria tão triunfantemente que uma ideia maluca se formou no meu cérebro. Desligando todos os filtros em minha mente, tamborilei meus dedos pela tela cuspindo morfologia e sintaxe para o outro lado, onde quer que fosse.
— Ele é um cara muito legal, Tata. Eu prometo. Outro dia ele colocou uma aranha para fora da sala de aula, em vez de matar. Quer dizer, quem tem dó de aranhas? Ele só pode ser um santo.
— Veremos — devolvi o celular a ela, refletindo o sorriso triunfante em meu próprio rosto.
Sei que ela sacou logo de cara que a conversa não foi exatamente como ela esperava, porque seu rosto estava já vermelho, mesmo antes de olhar para a tela.
— Renata, o que você escreveu pra ele?
Rafaela: Sabe o que dizem? Que quem é bom para dar desculpas é péssimo para todas as outras coisas.
Vinícius: Touché. Você é sempre tão direta?
Rafaela: A verdade é uma coisa tão rara que é uma delícia contá-la. :))
Vinícius: De qualquer forma, espero que esteja bem. Fale se precisar de alguma coisa ou se eu puder compensar pelo acidente.
— É isso o melhor que sua genial eloquência conseguiu formular? — Rafaela choramingou. — Ele foi totalmente bonzinho e você uma vaca.
Dei de ombros, me sentindo satisfeita comigo mesma. Não demorou mais que trinta segundos até mais uma mensagem chegar:
Vinícius: Ah, e ficarei ansioso pela próxima oportunidade de ouvir verdades dos seus lábios, Emily. ;)
Deu para perceber no olhar perdido em seu rosto que Rafaela ficou extremamente confusa.
— Emily? Por que ele me chamou de Emily? Ele não sabe nem quem eu sou?
— Emily Dickinson. A frase que falei era de Emily Dickinson. E ele conhecia a citação — respondi, sem ser capaz de conter um meio-sorriso admirado. —Chamemos minha grosseria de um 'teste de honra e valor'. E ele passou. Ao menos nesse teste.
E de confusa, sua expressão facial passou para atônita e deliciada em segundos.
— Ele falou 'próxima oportunidade'? — Ela começou a saltar sem sair do lugar. — E falou 'lábios'? Meus lábios? Dos meus lábios, Tata?
Em que universo conhecer os poemas de Emily Dickinson seria considerado um 'teste de honra e valor' não vinha ao caso e tampouco foi questionado por Rafaela. Ela estava eufórica demais com a resposta positiva para questionar qualquer coisa. E eu deixei meu sorriso permanecer no meu rosto pela alegria, efêmera e sem sentido (eu sabia), da minha irmãzinha.
Ela insistiu que trocássemos de celular essa noite. Só por segurança, caso viesse mais alguma coisa que exigisse resposta imediata. Eu não consegui achar minha voz para dizer não. O arrependimento por ter enviado aquelas mensagens foi quase instantâneo. Não só pelo tom descortês. Mas porque a resposta do bonitinho da jaqueta que fala francês me surpreendera de verdade.
Mais do que algum dia eu admitiria em voz alta.
E o pior de tudo é que algo em mim já estava ansiando, naquele instante, por falar mais algumas poucas verdades deliciosas. E receber suas respostas. Sirenes anunciando catástrofe iminente berravam em minha mente.
"O coração quer o que quer", Emily Dickinson escrevera um dia. Basicamente, não havia o que discutir se era o que o coração desejava. Séculos depois, concordava com ela uma Selena Gomez, justificando para si mesma e para milhares de adolescentes tresloucadas qualquer romance infame e inexplicável. "O coração quer o que quer".
Geração após geração entoando esse cântico de irracionalidade.
O hino dos miseráveis e geradores de miséria. A justificativa de tolices, loucuras e guerras.
"O coração quer o que quer", proclamam todos.
E eu estava prestes a cantá-lo também.
* * *
Gente, aqui já passou da meia-noite e tô numa bad que decidi que preciso postar capítulo. Deixa um votinho ou um comentário pra eu saber que você tá aí e que nada é inútil?
Obrigada, fofinhos.
História continua...
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